A Senhora do Galvão, de Machado de Assis
Fonte:
ASSIS, Machado de. Volume de contos. Rio de Janeiro : Garnier, 1884.
Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
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A SENHORA DO GALVÃO
Começaram a rosnar dos amores deste advogado com a viúva do brigadeiro, quando
eles não tinham ainda passado dos primeiros obséquios. Assim vai o mundo. Assim se
fazem algumas reputações más, e, o que parece absurdo, algumas boas. Com efeito, há
vidas que só têm prólogo; mas toda a gente fala do grande livro que se lhe segue, e o autor
morre com as folhas em branco. No presente caso, as folhas escreveram-se, formando todas
um grosso volume de trezentas páginas compactas, sem contar as notas. Estas foram postas
no fim, não para esclarecer, mas para recordar os capítulos passados; tal é o método nesses
livros de colaboração. Mas a verdade é que eles apenas combinavam no plano, quando a
mulher do advogado recebeu este bilhete anônimo:
"Não é possível que a senhora se deixe embair mais tempo, tão escandalosamente,
por uma de suas amigas, que se consola da viuvez, seduzindo os maridos alheios, quando
bastava conservar os cachos..."
Que cachos? Maria Olímpia não perguntou que cachos eram; eram da viúva do
brigadeiro, que os trazia por gosto, e não por moda. Creio que isto se passou em 1853.
Maria Olímpia leu e releu o bilhete; examinou a letra, que lhe pareceu de mulher e
disfarçada, e percorreu mentalmente a primeira linha das suas amigas, a ver se descobria a
autora. Não descobriu nada, dobrou o papel e fitou o tapete do chão, caindo-lhe os olhos
justamente no ponto do desenho em que dois pombinhos ensinavam um ao outro a maneira
de fazer de dois bicos um bico. Há dessas ironias do acaso, que dão vontade de destruir o
universo. Afinal meteu o bilhete no bolso do vestido, e encarou a mucama, que esperava
por ela, e que lhe perguntou:
— Nhanhã não quer mais ver o xale?
Maria Olímpia pegou no xale que a mucama lhe dava e foi pô-lo aos ombros,
defronte do espelho. Achou que lhe ficava bem, muito melhor que à viúva. Cotejou as suas
graças com as da outra. Nem os olhos nem a boca eram comparáveis; a viúva tinha os
ombros estreitinhos, a cabeça grande, e o andar feio. Era alta; mas que tinha ser alta? E os
trinta e cinco anos de idade, mais nove que ela? Enquanto fazia essas reflexões, ia
compondo, pregando e despregando o xale.
— Este parece melhor que o outro, aventurou a mucama.
— Não sei... disse a senhora, chegando-se mais para a janela, com os dois nas mãos.
— Bota o outro, nhanhã.
A nhanhã obedeceu. Experimentou cinco xales dos dez que ali estavam, em caixas,
vindos de uma loja da rua da Ajuda. Concluiu que os dois primeiros eram os melhores; mas
aqui surgiu uma complicação — mínima, realmente — mas tão sutil e profunda na solução,
que não vacilo em recomendá-la aos nossos pensadores de 1906. A questão era saber qual
dos dois xales escolheria, uma vez que o marido, recente advogado, pedia-lhe que fosse
econômica. Contemplava-os alternadamente, e ora preferia um, ora outro. De repente,
lembrou-lhe a aleivosia do marido, a necessidade de mortificá-lo, castigá-lo, mostrar-lhe
que não era peteca de ninguém, nem maltrapilha; e, de raiva, comprou ambos os xales.
Ao bater das quatros horas (era a hora do marido) nada de marido. Nem às quatro,
nem às quatro e meia. Maria Olímpia imaginava uma porção de coisas aborrecidas, ia à
janela, tornava a entrar, temia um desastre ou doença repentina; pensou também que fosse
uma sessão do júri. Cinco horas, e nada. Os cachos da viúva também negrejavam diante
dela, entre a doença e o júri, com uns tons de azul-ferrete, que era provavelmente a cor do
diabo. Realmente era para exaurir a paciência de uma moça de vinte e seis anos. Vinte e
seis anos; não tinha mais. Era filha de um deputado do tempo da Regência, que a deixou
menina; e foi uma tia que a educou com muita distinção. A tia não a levou muito cedo a
bailes e espetáculos. Era religiosa, conduziu-a primeiro à igreja. Maria Olímpia tinha a
vocação da vida exterior, e, nas procissões e missas cantadas, gostava principalmente do
rumor, da pompa; a devoção era sincera, tíbia e distraída. A primeira coisa que ela via na
tribuna das igrejas, era a si mesma. Tinha um gosto particular em olhar de cima para baixo,
fitar a multidão das mulheres ajoelhadas ou sentadas, e os rapazes, que, por baixo do coro
ou nas portas laterais, temperavam com atitudes namoradas as cerimônias latinas. Não
entendia os sermões; o resto, porém, orquestra, canto, flores, luzes, sanefas, ouros, gentes,
tudo exercia nela um singular feitiço. Magra devoção, que escasseou ainda mais com o
primeiro espetáculo e o primeiro baile. Não alcançou a Candiani, mas ouviu a Ida Edelvira,
dançou à larga, e ganhou fama de elegante.
Eram cinco horas e meia, quando o Galvão chegou. Maria Olímpia, que então
passeava na sala, tão depressa lhe ouviu os pés, fez o que faria qualquer outra senhora na
mesma situação: pegou de um jornal de modas, e sentou-se, lendo, com um grande ar de
pouco caso. Galvão entrou ofegante, risonho, cheio de carinhos, perguntando-lhe se estava
zangada, e jurando que tinha um motivo para a demora, um motivo que ela havia de
agradecer, se soubesse...
— Não é preciso, interrompeu ela friamente.
Levantou-se; foram jantar. Falaram pouco; ela menos que ele, mas em todo o caso,
sem parecer magoada. Pode ser que entrasse a duvidar da carta anônima; pode ser também
que os dois xales lhe pesassem na consciência. No fim do jantar, Galvão explicou a
demora; tinha ido, a pé, ao teatro Provisório, comprar um camarote para essa noite: davam
os Lombardos. De lá, na volta, foi encomendar um carro...
— Os Lombardos? interrompeu Maria Olímpia.
— Sim; canta o Laboceta, canta a Jacobson; há bailado. Você nunca ouviu os
Lombardos?
— Nunca.
— E aí está por que me demorei. Que é que você merecia agora? Merecia que eu lhe
cortasse a ponta desse narizinho arrebitado...
Como ele acompanhasse o dito com um gesto, ela recuou a cabeça; depois acabou
de tomar o café. Tenhamos pena da alma desta moça. Os primeiros acordes dos Lombardos
ecoavam nela, enquanto a carta anônima lhe trazia uma nota lúgubre, espécie de Requiem.
E por que é que a carta não seria uma calúnia? Naturalmente não era outra coisa: alguma
invenção de inimigas, ou para afligi-la, ou para fazê-los brigar. Era isto mesmo. Entretanto,
uma vez que estava avisada, não os perderia de vista. Aqui acudiu-lhe uma idéia: consultou
o marido se mandaria convidar a viúva.
— Não, respondeu ele; o carro só tem dois lugares, e eu não hei de ir na boléia.
Maria Olímpia sorriu de contente, e levantou-se. Há muito tempo que tinha vontade
de ouvir os Lombardos. Vamos aos Lombardos! Trá, lá, lá, lá... Meia hora depois foi vestirse.
Galvão, quando a viu pronta daí a pouco, ficou encantado. Minha mulher é linda,
pensou ele; e fez um gesto para estreitá-la ao peito; mas a mulher recuou, pedindo-lhe que
não a amarrotasse. E, como ele, por umas veleidades de camareiro, pretendeu concertar-lhe
a pluma do cabelo, ela disse-lhe enfastiada:
— Deixa, Eduardo! Já veio o carro?
Entraram no carro e seguiram para o teatro. Quem é que estava no camarote
contíguo ao deles? Justamente a viúva e a mãe. Esta coincidência, filha do acaso, podia
fazer crer algum ajuste prévio. Maria Olímpia chegou a suspeitá-lo; mas a sensação da
entrada não lhe deu tempo de examinar a suspeita. Toda a sala voltara-se para vê-la, e ela
bebeu, a tragos demorados, o leite da admiração pública. Demais, o marido teve a
inspiração, maquiavélica, de lhe dizer ao ouvido: "Antes a mandasses convidar; ficava-nos
devendo o favor." Qualquer suspeita cairia diante desta palavra. Contudo, ela cuidou de os
não perder de vista — e renovou a resolução de cinco em cinco minutos, durante meia hora,
até que, não podendo fixar a atenção, deixou-a andar. Lá vai ela, inquieta, vai direito ao
clarão das luzes, ao esplendor dos vestuários, um pouco à ópera, como pedindo a todas as
coisas alguma sensação deleitosa em que se espreguice uma alma fria e pessoal. E volta
depois à própria dona, ao seu leque, às suas luvas, aos adornos do vestido, realmente
magníficos. Nos intervalos, conversando com a viúva, Maria Olímpia tinha a voz e os
gestos do costume, sem cálculo, sem esforço, sem ressentimento, esquecida da carta.
Justamente nos intervalos é que o marido, com uma discrição rara entre os filhos dos
homens, ia para os corredores ou para o saguão pedir notícias do ministério.
Juntas saíram do camarote, no fim, e atravessaram os corredores. A modéstia com
que a viúva trajava podia realçar a magnificência da amiga. As feições, porém, não eram o
que esta afirmou, quando ensaiava os xales de manhã. Não, senhor; eram engraçadas, e
tinham um certo pico original. Os ombros proporcionais e bonitos. Não contava trinta e
cinco anos, mas trinta e um; nasceu em 1822, na véspera da independência, tanto que o pai,
por brincadeira, entrou a chamá-la Ipiranga, e ficou-lhe esta alcunha entre as amigas.
Demais, lá estava em Santa Rita o assentamento de batismo.
Uma semana depois, recebeu Maria Olímpia outra carta anônima. Era mais longa e
explícita. Vieram outras, uma por semana, durante três meses. Maria Olímpia leu as
primeiras com algum aborrecimento; as seguintes foram calejando a sensibilidade. Não
havia dúvida que o marido demorava-se fora, muitas vezes, ao contrário do que fazia
dantes, ou saía à noite e regressava tarde; mas, segundo dizia, gastava o tempo no
Wallerstein ou no Bernardo, em palestras políticas. E isto era verdade, uma verdade de
cinco a dez minutos, o tempo necessário para recolher alguma anedota ou novidade, que
pudesse repetir em casa, à laia de documento. Dali seguia para o largo de São Francisco, e
metia-se no ônibus.
Tudo era verdade. E, contudo, ela continuava a não crer nas cartas. Ultimamente,
não se dava mais ao trabalho de as refutar consigo; lia-as uma só vez, e rasgava-as. Com o
tempo foram surgindo alguns indícios menos vagos, pouco a pouco, ao modo do
aparecimento da terra aos navegantes; mas este Colombo teimava em não crer na América.
Negava o que via; não podendo negá-lo, interpretava-o; depois recordava algum caso de
alucinação, uma anedota de aparências ilusórias, e nesse travesseiro cômodo e mole punha
a cabeça e dormia. Já então, prosperando-lhe o escritório, dava o Galvão partidas e jantares,
iam a bailes, teatros, corridas de cavalos. Maria Olímpia vivia alegre, radiante; começava a
ser um dos nomes da moda. E andava muita vez com a viúva, a despeito das cartas, a tal
ponto que uma destas lhe dizia: "Parece que é melhor não escrever mais, uma vez que a
senhora se regala numa comborçaria de mau gosto." Que era comborçaria? Maria Olímpia
quis perguntá-lo ao marido, mas esqueceu o termo, e não pensou mais nisso.
Entretanto, constou ao marido que a mulher recebia cartas pelo correio. Cartas de
quem? Esta notícia foi um golpe duro e inesperado. Galvão examinou de memória as
pessoas que lhe freqüentavam a casa, as que podiam encontrá-la em teatros ou bailes, e
achou muitas figuras verossímeis. Em verdade, não lhe faltavam adoradores.
— Cartas de quem? repetia ele mordendo o beiço e franzindo a testa.
Durante sete dias passou uma vida inquieta e aborrecida, espiando a mulher e
gastando em casa grande parte do tempo. No oitavo dia, veio uma carta.
— Para mim? disse ele vivamente.
— Não; é para mim, respondeu Maria Olímpia, lendo o sobrescrito; parece letra de
Mariana ou de Lulu Fontoura...
Não queria lê-la; mas o marido disse que a lesse; podia ser alguma notícia grave.
Maria Olímpia leu a carta e dobrou-a, sorrindo; ia guardá-la, quando o marido desejou ver o
que era.
— Você sorriu, disse ele gracejando; há de ser algum epigrama comigo.
— Qual! é um negócio de moldes.
— Mas deixa ver.
— Para quê, Eduardo?
— Que tem? Você, que não quer mostrar, por algum motivo há de ser. Dê cá.
Já não sorria; tinha a voz trêmula. Ela ainda recusou a carta, uma, duas, três vezes.
Teve mesmo idéia de rasgá-la, mas era pior, e não conseguiria fazê-lo até o fim. Realmente,
era uma situação original. Quando ela viu que não tinha remédio, determinou ceder. Que
melhor ocasião para ler no rosto dele a expressão da verdade? A carta era das mais
explícitas; falava da viúva em termos crus. Maria Olímpia entregou-lha.
— Não queria mostrar esta, disse-lhe ela primeiro, como não mostrei outras que
tenho recebido e botado fora; são tolices, intrigas, que andam fazendo para... Leia, leia a
carta.
Galvão abriu a carta e deitou-lhe os olhos ávidos. Ela enterrou a cabeça na cintura,
para ver de perto a franja do vestido. Não o viu empalidecer. Quando ele, depois de alguns
minutos, proferiu duas ou três palavras, tinha já a fisionomia composta e um esboço de
sorriso. Mas a mulher, que o não adivinhava, respondeu ainda de cabeça baixa; só a
levantou daí a três ou quatro minutos, e não para fitá-lo de uma vez, mas aos pedaços, como
se temesse descobrir-lhe nos olhos a confirmação do anônimo. Vendo-lhe, ao contrário, um
sorriso, achou que era o da inocência, e falou de outra coisa.
Redobraram as cautelas do marido; parece também que ele não pôde esquivar-se a
um tal ou qual sentimento de admiração para com a mulher. Pela sua parte, a viúva, tendo
notícia das cartas, sentiu-se envergonhada; mas reagiu depressa, e requintou de maneiras
afetuosas com a amiga.
Na segunda ou terceira semana de agosto, Galvão fez-se sócio do Cassino
Fluminense. Era um dos sonhos da mulher. A seis de setembro fazia anos a viúva, como
sabemos. Na véspera, foi Maria Olímpia (com a tia que chegara de fora) comprar-lhe um
mimo: era uso entre elas. Comprou-lhe um anel. Viu na mesma casa uma jóia engraçada,
uma meia lua de diamantes para o cabelo, emblema de Diana, que lhe iria muito bem sobre
a testa. De Maomé que fosse; todo o emblema de diamantes é cristão. Maria Olímpia
pensou naturalmente na primeira noite do Cassino; e a tia, vendo-lhe o desejo, quis comprar
a jóia, mas era tarde, estava vendida.
Veio a noite do baile. Maria Olímpia subiu comovida as escadas do Cassino.
Pessoas que a conheceram naquele tempo, dizem que o que ela achava na vida exterior, era
a sensação de uma grande carícia pública, a distância; era a sua maneira de ser amada.
Entrando no Cassino, ia recolher nova cópia de admirações, e não se enganou, porque elas
vieram, e de fina casta.
Foi pelas dez horas e meia que a viúva ali apareceu. Estava realmente bela, trajada a
primor, tendo na cabeça a meia lua de diamantes. Ficava-lhe bem o diabo da jóia, com as
duas pontas para cima, emergindo do cabelo negro. Toda a gente admirou sempre a viúva
naquele salão. Tinha muitas amigas, mais ou menos íntimas, não poucos adoradores, e
possuía um gênero de espírito que espertava com as grandes luzes. Certo secretário de
legação não cessava de a recomendar aos diplomatas novos: "Causez avec Mme. Tavares;
c'est adorable!" Assim era nas outras noites; assim foi nesta.
— Hoje quase não tenho tido tempo de estar com você, disse ela a Maria Olímpia,
perto de meia-noite.
— Naturalmente, disse a outra abrindo e fechando o leque; e, depois de umedecer os
lábios, como para chamar a eles todo o veneno que tinha no coração: — Ipiranga, você está
hoje uma viúva deliciosa... Vem seduzir mais algum marido?
A viúva empalideceu, e não pôde dizer nada. Maria Olímpia acrescentou, com os
olhos, alguma coisa que a humilhasse bem, que lhe respingasse lama no triunfo. Já no resto
da noite falaram pouco; três dias depois romperam para nunca mais.
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