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Universidade da Amazônia
A Semana
de Machado de Assis
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A Semana
de Machado de Assis
1892
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[24 abril]
Na Segunda-feira da semana que findou, acordei cedo, pouco depois das
galinhas, e dei-me ao gosto de propor a mim mesmo um problema. Verdadeiramente
era uma charada, mas o nome de problema dá dignidade, e excita para logo a
atenção dos leitores austeros. Sou como as atrizes, que já não fazem benefício, mas
festa artística. A cousa é a mesma, os bilhetes crescem de igual modo, seja em
número, seja em preço; o resto, comédia, drama, opereta, uma polca entre dous
atos, uma poesia, várias ramalhetes, lampiões fora, e os colegas em grande gala,
oferecendo em cena o retrato à beneficiada.
Tudo pede certa elevação. Conheci dous velhos estimáveis, vizinhos, que
esses tinham todos os dias a sua festa artística. Um era Cavaleiro da Ordem da
Rosa, por serviços em relação à guerra do Paraguai; o outro tinha o posto de
tenente da guarda nacional da reserva, a que prestava bons serviços. Jogavam
xadrez, e dormiam no intervalo das jogadas. Despertavam-se um ao outro desta
maneira: "Caro major!" -"Pronto, comendador!" — Variavam às vezes: — "Caro
comendador!" —"Aí vou, Major" . Tudo pede certa elevação.
Para não ir mais longe. Tiradentes. Aqui está um exemplo. Tive-mos esta
semana o centenário do grande mártir. A prisão do heróico alferes é das que devem
ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse
patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas e
rotundas. A capital portou-se bem. Dos Estados estão vindo boas notícias. O instinto
popular, de acordo com o exame da razão, fez da figura do alferes Xavier o principal
dos Inconfidentes, e colocou os seus parceiros a meia ração da glória. Merecem,
decerto, a nossa estimação aqueles outros; eram patriotas. Mas o que se ofereceu a
carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a
pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o
enforcado, o esquartejado. o decapitado, esse tem de receber o prêmio na
proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos.
Um dos oradores do dia 21 observou que se a Inconfidência tem vencido, os
cargos iam para os outros conjurados, não para o alferes. Pois não é muito que, não
tendo vencido, a história lhe dê a prin-cipa1 cadeira. A distribuição é justa. Os outros
têm ainda um belo papel; formam, em torno de Tiradentes, um coro igual ao das
Oceânides diante de Prometeu encadeado. Relede Esquilo, amigo leitor. Escutai a
linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é
envolvido na conflagração geral das cousas.
Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes
às ninfas amadas: "Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as
artes". Foi o que nos fez Tiradentes.
Entretanto, o alferes Joaquim José tem ainda contra si uma cousa a alcunha.
Há pessoas que o amam, que o admiram, patrióticas e humanas, mas que não
podem tolerar esse nome de Tiradentes. Certamente que o tempo trará a
familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes
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tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião — dentista.
Era o mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até
que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas
cirurgião.
Há muitos anos, um rapaz—por sinal que bonito—estava para casar com uma
linda moça—a aprazimento de todos, pais e mães, irmãos, tios e primos. Mas o
noivo demorava o consórcio; adiava de um sábado para outro, depois quinta-feira,
logo terça, mais tarde sábado;—dou meses de espera. Ao fim desse tempo, o futuro
sogro comunicou à mulher os seus receios. Talvez o rapaz não quisesse casar. A
sogra, que antes de o ser já era, pegou o pau moral, e foi ter com o esquisito genro.
Que histórias eram aquelas de adiamento?
—Perdão, minha senhora, é uma nobre e alta razão; espero apenas ...
—Apenas...?
—Apenas o meu título de agrimensor.
—De agrimensor? Mas quem lhe diz que minha filha precisa do seu ofício
para comer? Case, que não morrerá de fome; o título virá depois.
—Perdão, mas não é pelo título de agrimensor, propriamente dito, que estou
demorando o casamento. Lá na roça dá-se ao agrimensor, por cortesia, o título de
doutor, e eu quisera casar já doutor ...
Sogra, sogro, noiva, parentes, todos entenderam esta sutileza, e aprovaram o
moco. Em boa hora o fizeram. Dali a três meses recebia o noivo os títulos de
agrimensor, de doutor e de marido.
Daqui ao caso eleitoral é menos que um passo; mas, não entendendo eu de
política, ignoro se a ausência de tão grande parte do eleitorado na eleição do dia 20
quer dizer descrença, como afirmam uns, ou abstenção como outros juram. A
descrença é fenômeno alheio à vontade do eleitor: a abstenção é propósito. Há
quem não veja em tudo isto mais de ignorância do poder daquele fogo que
Tiradentes legou aos seus patrícios. O que sei, é que fui à minha seção para votar,
mas achei a porta fechada e a urna na rua, com os livros e ofícios. Outra casa os
acolheu compassiva, mas os mesários não tinham sido avisados e os eleitores eram
cinco. Discutimos a questão de saber o que é que nasceu primeiro, se a galinha, se
o ovo. Era o problema, a charada, a adivinhação de segunda-feira. Dividiram-se as
opiniões; uns foram pelo ovo outros pela galinha; o próprio galo teve um voto. Os
candidatos é que não tiveram nem um, porque os mesários não vieram e bateram
dez horas. Podia acabar em prosa, mas prefiro o verso:
Sara, belle d'indolence,
Se balance
Dans un hamac...
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[19 junho]
O banco iniciador de Melhoramentos acaba de iniciar um melhoramento, que
vem mudar essencialmente a composição das atas das assembléias gerais de
acionistas.
Estes documentos (toda a gente o sabe) são o resumo das deliberações dos
acionistas, quer dizer uma narração sumária, em estilo indireto e seco, do que se
passou entre eles, relativamente ao objeto que os congregou. Não dão a menor
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sensação dos movimentos e da vida dos debates. As narrações literárias, quando se
regem por esse processo, podem vencer o tédio, à força de talento, mas é
evidentemente melhor que as cousas e pessoas se exponham por si mesmas,
dando-se a palavra a todos, e a cada um a sua natural linguagem.
Tal é o melhoramento a que aludo. A ata que aquela associação publicou esta
semana, é um modelo novo, de extraordinário efeito. Nada falta do que se disse, e
pela boca de quem disse, à maneira dos debates congressionais.—"Peço a palavra
pela ordem"—"Está encerrada a discussão e vai-se proceder à votação. Os
senhores que aprovam queiram ficar sentados." Tudo assim, qual se passou, se
ouviu, se replicou e se acabou.
E basta um exemplo para mostrar a vantagem da reforma. Tratando-se de
resolver sobre o balanço, consultou o presidente à assembléia se a votação seria
por ações, ou não. Um só acionista adotou a afirmativa; e tanto bastava para que os
votos se contassem por ações, como declarou o presidente, mas outro acionista
pediu a palavra pela ordem. "Tem a palavra pela ordem." E o acionista: "Peço a V.
Ex.a Sr. Presidente, que consulte ao Sr. acionista que se levantou, se ele desiste,
visto que a votação por ações, exigindo a chamada, tomará muito tempo".
Consultado o divergente, este desistiu, e a votação se fez per capita. Assim ficamos
sabendo que o tempo é a causa da supressão de certas formalidades exteriores; e
assim também vemos que cada um, desde que a matéria não seja essencial,
sacrifica facilmente o seu parecer em benefício comum.
O pior é se corromperem este uso, e se começarem a fazer das sociedades
pequenos parlamentos. Será um desastre. Nós pecamos pelo ruim gosto de esgotar
todas as novidades. Uma frase, uma fórmula, qualquer cousa, não a deixamos antes
de posta em molambo. Casos há em que a própria referência crítica ao abuso perde
a graça que tinha, à força da repetição; e quando um homem quer passar por
insípido (o interesse toma todas as formas), alude a uma dessas chatezas públicas.
Assim morrem afinal os usos, os costumes, as instituições, as sociedades, o bom e o
mau. Assim morrerá o universo, se não renovar freqüentemente.
Quando, porém, acabará o nome que encima estas linhas? Não sei quem foi
o primeiro que compôs esta frase, depois de escrever no alto do artigo o nome de
um cidadão. Quem inventou a pólvora? Quem inventou a imprensa, descontando
Gutenberg, porque os chins a conheciam? Quem inventou o bocejo, excluindo
naturalmente o Criador, que, em verdade, não há de ter visto sem algum tédio as
impaciências de Eva? Sim, pode ser que na alta mente divina estivesse já o primeiro
consórcio e a conseqüente humanidade. Nada afirmo, porque me falta a devida
autoridade teológica; uso da forma dubitativa. Entretanto, nada mais possível que a
Criação trouxesse já em gérmen uma longa espécie superior, destinada a viver num
eterno paraíso.
Eva é que atrapalhou tudo. E daí, razoavelmente, o primeiro bocejo.
—Como esta espécie corresponde já à sua índole! diria Deus consigo. Há de
ser assim sempre, impaciente, incapaz de esperar a hora própria. Nunca os relógios,
que há de inventar, andarão todos certos. Por um exato, contar-se-ão milhões
divergentes, e a casa em que dous marearem o mesmo minuto. não apresentará
igual fenômeno vinte e quatro horas depois. Espécie inquieta, que formará reinos
para devorá-los, repúblicas para dissolvê-las, democracias, aristocracias,
oligarquias, plutocracias, autocracias, para acabar com elas, à procura do ótimo, que
não achará nunca.
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E, bocejando outra vez, terá Deus acrescentado:
— O bocejo, que em mim é o sinal do fastio que me dá este espetáculo futuro,
também a espécie humana o terá, mas por impaciência. O tempo lhe parecerá a
eternidade. Tudo que lhe durar mais de algumas horas, dias, semanas, meses ou
anos (porque ela dividirá o tempo e inventará almanaques, há de torná-la impaciente
de ver outra cousa e desfazer o que acabou de fazer, às vezes antes de o ter
acabado.
Compreenderá as vacas gordas, porque a gordura dá que comer, mas não
entenderá as vacas magras; e não saberá (exceto no Egito, onde porei um mancebo
chamado José) encher os celeiros dos anos graúdos, para acudir à penúria dos
anos miúdos. Falará muitas línguas, beresith, ananké, habeas corpus, sem se fixar
de vez em uma só, e quando chegar a entender que uma língua única é precisa, e
inventar o volapuk, sucessor do parlamentarismo, terá começado a decadência e a
transformação. Pode ser então que eu povoe o mundo de canários.
Mas se assim explicarmos o primeiro bocejo divino, como acharmos o
primeiro bocejo humano? Trevas tudo. O mesmo se dá com o nome que encima
estas linhas. Nem me lembra em que ano apareceu a fórmula. Bonita era, e o verbo
encimar não era feio. Entrou a reproduzir-se de um modo infinito. Toda a gente tinha
um nome que encimar algumas linhas. Não havia aniversário, nomeação, embarque,
desembarque, esmola, inauguração, não havia nada que não inspirasse algumas
linhas a alguém, — às vezes com o maior fim de encimá-las por um nome. Como era
natural, a fórmula foi-se gastando—mas gastando pelo mesmo modo por que se
gastam os sapatos econômicos, que envelhecem tarde. E todos os nomes do
calendário foram encimando todas as linhas; depois, repetiram-se:
Si cette histoire vous embête
Nous allons la recommencer.
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[26 junho]
''O Ministério grego pediu demissão. O Sr. Tricoupis foi encarregado de
organizar novo ministério, que ficou assim composto: Tricoupis, presidente do
conselho e Ministro da Fazenda..."
Basta! Não, não reproduzo este telegrama, que teve mais poder em mim que
toda a mole de acontecimentos da semana. O ministério grego pediu demissão!
Certo, os ministérios são organizados para se demitirem e os ministérios gregos não
podem ser, neste ponto, menos ministérios que todos os outros ministérios. Mas, por
Vênus! foi para isso que arrancaram a velha terra às mãos turcas? Foi para isso que
os poetas a cantaram, em plena manhã do século, Byron, Hugo, o nosso José
Bonifácio, autor da bela "Ode aos Gregos"? "Sois helenos! sois homens!" conclui
uma de suas estrofes. Homens creio, porque é próprio de homens formar
ministérios; mas helenos
Sombra de Aristóteles, espectro de Licurgo, de Draco, de Sólon, e tu, justo
Aristides, apesar do ostracismo, e todos vós, legisladores, chefes de governo ou de
exército, filósofos, políticos, acaso sonhastes jamais com esta imensa banalidade de
um gabinete que pede demissão? Onde estão os homens de Plutarco? Onde vão os
deuses de Homero? Que é dos tempos em que Aspásia ensinava retórica aos
oradores?— Tudo, tudo passou. Agora há um parlamento, um rei, um gabinete e um
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presidente de conselho, o Sr. Tricoupis, que ficou com a pasta da Fazenda. Ouves
bem, sombra de Péricles? Pasta da Fazenda. E notai mais que todos esses
movimentos políticos se fazem, metidos os homens em casacas pretas, com sapatos
de verniz ou cordovão, ao cabo de moções de desconfiança...
Oh! mil vezes a dominação turca! Horrível, decerto, mas pitoresca. Aqueles
paxás, perseguidores do giaour, eram deliciosos de poesia e terror. Vede se a
Turquia atual já aceitou ministérios. Um grão-vizir, nomeado pelo padixá, e alguns
ajudantes, tudo sem câmara, nem votos. A Rússia também está livre da lepra
ocidental. Tem o niilismo, é verdade; mas não tem o bimetalismo, que passou da
América à Europa, onde começa a grassar com intensidade. O niilismo possui a
vantagem de matar logo. E depois é misterioso, dramático, épico, lírico, todas as
formas da poesia. Um homem esta jantando tranqüilo, entre uma senhora e uma
pilhéria, deita a pilhéria à senhora, e, quando vai a erguer um brinde... estala uma
bomba de dinamite. Adeus, homem tranqüilo: adeus, pilhéria; adeus, senhora. n
violento; mas o bimetalismo é pior.
Do bimetalismo ao nosso velho amigo pluripapelismo não é curta a distancia,
mas daqui ao cambio é um passo; pode parecer até que não falei do primeiro senão
para dar a volta ao mundo. Engano manifesto. Hoje só trato de telegramas, que aí
estão de sobra, norte e sul. Aqui vêm alguns de Pernambuco, dizendo que as
intendências municipais também estão votando moções de confiança e
desconfiança política. Haverá quem as censure; eu compreendo-as até certo ponto.
A moção de confiança, ou desconfiança no passado regímen, era uma
ambrosia dos deuses centrais. Era aqui na Câmara dos Deputados, que um honrado
membro, quando desconfiava do governo pedia a palavra ao presidente, e, obtida a
palavra, erguia-se. Curto ou extenso, mas geralmente tétrico, proferia um discurso
em que resumia todos os erros e crimes do ministério, e acabava sacando um papel
do bolso. Esse papel era a moção. De confidências que recebi, sei que há poucas
sensações na vida iguais à que tinha o orador, quando sacava o papel do bolso. A
alguns tremiam os dedos. Os olhos percorriam a sala, depois baixavam ao papel e
liam o conteúdo. Em seguida a moção era enviada ao presidente, e o orador descia
da tribuna, isto é, das pernas que são a única tribuna que há no nosso parlamento,
não contando uns dous púlpitos que lá puseram uma vez, e não serviram para nada.
Aí têm o que era a moção. Nunca as assembléias provinciais tiveram esse
regalo; menos ainda as tristes câmaras municipais. Mudado o regímen, acabou a
moção; mas, não se morre por decreto. A moção não só vive ainda, mas passou dos
deuses centrais aos semideuses locais, e viverá algum tempo, até que acabe de
todo, se acabar algum dia. O caso grego é sintomático; o caso japonês não menos.
Há moções japonesas. Quando as houver chinesas, chegou o fim do mundo; não
haverá mais que fechar as malas e ir para o diabo.
Outro telegrama conta-nos que alguns clavinoteiros de Canavieiras (Bahia)
foram a uma vila próxima e arrebataram duas moças. A gente da vila ia armar-se e
assaltar Canavieiras. Parece nada, e é Homero; é ainda mais que Homero, que só
contou o rapto de uma Helena: aqui são duas. Essa luta obscura, escondida no
interior da Bahia, foi singular contraste com a outra que se trava no Rio Grande do
Sul, onde a causa não é uma, nem duas Helenas, mas um só governo político.
Apuradas as contas, vem a dar nesta velha verdade que o amor e o poder são as
duas forças principais da terra. Duas vilas disputam a posse de duas moças; Bagé
luta com Porto Alegre pelo direito do mando. É a mesma Ilíada.
Dizem telegramas de S. Paulo que foi ali achado, em certa casa que se
demolia, um esqueleto algemado. Não tenho amor a esqueletos; mas este esqueleto
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algemado diz-me alguma cousa, e é difícil que eu o mandasse embora, sem três ou
quatro perguntas. Talvez ele me contasse uma história grave, longa e naturalmente
triste, porque as algemas não são alegres. Alegres eram umas máscaras de lata que
vi em pequeno na cara de escravos dados à cachaça; alegres ou grotescas, não sei
bem, porque lá vão muitos anos, e eu era tão criança, que não distinguia bem. A
verdade é que as máscaras faziam rir, mais que as do recente carnaval. O ferro das
algemas, sendo mais duro que a lata, a história devia ser mais sombria.
Há um telegrama... Diabo! acabou-se o espaço, e ainda aqui tenho uma
dúzia. Cesta com eles! Vão para onde foi a questão do benzimento da bandeira, os
guarda-livros que fogem levando a caixa (outro telegrama), e o resto dos restos, que
não dura mais de uma semana, nem tanto. Vão para onde já foi esta crônica. Fale o
leitor a sua verdade. e diga-me se lhe ficou alguma cousa do que acabou de ler.
Talvez uma só, a palavra clavinoteiros, que parece exprimir um costume ou um
ofício. Cá vai para o vocabulário.
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[3 julho]
Na véspera de S. Pedro, ouvi tocar os sinos. Poucos minutos depois, passei
pela igreja do Carmo, catedral provisória, ouvi o cantochão e orquestra; entrei.
Quase ninguém. Ao fundo, os ilustríssimos prebendados, em suas cadeiras e
bancos, vestidos daquele roxo dos cônegos e monsenhores, tão meu conhecido .
Cantavam louvores a S. Pedro. Deixei-me estar ali alguns minutos escutando e
dando graças ao príncipe dos apóstolos por não haver na igreja do Carmo um
carrilhão.
Explico-me. Eu fui criado com sinos, com estes pobres sinos das nossas
igrejas. Quando um dia li o capítulo dos sinos em Chateaubriand, tocaram-me tanto
as palavras daquele grande espírito. que me senti (desculpem a expressão) um
Chateaubriand desencarnado e reencarnado. Assim se diz na igreja espírita. Ter
desencarnado quer dizer tirado (o espírito) da carne, e reencarnado quer dizer
metido outra vez na carne. A lei é esta: nascer, morrer, tornar a nascer e renascer
ainda, progredir sempre.
Convém notar que a desencarnação não se opera como nas outras religiões,
em que a alma sai toda de uma vez. No espiritismo, há ainda um esforço humano,
uma cerimônia, para ajudar a sair o resto. Não se morre ali com esta facilidade
ordinária, que nem merece o nome de morte. Ninguém ignora que há caso de
inumações de pessoas meio vivas. A regra espírita, porém, de auxiliar por palavras,
gestos e pensamentos a desencarnação impede que um supro de alma fique metido
no invólucro mortal.
Posso afirmar o que aí fica, porque sei. Só o que eu não sei, é se os
sacerdotes espíritas são como os brâmanes, seus avós. Os brâmanes... Não, o
melhor é dizer isto por linguagem clássica. Aqui está como se exprime um velho
autor: "Tanto que um dos pensamentos por que os brâmanes têm tamanho respeito
às vacas, é por haverem que no corpo desta alimária fica uma alma melhor
agasalhada que em nenhum outro, depois que sai do humano; e assim põem sua
maior bem-aventurança em os tomar a morte com as mãos nas ancas de uma vaca,
esperando se recolha logo a alma nela."
Ah! se eu ainda vejo um amigo meu, sacerdote espírita, metido dentro de uma
vaca, e um homem, não desencarnado, a vender-lhe o leite pelas ruas, seguidos de
um bezerro magro... Não; lembra-me agora que não pode ser, porque o princípio
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espírita não é o mesmo da transmigração, em que as almas dos valentes vão para
os corpos dos leões, a dos fracos para os das galinhas, a dos astutos para os das
raposas, e assim por diante. O princípio espírita é fundado no progresso. Renascer,
progredir sempre; tal é a lei. O renascimento é para melhor. Cada espírita, em se
desencarnando, vai para os mundos superiores.
Entretanto, pergunto eu: não se dará o progresso, algumas vezes. na própria
terra? Citarei um fato. Conheci há anos um velho, bastante alquebrado e assaz
culto, que me afirmava estar na segunda encarnação. Antes disso, tinha existido no
corpo de um soldado romano, e, como tal, havia assistido à morte de Cristo. Referiame
tudo, e até circunstâncias que não constam das escrituras. Esse bom velho não
falava da terceira e próxima encarnação sem grande alegria, pela certeza que tinha
de que lhe caberia um grande cargo. Pensava na coroa da Alemanha... E quem nos
pode afirmar que o Guilherme II. que aí está, não seja ele? Há, repetimos, cousas na
vida que é mais acertado crer que desmentir; e quem não puder — crer, que se cale.
Voltemos ao carrilhão. Já referi que entrara na igreja, não contei; mas
entende-se, que na igreja não entram revoluções, por isso não falo da do Rio
Grande do Sul. Pode entrar a anarquia, é verdade, como a daquele singular pároco
da Bahia, que, mandado calar e declarado suspenso de ordens, segundo dizem
telegramas, não obedece, não se cala, e continua a paroquiar. Os clavinoteiros
também não entram; por isso ameaçam Porto Seguro, conforme outros telegramas.
Não entram discursos parlamentares, nem lutas ítalo — santistas, nem auxílios às
indústrias, nem nada. Há ali um refúgio contra os tumultos exteriores e contra os
boatos, que recomeçam. Voltemos ao carrilhão.
Criado, como ia dizendo, com os pobres sinos das nossas igrejas, não provei
até certa idade as aventuras de um carrilhão. Ouvia falar de carrilhão, como das
ilhas Filipinas, uma cousa que eu nunca havia de ver nem ouvir.
Um dia, anuncia-se a chegada de um carrilhão. Tínhamos carrilhão na terra.
Outro dia, indo a passar por uma rua, ouço uns sons alegres e animados. Conhecia
a toada, mas não lembrava a letra.
Perguntei a um menino, que me indicou a igreja próxima e disse--me que era
o carrilhão. E, não contente com a resposta, pôs a letra na música: era o Amor Tem
Fogo. Geralmente, não dou fé a crianças. Fui a um homem que estava à porta de
uma loja e o homem confirmou o caso, e cantou do mesmo modo; depois calou-se e
disse convencidamente: parece incrível como se possa, sem o prestígio do teatro, as
saias das mulheres, os requebrados, etc., dar uma impressão tão exata da opereta.
Feche os olhos, ouça-me a mim e ao carrilhão, e diga-me se não ouve a opereta em
carne e osso:
Amor tem fogo,
Tem fogo amor.
— Carne sem osso, meu rico senhor, carne sem osso.
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[10 julho]
S. Pedro, apóstolo da circuncisão, e S. Paulo, apóstolo de outra cousa, que a
Igreja Católica traduziu por gentes, e que não é preciso dizer pelo seu nome,
dominaram tudo esta semana. Eu, quando vejo um ou dous assuntos puxarem para
si todo o cobertor da atenção pública, deixando os outros ao relento, dá-me vontade
de os meter nos bastidores, trazendo à cena tão-somente a arraia-miúda, as pobres
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ocorrências de nada, a velha anedota, o sopapo casual, o furto, a facada anônima, a
estatística mortuária, as tentativas de suicídio. O cocheiro que foge, o noticiário, em
suma.
É que eu sou justo, e não posso ver o fraco esmagado pelo forte. Além disso,
nasci com certo orgulho, que já agora há de morrer comigo. Não gosto que os fatos
nem os homens se me imponham por si mesmos. Tenho horror a toda
superioridade. Eu é que os hei de enfeitar com dous ou três adjetivos, uma
reminiscência clássica, e os mais galões de estilo. Os fatos, eu é que os hei de
declarar transcendentes; os homens, eu é que os hei de aclamar extraordinários.
Daí o meu amor às chamadas chapas. Orador que me quiser ver aplaudi-lo,
há de empregar dessas belas frases feitas, que, já estando em mim, ecoam de tal
maneira, que me parece que eu é que sou o orador. Então, sim, senhor, todo eu sou
mãos, todo eu sou boca, para bradar e palmear. Bem sei que não é chapisca quem
quer. A educação faz bons chapiscas, mas não os faz sublimes. Aprendem-se as
chapas, é verdade, como Rafael aprendeu as tintas e os pincéis; mas só a vocação
faz a Madona e um grande discurso. Todos podem dizer que "a liberdade é como a
fênix, que renasce das próprias cinzas"; mas só o chapisca sabe acomodar esta
frase em fina moldura. Que dificuldade há em repetir que "a imprensa, como a lança
de Télefo, cura as feridas que faz"? Nenhum; mas a questão não é de ter facilidade,
é de ter graça. E depois, se há chapas anteriores, frases servidas, idéias
enxovalhadas, há também (e nisto se conhece o gênio) muitas frases que nunca
ninguém proferiu, e nascem já com cabelos brancos. Esta invenção de chapas
originais distingue mais positivamente o chapisca nato do chapisca por educação.
Voltemos aos apóstolos. Que direito tinha S. Pedro de dominar os
acontecimentos da semana? Estava escrito que ele negaria três vezes o divino
Mestre, antes de cantar o galo. Cantou o galo, quando acabava de o negar pela
terceira vez, e reconheceu a verdade da profecia. Quanto a S. Paulo, tendo
ensinado a palavra divina às igrejas de Sicília, de Gênova e de Nápoles, viu que
alguns a sublevaram para torná-las ao pecado (ou para outra cousa), e lançou uma
daquelas suas epístolas exortativas; concluindo tudo por ser levado o conflito a
Roma e a Jerusalém, onde os magistrados e doutores da lei estudavam a verdade
das cousas.
São negócios graves, convenho; mas há outros que, por serem leves, não
merecem menos. Na Câmara dos Deputados, por exemplo, deu-se uma pequena
divergência. de que apenas tive vaga notícia, por não poder ler, como não posso
escrever; o que os senhores estão lendo, vai saindo a olhos fechados. Ah! meus
caros amigos! Ando com uma vista (isto é grego; em português diz-se um olho)
muito inflamada, a ponto de não poder ler nem escrever. Ouvi que na Câmara surdiu
divergência entre a maioria e a minoria, por causa da anistia. A questão rimava nas
palavras, mas não rimava nos espíritos. Daí confusão, difusão, abstenção. Dizem
que um jornal chamou ao caso um beco sem saída; mas um amigo meu (pessoa
dada a aventuras amorosas) diz-me que todo beco tem saída; em caso de fuga,
salta-se por cima do muro, trepa-se ao morro próximo, ou cai-se do outro lado.
Coragem e pernas. Não entendi nada.
A falta de olhos é tudo. Quando a gente lê por olhos estranhos entende mal
as cousas. Assim é que, por telegrama, sabe-se aqui haver o governador de um
Estado presidido à extração da loteria; depois, supus que o ato fora praticado para o
fim de inspirar confiança aos compradores de bilhetes.
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— A segunda hipótese é a verdadeira, acudiu o amigo que me lia os jornais.
Não vê como as agências sérias são obrigadas a mandar anunciar que, se as
loterias não correrem no dia marcado, pagarão os bilhetes pelo dobro?
— É verdade, tenho visto.
— Pois é isto. Ninguém confia em ninguém, e é o nosso mal. Se há quem
desconfie de mim!
— Não me diga isso
— Não lhe digo outra cousa. Desconfiam que não ponho o seio integral aos
meus papéis: é verdade ( e não sou único ); mas, além de que revalido sempre o
selo quando é necessário levar os papéis a juízo, a quem prejudico eu, tirando ao
Estado? A mim mesmo, porque o tesouro, nos governos modernos, é de todos nós.
Verdadeiramente, tiro de um bolso para meter no outro. Luís XIV dizia: "O Estado
sou eu! "Cada um de nós é um tronco miúdo de Luís XIV, com a diferença de que
nós pagamos os impostos, e Luís XIV recebia-os... Pois desconfiam de mim! São
capazes de desconfiar do diabo. Creio que começo a escrever no ar e ...
[103]
[31 de julho]
Esta semana furtaram a um senhor que ia pela rua mil debêntures; ele
providenciou de modo que pôde salvá-los. Confesso que não acreditei na notícia, a
princípio; mas o respeito em que fui educado para com a letra redonda fez-me
acabar de crer que se não fosse verdade não seria impresso. Não creio em
verdades manuscritas. Os próprios versos, que só se fazem por medida, parecem
errados, quando escritos à mão. A razão por que muitos moços enganam as moças
e vice-versa é escreverem as suas cartas, e entregá-las de mão a mão, ou pela
criada, ou pela prima ou por qualquer outro modo, que no meu tempo, era ainda
inédito. Quem não engana é o namorado da folha pública; "Querida X, não foste hoje
ao lugar do costume; esperei até às três horas. Responde ao teu Z." E a namorada
"Querido Z. Não fui ontem por motivos que te direi à vista. Sábado, com certeza, à
hora costumada; não faltes. Tua X". Isto é sério, claro, exato, cordial.
A razão que me fez duvidar a princípio foi a noção que me ficou dos negócios
de debêntures. Quando este nome começou a andar de boca em boca, até fazer-se
um coro universal, veio ter comigo um chaparreiro aqui da vizinhança e confessou
que, não sabendo ler, queria que lhe dissesse se aqueles papéis valiam alguma
coisa. Eu, verdadeiro eco da opinião nacional, respondi que não havia nada melhor,
ele pegou nas economias e comprou uma centena de delas. Cresceu ainda o preço
e ele quis vendê-las; mas eu acudi a tempo de suspender esse desastre. Vender o
quê? Deixasse estar os papéis que o preço ia subir por aí além. O homem confiou e
esperou. Daí a tempo ouvi um rumor; eram as debêntures que caíam, caíam,
caíam... Ele veio procurar-me, debulhado em lágrimas; ainda o fortaleci com uma ou
duas parábolas, até que os dias correram, e o desgraçado ficou com os papéis na
mão. Consolou-se um pouco quando eu lhe disse que metade da população não
tinha outra atitude.
Pouco tempo depois (vejam o que é o amor a estas cousas!) veio ter comigo
e proferiu estas palavras:
— Eu já agora perdi quase tudo o que tinha com as tais debêntures, mas
ficou-me sempre um cobrinho no fundo do baú, e como agora ouço falar muito em
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habeas corpus, vinha, sim, vinha perguntar-lhe se esses títulos são bons, e se estão
caros ou baratos.
— Não são títulos.
— Mas o nome também é estrangeiro.
— Sim, mas nem por ser estrangeiro, é título; aquele doutor que ali mora
defronte é estrangeiro e não é título.
—Isso é verdade. Então parece-lhe que os habeas corpus não são papéis?
— Papéis são; mas são outros papéis.
A idéia de debênture ficou sendo para mim a mesma cousa que nada, de
modo que não compreendia que um senhor andasse com mil debêntures na
algibeira, que outro as furtasse, e que ele corresse em busca do ladrão. Acreditei por
estar impresso. Depois mostraram--me a lista das cotações. Vi que não se vendem
tantas como outrora, nem pelo preço antigo, mas há algum negociozinho, pequeno,
sobre alguns lotes. Quem sabe o que elas serão ainda algum dia? Tudo tem altos e
baixos.
O certo é que mudei de opinião. No dia seguinte, depois do almoço, tirei da
gaveta algumas centenas de mil-réis, e caminhei para a Bolsa, encomendando-me
(é inútil dizê-lo ) ao Deus Abraão, Isaac e Jacó. Comprei um lote, a preço baixo, e
particularmente prometi uma debênture de cera a S. Lucas, se me fizer ganhar um
cobrinho grosso. Sei que é imitar aquele homem que, há dias, deu uma chave de
cera a S. Pedro, por lhe haver deparado casa em que morasse; mas eu tenho outra
razão. Na semana passada falei de uns casais de pombas, que vivem na igreja da
Cruz dos Militares, aos pés de S. João e S. Lucas. Uma delas, vendo-me passar,
quando voltava da Bolsa, desferiu o vôo, e veio pousar-me no ombro; mostrou-se
meio agastada com a publicação, mas acabou dizendo que naquela rua, tão perto
dos bancos e da praça, tinham elas uma grande vantagem sobre todos os mortais.
Quaisquer que sejam os negócios, — arrulhou-me ao ouvido, — o câmbio para nós
está sempre a 27.
Não peço outra cousa ao apóstolo; câmbio a 27 para mim como para elas, e
terá a debênture de cera, com inscrições e alegorias. Veja que nem lhe peço a cura
da tosse e do coriza que me afligem, desde algum tempo. O meu talentoso amigo
Dr. Pedro Américo disse outro dia na Câmara dos Deputados, propondo a criação de
um teatro normal, que, por um milagre de higiene, todas as moléstias
desaparecessem, "não haveria faculdade, nem artifícios de retórica capazes de
convencer a ninguém das belezas da patologia nem da utilidade da terapêutica". Ah!
meu caro amigo! Eu dou todas as belezas da patologia por um nariz livre e um peito
desabafado. Creio na utilidade da terapêutica; mas que deliciosa cousa é não saber
que ela existe, duvidar dela e até negá-la! Felizes os que podem respirar! bemaventurados
os que não tossem! Agora mesmo interrompi o que ia escrevendo para
tossi; e, continuo a escrever de boca aberta para respirar. E falam-me em belezas da
patologia... Francamente eu prefiro as belezas da Batalha de Avaí.
A rigor, devia acabar aqui; mas a notícia que acaba de chegar do Amazonas
obriga-me a algumas linhas, três ou quatro. Promulgou-se a Constituição, e, por ela,
o governador passa-se a chamar presidente do Estado. Com exceção do Pará e Rio
Grande do Sul, creio que não falta nenhum. Sono tutti fatti marchesi. Eu, se fosse
presidente da República, promovia a reforma da Constituição, para o único fim de
chamar-me governador. Ficava assim um governador cercado de presidentes, ao
contrário dos Estados Unidos da América, e fazendo lembrar o imperador Napoleão,
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vestido com a modesta farda lendária, no meio dos seus marechais em grande
uniforme.
Outra notícia que me obriga a não acabar aqui, é a de estarem os rapazes do
comércio de S. Paulo fazendo reuniões para se alistarem na guarda nacional, em
desacordo com os daqui, que acabam de pedir dispensa de tal serviço. Questão de
meio; o meio é tudo. Não há exaltação para uns nem depressão para outros. Duas
cousas contrárias podem ser verdadeiras e até legítimas conforme a zona. Eu, por
exemplo, execro o mate chimarrão, os nossos irmãos do Rio Grande do Sul acham
que não há bebida mais saborosa neste mundo. Segue-se que o mate deve ser
sempre uma ou outra cousa? Não; segue-se o meio; o meio é tudo.
[104]
[14 agosto]
Semana e finanças são hoje a mesma cousa. E tão graves são os negócios
financeiros, que escrever isto só, pingar-lhe um ponto e mandar o papel para a
imprensa, seria o melhor modo de cumprir o meu dever. Mas o leitor quer os seus
poetas menores. Que os poetas magnos tratem os sucessos magnos; ele não
dispensa aqui os assuntos mínimos, se os houve, e, se os não houve, a reflexões
leves e curtas. Força é reproduzir o famoso Marche! Marche! de Bossuet... Perdão,
leitor! Bossuet! eis-me aqui mais grave que nunca.
E por que não sei eu finanças? Por que, ao lado dos dotes nativos com que
aprouve ao céu distinguir-me entre os homens, não possuo a ciência financeira? Por
que ignoro eu a teoria do imposto, a lei do câmbio, e mal distingo dez mil-réis de dez
tostões? Nos bonds é que me sinto vexado. Há sempre três e quatro pessoas
(principalmente agora) que tratam das cousas financeiras e econômicas, e das
causas das cousas, com tal ardor e autoridade, que me oprimem. É então que eu
leio algum jornal, se o levo, ou rôo as unhas, — vício dispensável; mas antes vicioso
que ignorante.
Quando não tenho jornal, nem unhas, atiro-me às tabuletas. Miro
ostensivamente as tabuletas, como quem estuda o comércio e a indústria, a pintura
e a ortografia. E não é novo este meu costume, em casos de aperto. Foi assim que
um dia, há anos, não me lembra em que loja, nem em que rua, achei uma tabuleta
que dizia: Ao Planeta do Destino. Intencionalmente obscuro, este título era uma
nova edição da esfinge. Pensei nele, estudei-o, e não podia dar com o sentido, até
que me lembrou virá-lo do avesso: Ao Destino do Planeta. Vi logo que, assim virado,
tinha mais senso; porque, em suma, pode admitir-se um destino ao planeta em que
pisamos... Talvez a ciência econômica e financeira seja isto mesmo, o avesso do
que dizem os discutidores de bonds. Quantas verdades escondidas em frases
trocadas! Quanto fiz esta reflexão, exultei. Grande consolação é persuadir-se um
homem de que os outros são asnos.
E aí estão quatro tiras escritas, e aqui vai mais uma, cujo assunto não sei
bem qual seja, tantos são eles e tão opostos. Vamos ao Senado. O Senado discutiu
o chim, o arroz, e o chá, e naturalmente tratou da questão da raça chinesa, que uns
defendem e outros atacam. Eu não tenho opinião; mas nunca ouso falar de raças,
que me não lembre do Honório Bicalho. Estava ele no Rio Grande do Sul, perto de
uma cidade alemã. Iam com ele moças e homens a cavalo— viram uma flor muito
bonita no alto de uma árvore, Bicalho ou outro quis colhê-la, apoiando os pés no
dorso do cavalo, mas não alcançava a flor. Por fortuna, vinha da povoação um
moleque, e o Bicalho foi ter com ele.
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— Vem cá, trepa àquela árvore, e tira a flor que está em cima...
Estacou assombrado. O moleque respondeu-lhe em alemão, que não
entendia português. Quando Bicalho entrou na cidade, e não ouviu nem leu outra
língua senão a alemã, a rica e forte língua de Goethe e de Heine, teve uma
impressão que ele resumia assim: "Achei-me estrangeiro no meu próprio país!"
Lembram-se dele? Grande talento, todo ele vida e espírito.
Isto, porém, não tem nada com os chins, nem os judeus, nem particularmente
com aquela moça que acaba de impedir a canonização de Colombo. Hão de ter lido
o telegrama que dá notícia de haver sido posta de lado a idéia de canonização do
grande homem, por motivo de uns amores que ele trouxera com uma judia. Todos os
escrúpulos são respeitáveis, e seria impertinência querer dar lições ao Santo Padre
em matéria de economia católica. Colombo perdeu a canonização sem perder a
glória, e a própria Igreja o sublima por ela. Mas...
Mas, por mais que a gente fuja com o pensamento ao caso, o pensamento
escapa-se, rompe os séculos e vai farejar essa judia que tamanha influência devia
ter na posteridade. E compõe a figura pelas que conhece. Há-as de olhos negros e
de olhos garços, umas que deslizam sem pisar no chão, outras que atam os braços
ao descuidado com a simples corda das pestanas infinitas. Nem faltam as que
embebedam e as que matam. O pensamento evoca a sombra da filha de Moisés, e
pergunta como é que aquele grande e pio genovês, que abriu à fé cristã um novo
mundo, e não se abalançou ao descobrimento sem encomendar-se a Deus, podia
ter consigo esse pecado mofento, esse fedor judaico, — deleitoso, se querem, mas
de entontecer a perder uma alma por todos os séculos dos séculos.
Eu ainda quero crer que ambos, sabendo que eram incompatíveis, fizeram um
acordo para dissimular e pecar. Combinaram em ler o Cântico dos Cânticos; mas
Colombo daria ao texto bíblico o sentido espiritual e teológico, e ela o sentido natural
e molemente hebraico.
— O meu amado é para mim como um cacho de Chipre, que se acha nas
vinhas de Engadi.
— Os teus olhos são como os das pombas, sem falar no que está escondido
dentro. Os teus dous peitos são como dous filhinhos gêmeos da cabra montesa, que
se apascentam entre as açucenas.
— Eu me levantei para abrir ao meu amado; as minhas mãos destilavam
mirra.
— Os teus lábios são como uma fita escarlate, e o teu falar é doce.
— O cheiro dos teus vestidos é como o cheiro do incenso.
Quantas uniões danadas não se mantêm por acordos semelhantes, em
consciência, às vezes! Há uma grande palavra que diz que todas as cousas são
puras para quem é puro.
Tornemos à gente cristã, às eleições municipais, à senatorial, aos italianos de
S. Paulo que deixam a terra, a D. Carlos de Bourbon que aderiu à República
Francesa, em obediência ao Papa, aos bonds elétricos, à subida ao poder do old
great man, a mil outras cousas que apenas indico, tão aborrecido estou. Pena da
minha alma, vai afrouxando os bicos; diminui esse ardor, não busques adjetivos,
nem imagens, não busques nada, a não ser o repouso, o descanso físico e mental, o
esquecimento, a contemplação que prende com o cochilo que expira no sono...
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[105]
[2 outubro]
Tannháuser e bonds elétricos. Temos finalmente na terra essas grandes
novidades. O empresário do Teatro Lírico fez-nos o favor de dar a famosa ópera de
Wagner, enquanto a Companhia de Botafogo tomou a peito transportar-nos mais
depressa. Cairão de uma vez o burro e Verdi? Tudo depende das circunstâncias.
Já a esta hora algumas das pessoas que me lêem, sabem o que é a grande
ópera. Nem todas; há sempre um grande número de ouvintes que farão ao grande
maestro a honra de não perceber tudo desde logo, e entendê-lo melhor à segunda, e
de vez à terceira ou quarta execução. Mas não faltam ouvidos acostumados ao seu
oficio, que distinguirão na mesma noite o belo do sublime, e o sublime do fraco.
Eu, se lá fosse, não ia em jejum. Pegava de algumas opiniões sólidas e
francesas e metia-as na cabeça com facilidade; só não me valeria das muletas do
bom Larousse, se ele não as tivesse em casa; mas havia de tê-las. Cai aqui, cai
acolá, faria uma opinião prévia, e à noite iria ouvir a grande partitura do mestre. Um
amigo:
— Afinal temos o Tannhäuser; eu conheço um trecho, que ouvi há tempos...
— Eu não conheço nada, e quer que lhe diga? É melhor assim. Faço de conta
que assisto à primeira representação que se deu no mundo. Tudo novo.
— O que eu ouvi, é soberbo.
— Creio; mas não me diga nada, deixe-me virgem de opiniões, Quero julgar
por mim, mal ou bem...
E iria sentar-me e esperar, um tanto nervoso, irrequieto, sem atinar com o
binóculo para a revista dos camarotes. Talvez nem levasse binóculo; diria que as
grandes solenidades artísticas devem ser estremes de quaisquer outras
preocupações humanas. A arte é uma religião. O gênio é o sumo sacerdote. Em vão,
Amália, posta no camarote, em frente à mãe, lançaria os olhos para mim, assustada
com a minha indiferença e perguntando a si mesma que me teria feito. Eu, teso,
espero que as portas do templo se abram, que as harmonias do céu me chamem
aos pés do divino mestre; não sei de Amália não quero saber dos seus olhos de
turquesa.
Era assim que eu ouviria o Tannhäuser. Nos intervalos, visita aos camarotes
e crítica. Aquela entrada dos fagotes, lembra-se? Admirável! Os coros, o duo, os
violinos, oh! o trabalho dos violinos que cousa adorável, com aquele motivo
obrigado: lá, lá, lá tra, lá, lá, lá, tra, lá, lá... Há neste ato inspirações que são, com
certeza, as maiores do século. De resto, os próprios franceses emendaram a mão
dando a Wagner o preito que lhe cabe, como um criador genial...
As senhoras ouvem-me encantadas; a linda Amália sente-se honrada com a
indiferença de há pouco, vendo que ela e a arte são o meu culto único.
Ao fundo, o pai e um homem de suíças falam da fusão do Banco do Brasil
com o da República. O irmão, encostado à divisão do camarote, conversa com uma
dama vizinha, casada de fresco, ombros magníficos. Que tenho eu com ombros,
nem com bancos? Lá, lá, lá, tra, lá, lá, lá, tra, lá, lá ...
Feitas as despedidas, passaria a outro camarote, para continuar a minha
crítica. Dous homens, sempre ao fundo, conversam baixo, um recitando os versos
de Garrett sobre a Guerra das Duas Rosas, o outro esperando a aplicação. A
aplicação é a Câmara Municipal de S. Paulo, que acaba de tomar posse solene, com
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assistência do presidente e dos secretários do Estado... Interrupção do segundo:
"Pode comparar-se o caso dos dous secretários à conciliação que o poeta fez das
duas rosas?" Explicação do primeiro: "Não; refiro-me à inauguração que a Câmara
fez dos retratos de Deodoro e Benjamim Constante. Uniu os dous rivais póstumos
em uma só comemoração, e a história ou a lenda que faça o resto".
Não espero pelo resto; falo às senhoras no duo e na entrada dos fagotes.
Bela entrada de fagotes. Os coros admiráveis, e o trabalho dos violinos
simplesmente esplêndido. Hão de ter notado que a música reproduz perfeitamente a
lenda, como o espelho a figura; prendem-se ambas em uma só inspiração genial.
Aquele motivo obrigado dos violinos é a mais bela inspiração que tenho ouvido: lá,
lá, lá, tra, lá, lá, lá, tra...
Terceiro camarote, violinos, fagotes, coros e o duo. Pormenores técnicos. Ao
fundo, dous homens, que falam de um congresso psicológico em Chicago, dizem
que os nossos espíritas vão ter ocasião de aparecer, porque o convite estende-se a
eles. Tratar-se-á não só dos fenômenos psicofísicos, como sejam as pancadas, as
oscilações em mesas, a escrita, e outras manifestações espíritas, como ainda da
questão da vida futura. Um dos interlocutores declara que os únicos espíritas que
conhece, são dous, moram ao pé dele e já não pertencem a este mundo; estão nos
intermédios de Epicuro. Andam cá os corpos, por efeito do movimento que traziam
quando habitados pelos espíritos, como aqueles astros cuja luz ainda vemos hoje,
estando apagados há muitos séculos...
A orquestra chama a postos, sobe o pano, assisto ao ato, e faço a mesma
peregrinação no intervalo; mudo só as citações, mas a crítica é sempre verdadeira.
Ouço os mesmos homens, ao fundo, conversando sobre cousas alheias ao Wagner.
Eu, entregue à crítica musical, não dou pelas rusgas da intendência, não atendo às
candidaturas municipais agarradas aos eleitores, não dou por nada que não seja a
grande ópera. E sento-me, recordo prontamente o que li sobre o ato, oh! um ato
esplêndido!
Fim do espetáculo. Corro a encontrar-me com a família de Amália, para
acompanhá-la à carruagem. Dou o braço à mãe e crítico o último ato, depois resumo
a crítica dos outros atos. Elas e o pai entram na carruagem; despedidas à portinhola;
aperto a bela mão da minha querida Amália... Pormenores técnicos.
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[9 outubro]
Eis aí uma semana cheia. Projetos e projetos bancários, debates e debates
financeiros, prisão de diretores de companhias, denúncia de outros, dous mil
comerciantes marchando para o palácio Itamarati, a pé, debaixo d'água, processo
Maria Antônia, fusão de bancos, alça rápida de câmbio, tudo isso grave, soturno,
trágico ou simplesmente enfadonho. Uma só nota idílica entre tanta cousa grave,
soturna, trágica ou simplesmente enfadonha; foi a morte de Renan. A de Tennyson,
que também foi esta semana, não trouxe igual caráter, apesar do poeta que era, da
idade que tinha. Uma gravura inglesa recente dá, em dous grupos, os anos de 1842
e 1892, meio século de separação. No primeiro era Southey que fazia o papel de
Tennyson, e o poeta laureado de 1842, como o de 1892. acompanhava os demais
personagens oficiais do ano respectivo, o chefe dos tories, o chefe dos whigs, o
arcebispo de Cantuária. A rainha é que é a mesma. Tudo instituições. Tennyson era
uma instituição, e há belas instituições, Os seus oitenta e três anos não lhe tinham
arrancado as plumas das asas de poeta; ainda agora anunciava-me um novo escrito
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seu. Mas era uma glória britânica; não teve a influência nem a universalidade do
grande francês.
Renan, como Tennyson, despegou-se da vida no espaço de dous telegramas,
algumas horas apenas. Não penso em agonias de Renan. Afigura-se-me que ele
voltou o corpo de um lado para outro e fechou os olhos. Mas agonia que fosse, e por
mais longa que haja sido, ter-lhe-á custado pouco ou nada o último adeus daquele
grande pensador, tão plácido para com as fatalidades, tão prestes a absolver as
cousas irremissíveis.
Comparando este glorioso desfecho com aquele dia em que Renan subiu à
cadeira de professor e soltou as famosas palavras: "Alors, un homme a paru... ",
podemos crer que os homens, como os livros, têm os seus destinos. Recordo-me do
efeito, que foi universal; a audácia produziu escândalo, e a punição foi pronta. O
professor desceu da cadeira para o gabinete. Passaram-se muitos anos, as
instituições políticas tombaram, outras vieram, e o professor morre professor, após
uma obra vasta e luminosa, universalmente aclamado como sábio e como artista. Os
seus próprios adversários não lhe negam admiração, e porventura lhe farão justiça.
J'ai tout critiqué (diz ele em um dos seus prefácios) et quoi qu'on en dise, y j'ai tout
maintenu. O século que está a chegar, criticará ainda uma vez a crítica, e dirá que o
ilustre exegeta definiu bem a sua ação.
A morte não pode ter aparecido a esse magnífico espírito com aqueles dentes
sem boca e aqueles furos sem olhos, com que os demais pecadores a vêem, mas
com as feições da vida, coroada de flores simples e graves. Para Renan a vida nem
tinha o defeito da morte. Sabe-se que era desejo seu, se houvesse de tornar à terra,
ter a mesma existência anterior, sem alteração de trâmites nem de dias. Não se
pode confessar mais vivamente a bem-aventurança terrestre. Um poeta daquele
país, o velho Ronsard, para igual hipótese, preferia vir tornado em pássaro, a ser
duas vezes homem. Eu (fale-mos um pouco de mim), se não fossem as armadilhas
próprias do homem e o uso de matar o tempo matando pássaros, também quisera
regressar pássaro.
Não voltou o pássaro Ronsard, como não voltará o homem Renan. Este irá
para onde estão os grandes do século, que começou em França como o autor de
René, e acaba com o da Vida de Jesus, páginas tão características de suas
respectivas datas.
Não faço aqui análises que me não competem, nem cito obras, nem
componho biografia. O jornalismo desta capital mostrou já o que valia o autor de
tantos e tão adoráveis livros, falou daquele estilo incomparável, puro e sólido, feito
de cristal e melodia. Nada disso me cabe. A rigor, nem me cabe cuidar da morte.
Cuidei desta por ser a única nota idílica, entre tanta cousa grave, soturna, trágica ou
simplesmente enfadonha.
Em verdade, que posso eu dizer das cousas pesadas e duras de uma
semana, remendada de códigos e praxistas, a ponto de algarismo e citação?
Prisões, que tenho eu com elas? Processos, que tenho eu com eles? Não dirijo
companhia alguma, nem anônima, nem pseudônima; não fundei bancos, nem me
disponho a fundá-los, e, de todas as cousas deste mundo e do outro, a que menos
entendo, é o câmbio. Não é que lhe negue o direito de subir; mas tantas lástimas
ouvi pela queda, quantas ouço agora pela ascensão, — não sei se às mesmas
pessoas, mas com estes mesmos ouvidos.
Finanças das finanças, são tudo finanças. Para onde quer que me volte, dou
com a incandescente questão do dia. Conheço já o vocabulário, mas não sei ainda
todas as idéias a que as palavras correspondem, e, quanto aos fenômenos, basta
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dizer que cada um deles tem três explicações verdadeiras e uma falsa. Melhor é crer
tudo. A dúvida não é aqui sabedoria, porque traz debate ríspido, debate traz balança
de comércio, por um lado, e excesso de emissões por outro, e, afinal, um fastio que
nunca mais acaba.
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[16 outubro]
Não tendo assistido a inauguração dos bonds elétricos, deixei de falar neles.
Nem sequer entrei em algum, mais tarde, para receber as impressões da nova
tração e contá-las. Daí o meu silêncio da outra semana. Anteontem, porém, indo
pela Praia da Lapa, em um bond comum, encontrei um dos elétricos, que descia. Era
o primeiro que estes meus olhos viam andar.
Para não mentir, direi o que me impressionou, antes da eletricidade, foi o
gesto do cocheiro. Os olhos do homem passavam por cima da gente que ia no meu
bond, com um grande ar de superioridade. Posto não fosse feio, não eram as
prendas físicas que lhe davam aquele aspecto. Sentia-se nele a convicção de que
inventara, não só o bond elétrico, mas a própria eletricidade. Não é meu ofício
censurar essas meias glórias, ou glórias de empréstimo, como lhe queiram chamar
espíritos vadios. As glórias de empréstimo, se não valem tanto como as de plena
propriedade, merecem sempre algumas mostras de simpatia. Para que arrancar um
homem a essa agradável sensação? Que tenho para lhe dar em troca?
Em seguida, admirei a marcha serena do bond, deslizando como os barcos
dos poetas, ao sopro da brisa invisível e amiga. Mas, como íamos em sentido
contrário, não tardou que nos perdêssemos de vista, dobrando ele para o Largo da
Lapa e Rua do Passeio, e entrando eu na Rua do Catete. Nem por isso o perdi de
memória. A gente do meu bond ia saindo aqui e ali, outra gente entrava adiante e eu
pensava no bond elétrico. Assim fomos seguindo; até que, perto do fim da linha e já
noite, éramos só três pessoas, o condutor, o cocheiro e eu. Os dous cochilavam, eu
pensava.
De repente ouvi vozes estranhas, pareceu-me que eram os burros que
conversavam, inclinei-me (ia no banco da frente); eram eles mesmos. Como eu
conheço um pouco a língua dos Houyhnhnms, pelo que dela conta o famoso
Gulliver, não me foi difícil apanhar o diálogo. Bem sei que cavalo não é burro; mas
reconheci que a língua era a mesma. O burro fala menos, decerto; é talvez o transita
daquela grande divisão animal, mas fala. Fiquei inclinado e escutei:
— Tens e não tens razão, respondia o da direita ao da esquerda.
O da esquerda:
— Desde que a tração elétrica se estenda a todos os bonds, estamos livres,
parece claro.
— Claro parece; mas entre parecer e ser, a diferença é grande. Tu não
conheces a história da nossa espécie, colega; ignoras a vida dos burros desde o
começo do mundo. Tu nem refletes que, tendo o salvador dos homens nascido entre
nós, honrando a nossa humildade com a sua, nem no dia de Natal escapamos da
pancadaria cristã. Quem nos poupa no dia, vinga-se no dia seguinte.
— Que tem isso com a liberdade?
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— Vejo, redargüiu melancolicamente o burro da direita, vejo que há muito de
homem nessa cabeça.
— Como assim? bradou o burro da esquerda estacando o passo.
O cocheiro, entre dous cochilas, juntou as rédeas e golpeou a parelha.
— Sentiste o golpe? perguntou o animal da direita. Fica sabendo que, quando
os bonds entraram nesta cidade, vieram com a regra de se não empregar chicote.
Espanto universal dos cocheiros: onde é que se viu burro andar sem chicote? Todos
os burros desse tempo entoaram cânticos de alegria e abençoaram a idéia os trilhos,
sobre os quais os carros deslizariam naturalmente. Não conheciam o homem.
—Sim, o homem imaginou um chicote, juntando as duas pontas das rédeas.
Sei também que, em certos casos, usa um galho de árvore ou uma vara de
marmeleiro.
— Justamente. Aqui acho razão ao homem. Burro magro não tem força; mas,
levando pancada, puxa. Sabes o que a diretoria mandou dizer ao antigo gerente
Shannon? Mandou isto: "Engorde os burros dê-lhes de comer, muito capim, muito
feno, traga-os fartos, para que eles se afeiçoem ao serviço; oportunamente
mudaremos de política, all right!"
— Disso não me queixo eu. Sou de poucos comeres; e quando menos
trabalho, quando estou repleto. Mas que tem capim com a nossa liberdade, depois
do bond elétrico?
— O bond elétrico apenas nos fará mudar de senhor.
— De que modo?
— Nós somos bens da companhia. Quando tudo andar por arames, não
somos já precisos, vendem-nos.
Passamos naturalmente às carroças.
— Pela burra de Balaão! exclamou o burro da esquerda. Nenhuma
aposentadoria? nenhum prêmio? nenhum sinal de gratificação? Oh! mas onde está
a justiça deste mundo?
— Passaremos às carroças — continuou o outro pacificamente —onde a
nossa vida será um pouco melhor; não que nos falte pancada, mas o dono de um só
burro sabe mais o que ele lhe custou. Um dia, a velhice, a lazeira, qualquer cousa
que nos torne incapaz restituir-nos-á a liberdade...
— Enfim!
— Ficaremos soltos, na rua, por pouco tempo, arrancando alguma erva que aí
deixem crescer para recreio da vista. Mas que valem duas dentadas de erva, que
nem sempre é viçosa? Enfraqueceremos; a idade ou a lazeira ir-nos-á matando, até
que, para usar esta metáfora humana, — esticaremos a canela. Então teremos a
liberdade de apodrecer. Ao fim de três, a vizinhança começa a notar que o burro
cheira mal; conversação e queixumes. No quarto dia, um vizinho, mais atrevido,
corre aos jornais, conta o fato e pede uma reclamação. No quinto dia sai a
reclamação impressa. No sexto dia, aparece um agente, verifica a exatidão da
notícia; no sétimo, chega uma carroça, puxada por outro burro, e leva o cadáver.
Seguiu-se uma pausa.
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— Tu és lúgubre, disse o burro da esquerda. Não conheces a língua da
esperança.
— Pode ser, meu colega; mas a esperança é própria das espécies fracas,
como o homem e o gafanhoto; o burro distingue-se pela fortaleza sem par. A nossa
raça é essencialmente filosófica. Ao homem que anda sobre dous pés, e
provavelmente à águia, que voa alto, cabe a ciência da astronomia. Nós nunca
seremos astrônomos. Mas a filosofia é nossa. Todas as tentativas humanas a este
respeito são perfeitas quimeras. Cada século...
O freio cortou a frase ao burro, porque o cocheiro encurtou as rédeas, e
travou o carro. Tínhamos chegado ao ponto terminal. Desci e fui mirar os dous
interlocutores. Não podia crer que fossem eles mesmos. Entretanto, o cocheiro e o
condutor cuidaram de desatrelar a parelha para levá-la ao outro lado do carro;
aproveitei a ocasião e murmurei baixinho, entre os dous burros:
— Houyhnhnnms!
Foi um choque elétrico. Ambos deram um estremeção, levantaram as patas e
perguntaram-me cheios de entusiasmo:
— Que homem és tu, que sabes a nossa língua?
Mas o cocheiro, dando-lhes de rijo na lambada, bradou para mim, que lhe não
espantasse os animais. Parece que a lambada devera ser em mim, se era eu que
espantava os animais; mas como dizia o burro da esquerda, ainda agora: — Onde
está a justiça deste mundo?
[108]
[23 outubro]
Todas as cousas têm a sua filosofia. Se os dous anciãos que o bond elétrico
atirou para a eternidade esta semana, houvessem já feito por si mesmos o que lhes
fez o bond, não teriam entestado com o progresso que os eliminou. É duro dizer;
duro e ingênuo, um pouco à La Palisse; mas é verdade. Quando um grande poeta
deste século perdeu a filha, confessou, em versos doloridos, que a criação era uma
roda que não podia andar sem esmagar alguém. Por que negaremos a mesma
fatalidade aos nossos pobres veículos?
Há terras, onde as companhias indenizam as vítimas dos desastres
(ferimentos ou mortes) com avultadas quantias, tudo ordenado por lei. É justo; mas
essas terras não têm, e deviam ter, outra lei que obrigasse os feridos e as famílias
dos mortos a indenizarem as companhias pela perturbação que os desastres trazem
ao horário do serviço. Seria um equilíbrio de direitos e de responsabilidades.
Felizmente, como não temos a primeira lei, não precisamos da segunda, e vamos
morrendo com a única despesa do enterro e o único lucro das orações.
Falo sem interesse. Dado que venhamos a ter as duas leis, jamais a minha
viúva indenizará ou será indenizada por nenhuma companhia. Um precioso amigo
meu, hoje morto, costumava dizer que não passava pela frente de um bond, sem
calcular a hipótese de cair entre os trilhos e o tempo de levantar-se e chegar ao
outro lado. Era um bom conselho, como o Doutor Sovina era uma boa farsa, antes
das farsas do Pena. Eu, o Pena dos cautelosos, levo o cálculo adiante: calculo ainda
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o tempo de escovar-me no alfaiate próximo. Próximo pode ser longe, mas muito
mais longe é a eternidade.
Em todo caso, não vamos concluir contra a eletricidade. Logicamente,
teríamos de condenar todas as máquinas, e, visto que há naufrágios, queimar todos
os navios. Não, senhor. A necrologia dos bonds tirados a burros é assaz comprida e
lúgubre para mostrar que o governo de tração não tem nada com os desastres. Os
jornais de quinta-feira disseram que o carro ia apressado, e um deles explicou a
pressa, dizendo que tinha de chegar ao ponto à hora certa, com prazo curto. Bem;
poder-se-iam combinar as cousas, espaçando os prazos e aparelhando carros
novos, elétricos ou muares, para acudir à necessidade pública. Digamos mais cem,
mais duzentos carros. Nem só de pão vive o acionista, mas também da alegria e da
integridade dos seus semelhantes.
Convenho que, durante uns quatro meses, os bonds elétricos andem muito
mais aceleradamente que os outros, para fugir ao riso dos vadios e à toleima dos
ignaros. Uns e outros imaginam que a eletricidade é uma versão do processo
culinário à la minute, e podem vir a enlamear o veículo com alcunhas feias. Lembrame
(era bem criança) que, nos primeiros tempos do gás no Rio de Janeiro, houve
uns dias de luz frouxa, de onde os moleques sacaram este dito: o gás virou
lamparina. E o dito ficou e impôs-se, e eu ainda o ouvi aplicar aos amores
expirantes, às belezas murchas, a todas as cousas decaídas.
Ah! se eu for a contar memórias da infância, deixo a semana no meio,
remonto os tempos e faço um volume. Paro na primeira estação, 1864, famoso ano
da suspensão de pagamentos (ministério Furtado); respiro, subo e paro em 1867,
quando a febre das ações atacou a esta pobre cidade, que só arribou à força do
quinino do desengano. Remonto ainda e vou a...
Aonde? Posso ir até antes do meu nascimento, até Law. Grande Law!
Também tu tiveste um dia de celebridade, depois, viraste embromador e caíste na
casinha da história, o lugar dos lava-pratos. E assim irei de século a século, até o
paraíso terrestre, forma rudimentária do encilhamento, onde se vendeu a primeira
ação do mundo. Eva comprou-a à serpente, com ágio, e vendeu-a a Adão, também
com ágio, até que ambos faliram. E irei ainda mais alto, antes do paraíso terrestre,
ao Fiat lux, que, bem, estudado ao gás do entendimento humano, foi o princípio da
falência universal.
Não; cuidemos só da semana. A simples ameaça de contar as minhas
memórias diminuiu-me o papel em tal maneira, que é preciso agora apertar as letras
e as linhas.
Semana quer dizer finanças. Finanças implicam financeiros. Financeiros não
vão sem projetos, e eu não sei formular projetos. Tenho idéias boas, e até bonitas,
algumas grandiosas, outras complicadas, muito 2%, muito lastro, muito resgate, toda
a técnica da ciência; mas falta-me o talento de compor, de dividir as idéias por
artigos, de subdividir os artigos em parágrafos, e estes em letras a b c; sai-me tudo
confuso e atrapalhado. Mas por que não farei um projeto financeiro ou bancário,
lançando-lhe no fim as palavras da velha praxe: salva a redação? Poderia baralhar
tudo, é certo, mas não se joga sem baralhar as cartas; de outro modo é embaraçar
os parceiros.
Adeus. O melhor é ficar calado. Sei que a semana não foi só de finanças, mas
também de outras cousas, como a crise de transportes, a carne, discursos
extraordinários ou explicativos, um projeto de estrada de ferro que nos põe às portas
de Lisboa, e a mulher de César, que reapareceu no seio do parlamento. Vi entrar
esta célebre senhora por aquela casa, e, depois de alguns minutos, via-se sair. Corri
21
à porta e detive-a: — "Ilustre Pompéia, que vieste fazer a esta casa? "-"Obedecer
ainda uma vez à citação da minha pessoa. Que queres tu? meu marido lembrou-se
de fazer uma bonita frase, e entregou-me por todos os séculos a amigos, conhecidos
e desconhecidos."
[109]
[30 outubro]
Tempos do papai tempos dos cardeais! Não falo do papa católico, nem dos
cardeais da santa Igreja Romana, mas do nosso papa e dos nossos cardeais. F.
Otaviano, então jornalista, foi quem achou aquelas designações para o Senador
Eusébio e o estado-maior do Partido Conservador. Era eu pouco mais que menino...
Fica entendido que, quando eu falar de fatos ou pessoas antigas, estava
sempre na infância, se é que seria nascido. Não me façam mais idoso do que sou. E
depois, o que é idade? Há dias, um distinto nonagenário apertava-me a mão com
força e contava-me as vivas impressões que lhe deixara a obra de Bryce acerca dos
Estados Unidos; acabava de lê-la, — dous grossos volumes, como sabem. E
despediu-se de mim, e lá se foi a andar seguro e lépido. Realmente, os anos nada
valem por si mesmos. A questão é saber agüentá-los, escová-los bem, todos os
dias, para tirar a poeira da estrada, trazê-los lavados com água de higiene e sabão
de filosofia.
Repito, era pouco mais que um menino, mas já admirava aquele escritor fino
e sóbrio, destro no seu ofício. A atual mocidade não conheceu Otaviano; viu apenas
um homem avelhantado e enfraquecido pela doença, com um resto pálido daquele
riso que Voltaire lhe mandou do outro mundo. Nem resto, uma sombra de resto,
talvez uma simples reminiscência deixada no cérebro das pessoas que o
conheceram entre trinta e quarenta anos.
Um dia, um domingo, havia eleições, como hoje. Papa e cardeais tinham o
poder nas mãos, e, sendo o regímen de dous graus, entraram eles próprios nas
chapas de eleitores, que eram escolhidos pelos votantes. Os liberais resolveram
lutar com os conservadores, apresentaram chapas suas e os desbarataram. O
pontífice, com todos os membros do consistório, mal puderam sair suplentes. E
Otaviano, fértil em metáforas, chamou-lhes esquifes. Mais um esquife, dizia ele no
Correio Mercantil, durante a apuração dos votos. Luta de energias, luta de motejos.
Rocha, jornalista conservador, ria causticamente do lencinho branco de Teófilo
Otôni, o célebre lenço com que este conduzia a multidão, de paróquia em paróquia,
aclamando e aclamado. A multidão seguia, alegre, tumultuosa, levada por sedução,
por um instinto vago, por efeito da palavra, — um pouquinho por ofício. Não me
lembra bem se houve alguma urna quebrada; é possível que sim. Hoje mesmo as
urnas não são de bronze. Não vou ao ponto de afirmar que não as houve pejadas.
Que é a política senão obra de homens? Crescei e multiplicai-vos.
Hoje, domingo não há a mesma multidão, o eleitorado é restrito; mas podia e
devia haver mais calor. Trata-se não menos de que eleger o primeiro conselho
municipal do Distrito Federal, que é ainda e será a capital verdadeira e histórica do
Brasil. Não é eleição que apaixone, concordo; não há paixões puramente políticas.
Nem paixões são cousas que se encomendem, como partidos não são cousas que
se evoquem. Mas (permitam-me esta velha banalidade) há sempre a paixão do bem
e do interesse público. Eia, animai-vos um pouco, se não é tarde; mas, se é tarde,
guardai-vos para a primeira eleição que vier. Contanto que não quebreis urnas, nem
22
as fecundeis — a conselho meu, — agitai-vos, meus caros eleitores, agitai-vos um
tanto mais.
Por hoje, leitor amigo, vai tranqüilamente dar o teu voto. Vai anda, vai
escolher os intendentes que devem representar-nos e defender os interesses
comuns da nossa cidade. Eu, se não estiver meio adoentado, como estou, não
deixarei de levar a minha cédula. Não leias mais ainda, porque é bem possível que
eu nada mais escreva, ou pouco. Vai votar; o teu futuro está nos joelhos dos deuses,
e assim também o da tua cidade; mas por que não os ajudarás com as mãos?
Outra cousa que está nos joelhos dos deuses é saber se a terceira
prorrogação que o Congresso Nacional resolveu decretar, é a última e definitiva.
Pode haver quarta e quinta. Daqui a censurar o Congresso é um passo, e passo
curto; mas eu prefiro ir à Constituinte, que é o mesmo Congresso avant la lettre. Por
que diabo fixou a Constituinte em quatro meses a sessão anual legislativa, isto é, o
mesmo prazo da Constituição de 1824? Devia atender que outro é o tempo e outro o
regímen.
Felizmente, li esta semana que vai haver uma revisão de Constituição no ano
próximo. Boa ocasião para emendar esse ponto, e ainda outros, se os há, e creio
que há. Nem faltará quem proponha o governo parlamentar. Dado que esta última
idéia passe, é preciso ter já de encomenda uma casaca, um par de colarinhos, uma
gravata branca, uma pequena mala com alocuções brilhantes e anódinas, para as
grandes festas oficiais, — e um Carnot, mas um Carnot autêntico, que vista e profira
todas aquelas cousas sem significação política. Salvo se arranjarmos um meio de
combinar os presidentes e os ministros responsáveis, um Congresso que mande um
ministério seu ao presidente, para cumprir e não cumprir as ordens opostas de
ambos. Enfim, esperemos. O futuro está nos joelhos dos deuses.
Mas não me faças ir adiante, leitor amado. Adeus vai votar. Escolhe a tua
intendência e ficarás com o direito de gritar contra ela. Adeus.
[110]
[6 novembro]
Vou contar às pressas o que me acaba de acontecer.
Domingo passado, enquanto esperava a chamada dos eleitores, saí à Praça
do Duque de Caxias (vulgarmente Largo do Machado) e comecei a passear defronte
da igreja matriz da Glória. Quem não conhece esse templo grego, imitado da
Madalena, com uma torre no meio, imitada de cousa nenhuma? A impressão que se
tem diante daquele singular conúbio, não é cristã nem pagã; faz lembrar, como na
comédia, "o casamento do Grão — Turco com a república [de] Veneza". Quando ali
passo, desvio sempre os olhos e o pensamento. Tenho medo de pecar duas vezes,
contra a torre e contra o templo, mandando-os ambos ao diabo, com escândalo da
minha consciência e dos ouvidos das outras pessoas.
Daquela vez, porém, não foi assim. Olhei, parei e fiquei a olhar. Entrei a
cogitar se aquele ajuntamento híbrido não será antes um símbolo. A irmandade que
mandou fazer a torre, pode ter escrito, sem o saber, um comentário. Supôs batizar
uma sinagoga (devia crer que era uma sinagoga), e fez mais, compôs uma obra
representativa do meio e do século. Não há ali só um sino para repicar aos
domingos e dias santos, com afronta dos pagãos de Atenas e dos cristãos de Paris,
— há talvez uma página de psicologia social e política.
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Sempre que entrevejo uma idéia, uma significação oculta em qualquer objeto,
fico a tal ponto absorto, que sou capaz de passar uma semana sem comer. Aqui, há
anos, estando sentado à porta de casa, a meditar no célebre axioma do Dr.
Pangloss — que os narizes fizeram — se para os óculos, e que é por isso que
usamos óculos, sucedeu cair — me a vista no chão, exatamente no lugar em que
estava uma ferradura velha. Que haveria naquele sapato de cavalo, tão comido de
dias e de ferrugem?
Pensei muito, — não posso dizer se uma ou duas horas, — até que um clarão
súbito espancou as trevas do meu espírito. A figura é velha, mas não tenho tempo
de procurar outra. Cresci diante de Pangloss. O grande filósofo, achando a razão
dos narizes, não advertiu que, ainda sem eles, podíamos trazer óculos. Bastava um
pequeno aparelho de barbantes, que fosse por cima das orelhas até à nuca. Outro
era o caso da ferradura. Só o duro casco do animal podia destinar-se à ferradura,
uma vez que não há meio de fazê-la aderir sem pregos. Aqui a finalidade era
evidente. De conclusão em conclusão, cheguei às ave-marias, tinham-me já
chamado para jantar três vezes; comi mal, digeri mal, e acordei doente. Mas tinha
descoberto alguma cousa.
Fica assim explicada a minha longa meditação diante da torre e do templo, e
o mais que me aconteceu. Cruzei os braços nas costas, com a bengala entre as
mãos, apoiando-me nela. Algumas pessoas que iam passando, ao darem comigo,
paravam também e buscavam descobrir por si o que é que chamava assim a
atenção de um homem tão grave. Foram-se deixando estar; outras vieram também e
foram ficando, até formarem um grupo numeroso, que observava tenazmente
alguma cousa digníssima da atenção dos homens. É assim que eu admiro muita
música; basta ver o Artur Napoleão parado.
Nem por isso interrompi as reflexões que ia fazendo. Sim, aquela junção da
torre e do templo não era sòmente uma opinião da irmandade.
Não tenho aqui papel para notar todos os fenômenos históricos, políticos e
sociais que me pareceram explicar o edifício do Largo do Machado; mas, ainda que
o tivesse de sobra, calar-me-ia pela incerteza em que ainda estou acerca das
minhas conclusões. Dous exemplos estremes bastam para justificação da dúvida. A
nossa independência política, que os poetas e oradores, até 1864, chamavam grito
de Ipiranga, não se pode negar que era um belo templo grego. O tratado que veio
depois, com algumas de suas cláusulas, e o seu imperador honorário, além do
efetivo, poderá ser comparado à torre da matriz da Glória? Não ouso afirmá-lo. O
mesmo digo do quiosque. O quiosque, apesar da origem chinesa, pode ser
comparado a um; templo grego, copiado de Paris; mas o charuto, o bom café barato
e o bilhete de loteria que ali se vendem, serão acaso equivalentes daquela torre?
Não sei; nem também sei se os foguetes que ali estouram, quando anda a roda e
eles tiram prêmios, representam os repiques de sinos em dias de festa. Há
hesitações grandes e nobres, minha pobre alma as conhece.
Pelo que respeita especialmente ao caso da matriz da Glória, concordo que
ele exprima a reação do sentimento local contra uma inovação apenas elegante.
Nós mamamos ao som dos sinos e somos desmamados com eles; uma igreja sem
sino é, por assim dizer, uma boca sem fala. Daí nasceu a torre da Glória. A questão
não é achar esta explicação, é completá-la.
Não me tragam aqui o mestre Spencer com os seus aforismos sociológicos.
Quando ele diz que "o estado social é o resultado de todas as ambições, de todos os
interesses pessoais, de todos os medos, venerações, indignações, simpatias, etc.
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tanto dos antepassados, como dos cidadãos existentes" — não serei eu que o
conteste. O mesmo farei se ele me disser, a propósito do templo grego:
Posto que as idéias adiantadas, uma vez estabelecidas, atuem sobre a
sociedade e ajudem o seu progresso ulterior, ainda assim o estabelecimento de tais
idéias depende da aptidão da sociedade para recebê-las. Na prática, é o caráter
popular e o estado social que determinam as idéias que hão de ter curso- não são
as Idéias correntes que determinam o estado social e o caráter...
Sim, concordo que o templo grego sejam as idéias novas, e o caráter e o
estado social a torre, que há de sobrepor-se por muito tempo as belas colunas
antigas, ainda que a gente se oponha com toda a força ao voto das irmandades
Neste ponto das minhas reflexões, o sino da torre bateu uma pancada, logo
depois outra... Estremeço, acordo, eram ave-marias. Sem saber o que fazia. corro à
igreja para votar
— Para quê? diz-me o sacristão.
— Para votar.
— Mas eleição foi domingo passado
— Que dia é hoje?
— Hoje é sábado.
— Deus de misericórdia
Senti-me fraco, fui comer alguma cousa. Sete dias para achar a explicação da
torre da Glória, uma semana perdida. Escrevo este artigo a trouxe-mouxe, em cima
dos joelhos, servindo-me de mesa um exemplar da Bíblia, outro de Camões, outro
de Gonçalves Dias, outro da Constituição de 1824 e outro da Constituição de 1889,
— dous templos gregos, com a torre do meu nariz em cima.
[111]
[27 novembro]
Um dos meus velhos hábitos é ir, no tempo das câmaras, passar as horas nas
galerias. Quando não há câmaras, vou à municipal ou intendência —, ao júri, onde
quer que possa fartar o meu amor dos negócios públicos, e mais particularmente da
eloqüência humana. Nos intervalos, faço algumas cobranças,—ou qualquer serviço
leve que possa ser interrompido sem dano, ou continuado por outro. Já se me têm
oferecido boas empregos, largamente retribuídos, com a condição de não freqüentar
a5 galerias das câmaras. Tenho-os recusado todos; nem por isso ando mais magro.
Nas galerias das câmaras ocupo sempre um lugar na primeira fila dos
bancos, leva-se mais tempo a sair, mas como eu só saio no fim, e às vezes depois
do fim, importa-me pouco essa dificuldade. A vantagem é enorme, tem-se um
parapeito de pau, onde um homem pode encostar os braços e ficar a gosto. O
chapéu atrapalhou-me muito no primeiro ano ( 1857), mas desde que me furtaram
um, meio novo, resolvi a questão definitivamente. Entro ponho o chapéu no banco e
sento-me em cima. Venham cá buscá-lo!
Não me perguntes a que vem esta página dos meus hábitos. É ler, se queres.
Talvez haja uma conclusão. Tudo tem conclusão neste mundo. Eu vi concluir
discursos, que ainda agora suponho estar ouvindo.
Cada cousa tem uma hora própria, leitor feito às pressas. Na galeria, é meu
costume dividir o tempo entre ouvir e dormir. Até certo ponto, velo sempre. Daí em
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diante, salvo rumor grande, apartes, tumulto, cerro os olhos e passo pelo sono. Há
dias em que o guarda vem bater-me no ombro.
— Que é?
— Saia daí, já acabou.
Olho, não vejo ninguém, recompondo o chapéu e saio. Mas estes casos não
são comuns.
No Senado, nunca pude fazer a divisão exata, não porque lá falsassem mal,
ao contrário, falavam geralmente melhor que na outra Câmara. Mas não havia
barulho. Tudo macio. O estilo era tão apurado, que ainda me lembro certo incidente
que ali se deu, orando o finado Ferraz, um que fez a lei bancária a de 1860. Creio
que era então Ministro da Guerra, e dizia, referindo-se a um senador: "Eu entendo,
Sr. presidente, que o nobre senador não entendeu o que disse o nobre Ministro da
Marinha, ou fingiu que não entendeu. O Visconde de Abaeté, que era o presidente,
acudiu logo: "A palavra fingiu acho que não é própria." E o Ferraz replicou: "Peço
perdão a V. Ex.ª, retiro a palavra."
Ora, dêem lá interesse às discussões com estes passos de minuete! Eu, mal
chegava ao Senado, estava com os anjos. Tumulto, saraivada grossa, caluniador
para cá, caluniador para lá, eis o que pode manter o interesse de um debate. E que
é a vida senão uma troca de cachações?
A República trouxe-me quatro desgostos extraordinários; um foi logo
remediado; os outros três não. O que ela mesma remediou, foi a desastrada idéia de
meter as câmaras no palácio da Boa Vista. Muito político e muito bonito para quem
anda com dinheiro no bolso; mas obrigar-me a pagar dous níqueis de passagem por
dia, ou a ir a pé, era um despropósito. Felizmente, vingou a idéia de tornar a pôr as
câmaras em contacto com o povo, e descemos da Boa Vista.
Não me falem nos outros três desgostos. Suprimir as interpelações aos
ministros, com dia fixado e anunciado; acabar com a discussão da resposta à fala do
trono; eliminar as apresentações de ministérios novos ...
Oh! as minhas belas apresentações de ministérios! Era um regalo ver a
Câmara cheia, agitada, febril, esperando o novo gabinete. Moças nas tribunas,
algum diplomata, meia dúzia de senadores. De repente, levantava-se um sussurro,
todos os olhos voltavam-se para a porta central, aparecia o ministério com o chefe à
frente, cumprimentos à direita e à esquerda. Sentados todos, erguia-se um dos
membros do gabinete anterior e expunha as razões da retirada; o presidente do
conselho erguia-se depois, narrava a história da subida, e definia o programa. Um
deputado da oposição pedia a palavra, dizia mal dos dous ministérios, achava
contradições e obscuridades nas explicações, e julgava o programa insuficiente.
Réplica, tréplica, agitação, um dia cheio.
Justiça, justiça. Há usos daquele tempo que ficaram. Às vezes, quando os
debates eram calorosos,—e principalmente nas interpelações, —eu da galeria
entrava na dança, dava palmas. Não sei quando começou este uso de dar palmas
nas galerias. Deve vir de muitos anos. O presidente da Câmara bradava sempre: "As
galerias não podem fazer manifestações!" Mas era como se não dissesse nada. Na
primeira ocasião, tornava a palmear com a mesma força. Vieram vindo depois os
bravos, os apoiados, os não-apoiados, uma bonita agitação. Confesso que eu nem
sempre sabia das razões do clamor, e não raro me aconteceu apoiar dous
contrários. Não importa, liberdade, antes confusa, que nenhuma.
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Esse costume prevaleceu, não acompanhou os que perdi, felizmente. Em
verdade, seria lúgubre, se, além de me tirarem as interpelações e o resto,
acabassem metendo-me uma rolha na boca. Era melhor assassinar-me logo, de
uma vez. A liberdade não é surda-muda, nem paralítica. Ela vive, ela fala, ela bate
as mãos, ela ri, ela assobia, ela clama, ela vive da vida. Se eu na galeria não posso
dar um berro, onde é que o hei de dar? Na rua, feito maluco?
Assim continuei a intervir nos debates, e a fazer crescer o meu direito político;
mas estava longe de esperar o reconhecimento imediato, pleno e absoluto que me
deu a intendência nova. Tinha ganho muito na outra galeria; enriqueci na da
intendência, onde o meu direito de gritar, apupar e aplaudir foi bravamente
consagrado. Não peço que se ponha isto por lei, porque então, gritando, apupando
ou aplaudindo, estarei cumprindo um preceito legal, que é justamente o que eu não
quero. Não que eu tenha ódio à lei; mas não tolero opressões de espécie alguma,
ainda em meu benefício.
O melhor que há no caso da intendência nova, é que ela mesma deu o
exemplo, excitando-se de tal maneira, que fez esquecer os mais belos dias da
Câmara. Em minha vida de galeria, que já não é curta, tenho assistido a grandes
distúrbios parlamentares; raro se terá aproximado das estréias da nova
representação do município. Não desmaie a nobre corporação. Berre, ainda que
seja preciso trabalhar.
Pela minha parte, fiz o que pude, e estou pronto a fazer o que puder e o que
não puder. Embora não tenha a superstição do respeito, quero que me respeitem no
exercício de um jus adquirido pela vontade e confirmado pelo tempo. J'y suis, j'y
reste, como tenho ouvido dizer nas câmaras. Creio que é latim ou francês. Digo, por
linguagem, que ainda posso ir adiante; e finalmente que, se há por aí alguma frase
menos incorreta, é reminiscência da tribuna parlamentar ou judiciária. Não se arrasta
uma vida inteira de galeria em galeria sem trazer algumas amostras de sintaxe.
[112]
[18 dezembro}
Ontem, querendo ir pela Rua da Candelária, entre as da Alfândega e Sabão
(velho estilo), não me foi possível passar, tal era a multidão de gente. Cuidei que
havia briga, e eu gosto de ver brigas; mas não era. A massa de gente tomava a rua,
de uma banda a outra, mas não se mexia; não tinha a ondulação natural dos
cachações. Procissão não era; não havia tochas acessas nem sobrepelizes. Sujeito
que mostrasse artes de macaco ou vendesse drogas, ao ar livre, com discursos,
também não.
Estava neste ponto, quando vi subir a Rua da Alfândega um digno ancião, a
quem expus as minhas dúvidas.
— Não é nada disso, respondeu-me cortesmente. Não há aqui procissão nem
macaco. Briga, no sentido de murros trocados, também não há,—pelo menos, que
me conste. Quanto à suposição de estar aí alguma pessoa apregoando medalhinhas
e vidrinhos, como os bufarinheiros da Rua do Ouvidor, esquina da do Carmo ou da
Primeiro de Março, menos ainda.
—Já sei, é uma seita religiosa que se reúne aqui para meditar sobre as
vaidades do mundo,—um troço de budistas...
—Não, não.
—Adivinhei: é um meeting.
27
—Onde está o orador?
—Esperam o orador.
—Que orador? que meeting? Ouça calado. O senhor parece ter o mau
costume de vir apanhar as palavras dentro da boca dos outros. Sossegue e escute.
—Sou todo ouvidos.
—Este é o célebre encilhamento.
—Ah!
—Vê? Há mais tempo teria tido o gosto dessa admiração, se me ouvisse
calado. Este é o encilhamento.
—Não sabia que era assim.
— Assim como?
—Na rua. Cuidei que era uma vasta sala ou um terreno fechado, particular ou
público, não este pedaço de rua estreita e aborrecida. E olhe que nem há meio de
passar; eu quis romper, pedi licença... Entretanto, creio que temos a liberdade de
circulação.
— Não.
— Como não?
— Leia a Constituição, meu senhor, leia a Constituição. O art. 70 é o que
compendia os direitos dos nacionais e estrangeiros; são trinta e um parágrafos:
nenhum deles assegura o direito de circulação... O direito de reunião, porcm7 é
positivo. Está no § 8.°: "A todos é lícito reunirem-se livremente e sem armas, não
podendo intervir a polícia, senão para manter a ordem pública". Estes homens que
aqui estão trazem armas?
— Não as vejo.
— Estão desarmados. não perturbam a ordem pública, exercem um direito, e,
enquanto não infringirem as duas cláusulas constitucionais só a violência os poderá
tirar daqui. Houve já uma tentativa disso. Eu, se fosse comigo, recorria aos tribunais,
onde há justiça. Se eles ma negassem, pedia o júri, onde ela é indefectível, como na
velha Inglaterra. Note que a violência da polícia já deu algum lucro. Como as
moléculas do encilhamento, por uma lei natural, tendiam a unir-se logo depois de
dispersados, a polícia, para impedir a recomposição fazia disparar de quando em
quando duas praças de cavalaria. Mal sabiam elas que eram simples animais de
corrida. As pessoas que as viam correr, apostavam sobre qual chegaria primeiro a
certo ponto. — É da esquerda. — É a da direita. — Quinhentos mil-réis. — Aceito. —
Pronto.
— Chegou a da esquerda: dê cá o dinheiro.
— De maneira que a própria autoridade...
— Exatamente. Ah! meu caro, dinheiro é mais forte que amor. Veja o negócio
do chocolate. Chocolate parece que não convida a falsificação: tem menos uso que
o café. Pois o chocolate é hoje tão duvidoso como O café. Entretanto, ninguém dirá
que os falsificadores sejam homens desonestos nem inimigos públicos. O que os
leva a Falsificar a bebida não é o ódio ao homem. Como odiar o homem, se no
homem está o freguês? É o amor da pecúnia.
— Pecúnia? chocolate?
— Sim, senhor. um negócio que se descobriu há dias. O senhor, ao que
parece, não sabe o que se passa em torno de nós. Aposto que não teve notícia da
revolução de Niterói?
— Tive.
— Eu tive mais que notícia, tive saudades. Quando me falaram em revolução
de Niterói, lembrei-me dos tempos da minha mocidade, quando Niterói era Praia
28
Grande. Não se faziam ali revoluções, faziam-se patuscadas. Ia-se de falua, antes e
ainda depois das primeiras barcas. Quem ligou nunca Niterói e S. Domingos a outra
idéia que não fosse noite de luar, descantes, moças vestidas de branco, versos, uma
ou outra charada? Havia presidente, como há hoje; mas morava do lado de cá. Ia ali
às onze horas, almoçado, assinava o expediente, ouvia uma dúzia de sujeitos cujos
negócios eram todos a salvação pública, metia-se na barca, e vinha ao Teatro Lírico
ouvir a Zecchinni. Havia também uma assembléia legislativa; era uma espécie do
antigo Colégio de Pedro II, onde os mocos tiravam carta de bacharel político, e
marchavam para S. Paulo, que era a assembléia geral. Tempos! tempos!
— Tudo muda, meu caro senhor. Niterói não podia ficar eternamente Praia
Grande.
— De acordo; mas a lágrima é livre.
— É talvez a cousa mais livre deste mundo senão a única. Que é á liberdade
pessoal? O senhor vinha andando, rua acima. encontra-me, faço-lhe uma pergunta,
e aqui está preso há vinte minutos.
— Pelo amor de Deus! Tomara eu destes grilhões! São grilhões de ouro.
— Agradeço-lhe o favor. Nunca o favor é tão honroso e grande como quando
sai da boca ungida pelo saber e pela experiência; porque a bondade e própria dos
altos espíritos.
— Julga-me por si; é o modo certo de engrandecer os pequenos.
— O que engrandece os pequenos é o sentimento da modéstia, virtude
extraordinária; o senhor a possui.
— Nunca me esquecerei deste feliz encontro.
— Na verdade, é bom que haja encilhamento; se o não houvesse, a rua era
livre, como a lágrima, eu teria ido o meu caminho, e não receberia este favor do céu.
de encontrar uma inteligência tão culta. Aqui está o meu cartão.
— Aqui está o meu. Sempre às suas ordens.
— Igualmente.
— (À parte ) Que homem distinto!
— (À parte ) Que estimável ancião!
[113]
[25 dezembro]
É desenganar. Gente que mamou leite romântico, pode meter o dente no
rosbife naturalista; mas em lhe cheirando a teta gótica e oriental, deixa o melhor
pedaço de carne para correr à bebida da infância. Oh! Meu doce de leite romântico!
Meu licor de Granada! Como ao velho Goethe, aparecem novamente as figuras
aéreas que outrora vi ante os meus olhos turvos.
Com efeito enquanto vós outros cuidáveis da reforma financeira e tantos fatos
da semana, enquanto percorríeis as salas da nossa bela exposição preparatória da
de Chicago, eu punha os olhos em um telegrama de Constantinopla; publicado por
uma das nossas folhas. Mão são raros os telegramas de Constantinopla; temos
sabido por eles como vai a questão dos Dardanelos; mas desta vez alguma cousa
me dizia que não se tratava de política. Tirei os óculos, limpei — os, fitei o
telegrama. Que dizia o telegrama?
"Cinco odaliscas..." Parei; lidas essas primeiras palavras, senti-me
necessitado de tomar fôlego. Cinco odaliscas! Murmura esse nome, leitor faze
escorrer da boca essas quatro sílabas de mel, e lambe depois os beiços, ladrão.
Pela minha parte, achei-me, em espírito. diante de cinco lindas mulheres, como o
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véu transparente no rosto. as calças largas e os pés metidos nas chinelas de
marroquim amarelo, — babuchas, que é o próprio nome. Todas as orientais de Hugo
vieram chover sobre mim as suas rimas de ouro e sândalo. Cinco odaliscas, Mas
que fizeram essas cinco odaliscas? Não fizeram nada. Tinham sido mandadas de
presente ao sultão. Pobres moças! Entraram no harém, lá estiveram não sei quanto
tempo, até que foram agora assassinadas... Sim, leitor compassivo, assassinadas
por mandado das outras mulheres que já lá estavam, e por ciúmes...
Não, aqui é força interromper o capítulo, por um instante. Não continuo sem
advertir que o ano é bissexto, ano de espantos. Míseras odaliscas! Assassinadas por
ciúmes, — não do sultão, que tem mais que fazer com o grande urso eslavo: — por
ciúmes dos eunucos. Singulares eunucos! eunucos de ano bissexto! Todo o harém
posto em ódio, em tumulto, em sangue, por causa de meia dúzia de guardas que o
sultão tinha o direito de supor fiéis ao trono e à cirurgia.
O mundo caduca — reflexionou tristemente um dia não sei que cardeal da
Santa Igreja Romana; e fez bem em morrer pouco depois, para não ouvir da parte do
oriente este desmentido de incréus: — O mundo reconstitui-se. O sultão tem ainda
um recurso, dissolver n corpo dos seus guardas, como fizemos aqui com o corpo de
polícia de Niterói, e recompô-lo com os companheiros de Maomé II. Eis acudirão à
chamada do imperador; os velhos ossos cumprirão o seu dever, atarraxando-se uns
nos outros, e, com as órbitas vazias, com o alfanje pendente dos dedos sem carne.
correrão a vigiar e defender as odaliscas antigas e recentes.
Ossos embora, hão de ouvir as vozes femininas, e, pois que tiveram outra
função social, estremecerão ao eco dos séculos extintos. A frase vai-me saindo com
tal ou qual ritmo que parece verso. Talvez por causa do assunto. Falemos de um
triste leitão, que ouvi grunhir agora mesmo no Largo da Carioca. Ia atado pelos pés,
dorso para baixo. seguro pela mão de um criado. que o levava de presente a
alguém: é véspera de Natal. Presente cristão. costume católico. parece que adotado
para fazer figa ao judaísmo. Será comido amanhã, domingo: ira para a mesa com a
antiga rodela de limão, à maneira velha. Pobre leitão! Berrava como se já o
estivessem assando. Talvez o desgraçado houvesse notícia do seu destino, por
algumas relações verbais que passem entre eles de pais a filhos. Pode ser que eles
ainda aguardem uma desforra. Tudo se deve esperar na terra. Tout arrive, como
dizem os franceses.
Não quero dizer dos franceses o que me está caindo da pena. Melhor é calá-
lo. Como se não bastassem a essa briosa nação os delitos de Panamá, está a
desmoralizar-se com o escândalo de tantos processos. Corrupção escondida vale
tanto como pública; a diferença é que não fede. Que é que se ganha em processar?
Fulano corrompeu Sicrano. Pedro e Paulo uniram-se para embaçar uma rua inteira,
fizeram vinte discursos, trinta anúncios, e deixaram os ouvintes sem passo que o
silêncio, além de ser outro, conforme o adágio árabe, tem a vantagem de fazer
esquecer mais depressa. Toda a questão é que os empulhados não se deixem
embair outra vez pelos empulhadores.
1893
[114]
[22 janeiro]
A questão Capital está na ordem do dia. Tempo houve em que na República
Argentina não se falou de outra cousa. Lá, porém, não se tratava de trocar a capital
da província de Buenos Aires por outra, mas de tirar à cidade deste nome o duplo
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caráter de capital da província e da República. Um dia resolveram fazer uma cidade
nova La Plata, que dizem ser magnífica, mas que custou naturalmente empréstimos
grossos.
Entre nós, a questão é mais simples. Trata-se de mudar a capital do Rio de
Janeiro para outra cidade que não fique sendo um prolongamento da Rua do
Ouvidor. Convém que o Estado não viva sujeito ao botão de Diderot, que matava um
homem na China. A questão é escolher entre tantas cidades. A idéia legislativa até
agora é Teresópolis; assim se votou ontem na assembléia . Era a do finado
capitalista Rodrigues, que escreveu artigos sobre isso. Grande viveur, o Rodrigues!
Em verdade, Teresópolis está mais livre de um assalto. é fresca, tem terras de
sobra, onde se edifique para oficiar, para legislar e para dormir.
Campos quer também a capitalização Reúne-se, discute, pede, insta.
Vassouras não quer ficar atrás. Velha cidade de um município de café. julga-se com
direito a herdar de Niterói, e oferecer dinheiros para auxiliar a administração.
Petrópolis também quer ser capital, e parece invocar algumas razões de elegância e
de beleza; mas tem contra si não estar muito mais longe da Rua do Ouvidor. e até
mais perto, por dous caminhos. Também há quem indique Nova Friburgo: e, se eu
me deixasse levar pelas boas recordações dos hotéis Leuenroth e Salusse, não
aconselharia outra cidade. Mas, além de não pertencer ao Estado (sou puro
carioca), jamais iria contra a opinião dos meus concidadãos unicamente para
satisfazer reminiscências culinárias Nem só culinárias: também as tenho
coreográficas... Oh! bons e saudosos bailes do salão Salusse! Convivas desse
tempo, onde ides vós? Uns morreram, outros casaram, outros envelheceram; e, no
meio de tanta fuga, é provável que alguns fugissem. Falo de quatorze anos atrás.
Resta ao menos este miserável escriba. que, em vez de lá estar outra vez, no alto da
serra, aqui fica a comer-lhes o tempo.
Niterói não pede nada, olha, escuta, aguarda. Vai para a barca, se tem cá o
emprego; se o tem lá mesmo, vai ver chegar ou sair a barca. Vê sempre alguma
cousa, — Outrora as lanchas, — depois as barcas. Pobre subúrbio da velha Corte,
não tens forças para reagir contra a descapitalização; não representas, não
requeres. Vais para a galeria da assembléia ouvir as razões com que te tiram o
chapéu da cabeça; não indagues se são boas ou más. São razões.
Vale-lhe uma cousa não está só. O Estado de Minas Gerais, que desde o
tempo do império já sonhava com outra capital, põe mãos à obra deveras'
mandando fazer uma capital nova. Já aí saiu uma comissão em busca de território e
clima adequados. Ouro Preto tem de ceder. Dizem que lhe custa; mas o que é que
não custa? Quanto à capital da república, é matéria constitucional, e a comissão
encarregada de escolher e delimitar a área já concluiu os seus trabalhos, ou está
prestes a fazê-lo, segundo li esta mesma semana. Telegrama de Uberaba diz que ali
chegou o chefe, Luís Cruls.
Não há dúvida que uma capital é obra dos tempos, filha da história. A história
e os tempos se encarregarão de consagrar as novas. A cidade que já estiver feita,
como no Estado do Rio, é de esperar que se desenvolva com a capitalização. As
novas devemos esperar que serão habitadas logo que sejam habitáveis. O resto virá
com os anos.
Entretanto, os donativos e ofertas por parte de algumas cidades fluminenses
mostram bem, que nem as cidades querem andar na turbamulta, por mais que a
produção e a riqueza as distingam. Tudo vale muito, mas não vale tudo, antes da
coroa administrativa. Datar as leis de Campos é dar o comando a Campos; datá-las
31
de Vassouras e dá-lo a Vassouras; e nada vale o comando, nem a própria
santidade.
A capital da República, uma vez estabelecida, receberá um nome deveras,
em vez deste que ora temos, mero qualificativo. Não sei se viverei até à
inauguração. A vida é tão curta. a morte tão incerta que a inauguração pode fazer-se
sem mim, e tão certo é o esquecimento, que nem darão pela minha falta. Mas, se
viver, lá irei passar algumas férias, como os de lá virão aqui passar outras. Os
cariocas ficarão sempre com a baía, a esquadra, os arsenais, os teatros, os bailes, a
Rua do Ouvidor, os jornais, os bancos, a praça do comércio, as corridas de cavalos.
tanto nos circos, como nos balcões de algumas casas cá embaixo, os monumentos,
a companhia lírica, os velhos templos, os rebequistas, os pianistas...
Ponhamos também os melhoramentos projetados na cidade. São muitos, e
creio haver boa resolução de levar a obra ao cabo. Oxalá não desanimem os
poderes do município. Também ficaremos com os processos de toda a sorte, as
sociedades sem cabeça e as sociedades de duas cabeças. como a Colonização.
imitação da água austríaca. Aqui ficará o grande banco. A mesma ponte truncada da
baia. que o mar começou a comer, e as montanhas — russas inacabadas da Glória
também ficarão aqui, tão inacabadas e tão truncadas como podemos pedi-los aos
deuses.
Perderemos, é certo, o Supremo Tribunal de Justiça; mas, tendo a Câmara
Municipal do Tubarão, em um assomo de cólera, qualificado um ato daquela
instituição como ignobilmente anormal, e não nos convindo, nem cortar as relações
com o Tubarão. nem sair da escola do respeito, melhor é que o tribunal se mude e
nos deixe. Grande Tubarão! Tudo por causa de um homem. O que não dirá ele por
um princípio?
[115]
[29 janeiro]
Gosto deste homem pequeno e magro chamado Barata Ribeiro, prefeito
municipal, todo vontade, todo ação, que não perde o tempo a ver correr as águas do
Eufrates. Como Josué, acaba de pôr abaixo as muralhas de Jerico, vulgo Cabeça de
Porco. Chamou as tropas segundo as ordens de Javé durante os seis dias da
escritura, deu volta à cidade e depois mandou tocar as trombetas. Tudo ruiu, e, para
mais justeza bíblica, até carneiros saíram de dentro da Cabeça de Porco tal qual da
outra Jericó saíram bois e jumentos. A diferença é que estes foram passados a fio
de espada. Os carneiros, não só conservaram a vida mas receberam ontem algumas
ações de sociedades anônimas.
Outra diferença. Na velha Jericó houve, ao menos, uma casa de mulher que
salvar, porque a dona tinha acolhido os mensageiros de Josué. Aqui nenhuma
recebeu ninguém. Tudo pereceu portanto, e foi bom que perecesse. Lá estavam
para fazer cumprir a lei a autoridade policial, a autoridade sanitária, a força pública,
cidadãos de boa vontade, e cá fora é preciso que esteja aquele apoio moral, que dá
a opinião pública aos varões provadamente fortes.
Não me condenem os reminiscências de Jericó. Foram os lindos olhos de
uma judia que me meteram na cabeça os passos da Escritura. Eles é que me
fizeram ler no livro do Êxodo a condenação das imagens, lei que eles entendem mal,
por serem judeus, mas que os olhos cristãos entendem pelo único sentido
verdadeiro. Tal foi a causa de não ir, desde anos, à procissão de S. Sebastião, em
que a imagem do nosso padroeiro é transportada da catedral ao Castelo. Sexta-feira
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fui vê-la sair. Éramos dous, um amigo e eu; logo depois éramos quatro, nós e as
nossas melancolias. Deus de bondade! Que diferença entre a procissão de sextafeira
e as de outrora. Ordem, número, pompa, tudo o que havia quando eu era
menino, tudo desapareceu. Valha a piedade, posto não faltaram olhos cristãos, e
femininos, — um par deles — para acompanhar com riso amigo e particular uma
velha opa encarnada e inquieta. Foi o meu amigo que notou essa passagem do
Cântico dos Cânticos. Todo eu era pouco para evocar a minha meninice...
E, tu, Belém Efrata... Vede ainda uma reminiscência bíblica; é do profeta
Miquéias... Não tenho outra para significar a vitória de Teresópolis De Belém tinha
de vir o salvador do mundo, como de Teresópolis há de vir a salvação do Estado
fluminense. Está feito capital o lindo e fresco deserto das montanhas. Peso de
Campos (agora é imitar o profeta Isaías), peso de Vassouras, peso de Niterói. Não
valeram riquezas, nem súplicas. A ti, pobre e antiga Niterói não te valeu a eloqüência
do teu Belisário Augusto, nem sequer a rivalidade das outras cidades pretendentes.
Tinha de ser Teresópolis. "F tu, Belém Efrata, tu és pequenina entre as milhares de
Judá..." Pequenina também é Teresópolis, mas pequenina em casas, terras há
muitas, pedras não faltam, nem cal, nem trolhas, nem tempo. Falta o meu velho
amigo Rodrigues — ora morto e enterrado, — que possuía uma boa parte daquelas
terras desertas. Ai, Justiniano! Os teus dias passaram como as águas que não
voltam mais. É ainda uma palavra da Escritura.
Fora com estes sapatos de Israel. Calcemo-nos à maneira da Rua do
Ouvidor, que pisamos, onde a vida passa em burburinho de todos os dias e de cada
hora. Chovem assuntos modernos. O banco, por exemplo, o novo banco, filho de
dous pais, como aquela criança divina que era, dizia Camões, nascida de duas
mães. As duas mães, como sabeis, eram a madre de sua madre, e a coxa de seu
padre, porque no tempo em que Júpiter engendrou esse pequerrucho, ainda não
estava descoberto o remédio que previne a concepção para sempre, e de que ouço
falar na Rua do Ouvidor. Dizem até que se anuncia, mas eu não leio anúncios.
No tempo em que os lia, até os ia catar nos jornais estrangeiros. Um destes,
creio que americano, trazia um de excelente remédio para não sei que perturbações
gástricas; recomendava porém, às senhoras que o não tomassem, em estado de
gravidez, poio risco que corriam de abortar... O remédio não tinha outro fin1 senão
justamente este mas a policia ficava sem haver por onde pegar do invento e do
inventor. Era assim, por meios astutos e grande dissimulação, que o remédio se
oferecia às senhoras cansadas de aturar crianças.
A moeda falsa, que previne a miséria, não a previne para sempre visto que a
polícia tem o poder iníquo de interromper os estudos de gravura e meter toda uma
academia na Detenção. Já li que se trata de demolir caracteres, e também que a
autoridade está atacando o capital. Eu, em se me falando esta linguagem, fico do
lado do capital e dos caracteres. Que pode, sem eles, uma sociedade?
Um criado meu, que perdeu tudo o que possuía na compra de desventuras...
perdoem-lhe; é um pobre homem que fala mal. Ensinei-lhe a correta pronúncia de
debêntures, mas ele disse-me que desventuras é o que elas eram, desventuras e
patifarias. Pois esse criado também defende o capital; a diferença é que não se
acusa a si de atacar o dos outros. e sim aos outros de lhe terem levado o seu.
Quanto aos caracteres, entendo que, se alguma cousa quer demolir não são os
caracteres, mas as próprias caras, que são os caracteres externos, e não o faz por
medo da polícia.
Lê tudo o que os jornais publicam, este homem. Foi ele que me deu notícia da
nova denúncia contra a Geral; ele chama-lhe nova. não sei se houve outra. Contou-
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me também uma história de discursos, paraninfos e retratos, e mais um contrabando
de objetos de prata dentro de um canapé velho.
— Não ganho dinheiro com isto, conclui ele, mas consolo-me das minhas
desventuras.
— Debêntures, José Rodrigues.
[116]
[5 fevereiro]
Contaram algumas folhas esta semana, que um homem, não querendo pagar
por um quilo de carne preço superior ao taxado pela prefeitura, ouvira do açougueiro
que poderia pagar o dito preço, mas que o quilo seria mal pesado.
Pára, amigo leitor; não te importes com o resto das cousas, nem dos homens.
Com um osso, queria o outro reconstruir um animal; com aquela só palavra,
podemos recompor um animal, uma família, uma tribo, uma nação, um continente de
animais. Não é que a palavra seja nova. E menos velha que o diabo, mas é velha.
Creio que no tempo das libras, já havia libras mal pesadas, e até arrobas. O nosso
erro é crer que inventamos, quando continuamos, ou simplesmente copiamos. Tanta
gente pasma ou vocifera diante de pecados, sem querer ver que outros iguais
pecados se pecaram, e ainda outros se estão pecando, por várias outras terras
pecadoras.
Andamos em boa companhia. Não nos hão de lapidar por atos que são antes
efeito de uma epidemia do tempo. Ou lapidem-nos, mas no sentido em que se lapida
um diamante, para se lhe deixar o puro brilho da espécie. Neste ponto, força é
confessar que ainda há por aqui impurezas e defeitos graves; mas o belo diamante
Estrela do Sul, que hoje pertence a não sei que coroa européia, não foi achado na
Bagagem prestes a ser engastado, mas naturalmente bruto. Há impurezas. Há
inépcia, por exemplo, muita inépcia. Quando não é inépcia, são inadvertências.
Apontam-se diamantes que tanto têm de finos como de pataus, e só o longo estudo
da mineralogia poderá :lar a chave da contradição.
Mas, sursum corda, como se diz na missa. Subamos ao alto valor espiritual da
resposta do açougueiro. Um quilo mal pesado. Pela lei, um aquilo mal pesado não é
tudo, são novecentos e tantas gramas, ou só novecentos. Mas a persistência do
nome é que dá a grande significação da palavra e a conseqüente teoria. Trata-se de
uma idéia que o vendedor e o comprador entendem, posto que legalmente não
exista. Eles crêem e juram que há duas espécies de quilo, — o de peso justo e o mal
pesado. Perderão a carne ou o preço, primeiro que a convicção.
Ora bem, não será assim com o resto? Que são notas falsas, se acaso estão
de acordo com as verdadeiras, e apenas se distinguem delas por uma tinta menos
viva, ou por alguns pontos mais ou menos incorretos? Falsas seriam, se parecessem
tanto com as outras, como um rótulo de farmácia com um bilhete do Banco Emissor
de Pernambuco, para não ir mais longe; mas se entre as notas do mesmo banco
houver apenas diferenças miúdas de cor ou de desenho, as chamadas falsas estão
para as verdadeiras, como o quilo mal pesado para o quilo de peso justo. Excluo
naturalmente o caso de emissões clandestinas, porque as notas de tais emissões
nunca se poderão dizer mal pesadas. O peso é o mesmo. A alteração única está no
acréscimo do mantimento, determinado pelo acréscimo dos quilos. Quanto ao mais,
falsas ou verdadeiras, valha-nos aquela benta francesia que diz que tout finit par des
chansons.
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Pañuelo a la cintura,
Pañuelo al cuello,
Tantos pañuelos!
Saiam donde for, basta que enfeitem a moça andaluza. Não lhe faltarão
guitarras nem guitarreiros, que levantem até a lua os seus méritos, ainda que eles
sejam mal pesados. Que valem cinqüenta ou cem gramas de menos a um
merecimento, se lhe não tiram este nome? Tudo está no nome. Vi estadistas que
tinham de ciência política um quilo muito mal pesado, e nunca os vi gritar contra o
açougueiro; alguns acabaram crendo que o peso era justo, outros que até traziam
um pedaço de quebra...
— Isto prova, interrompe-me aqui o açougueiro, que o senhor entende pouco
do que escreve. Se realmente tivesse idéias claras saberia que não há só quilos mal
pesados; também os há bem pesados. Mas quem os recebe da segunda classe, não
corre às folhas públicas. Creia-me, isto de filosofia não se faz só com a pena no
papel mas também com o facão na alcatra. Saiba que o mundo é uma balança, em
que se pesam alternadamente aqueles dous quilos, entre brados de alegria e de
indignação. Para mim, tenho que o quilo mal pesado foi inventado por Deus, e o
bem pesado pelo Diabo, mas os meus fregueses pensam o contrário, e daí um povo
de cismáticos. uma raça perversa e corrupta...
— Bem; faça o resto da crônica.
[117]
[12 fevereiro]
Faleci ontem, pelas sete horas da manhã. Já se entende que foi sonho; mas
tão perfeita a sensação da morte, a despegar-me da vida tão ao vivo o caminho do
céu, que posso dizer haver tido um anteposto da bem-aventurança.
Ia subindo, ouvia já os coros de anjos, quando a própria figura do Senhor me
apareceu em pleno infinito. Tinha uma ânfora nas mãos, onde espremera algumas
dúzias de nuvens grossas, e inclinava-a sobre esta cidade, sem esperar procissões
que lhe pedissem chuva. A sabedoria divina mostrava conhecer bem o que convinha
ao Rio de Janeiro; ela dizia enquanto ia entornando a ânfora:
— Esta gente vai sair três dias à rua com o furor que traz toda a restauração.
Convidada a divertir-se no inverno, preferiu o verão não por ser melhor, mas por ser
a própria quadra antiga, a do costume. a do calendário, a da tradição, a de Roma, a
de Veneza. a de Paris. Com temperatura alta, podem vir transtornos de saúde, —
algum aparecimento de febre, que os seus vizinhos chamem logo amarela, não lhe
podendo chamar pior... Sim, chovamos sobre o Rio de Janeiro.
Alegrei-me com isto, posto já não pertencesse à terra. Os meus patrícios iam
ter um bom carnaval, — velha festa, que está a fazer quarenta anos. se já os não
fez. Nasceu um pouco por decreto, para dar cabo do entrudo, costume velho, datado
da colônia e vindo da metrópole. Não pensem os rapazes de vinte e dous anos que
o entrudo era alguma cousa semelhante às tentativas de ressurreição,
empreendidas com bisnagas. Eram tinas d'água, postas na rua ou nos corredores,
dentro das quais metiam à força um cidadão todo, — chapéu, dignidade e botas.
Eram seringas de lata; eram limões de cera. Davam-se batalhas porfiadas de casa a
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casa, entre a rua e as janelas, não contando as bacias d'água despejadas a traição.
Mais de uma tuberculose caminhou em três dias o espaço de três meses.
Quando menos, nasciam as constipações e bronquites, ronquidões e tosses.
e era a vez dos boticários, porque, naqueles tempos infantes e rudes, os
farmacêuticos ainda eram boticários.
Cheguei a lembrar-me, apesar de ir caminho do céu, dos episódios de amor
que vinham com o entrudo. O limão de cera, que de longe podia escalavrar um olho,
tinha um ofício mais próximo e inteiramente secreto. Servia a molhar o peito das
moças; era esmigalhado nele pela mão do próprio namorado, maciamente,
amorosamente, interminavelmente ...
Um dia veio, não Malesherbes, mas o carnaval, e deu à arte da loucura uma
nova feição. A alta roda acudiu de pronto; organizaram-se sociedades, cujos nomes
e gestos ainda esta semana foram lembrados por um colaborador da Gazeta. Toda a
fina flor da capital entrou na dança. Os personagens históricos e os vestuários
pitorescos, um doge, um mosqueteiro, Carlos V, tudo ressurgia às mãos dos
alfaiates, diante de figurinos, à força de dinheiro. Pegou o custo das sociedades, as
que morriam eram substituídas, com vária sorte, mas igual animação.
Naturalmente, o sufrágio universal, que penetra em todas as instituições deste
século, alargou as proporções do carnaval, e as sociedades multiplicaram-se, com
os homens. O gosto carnavalesco invadiu todos os espíritos, todos os bolsos, todas
as ruas. Evohé! Bacchus est roi! dizia um coro de não sei que peça do Alcazar
Lírico, -— outra instituição velha, mas velha e morta. Ficou o coro, com esta simples
emenda: Evohé! Momus est roi!
Não obstante as festas da terra, ia eu subindo. subindo, até que cheguei à
porta do céu, onde S. Pedro parecia, aguardar-me, cheio de riso.
— Guardaste para ti tesouros no céu ou na terra? perguntou-me.
Se crer em tesouros escondidos na terra é o mesmo que escondê-los,
confesso o meu pecado, porque acredito nos que estão no morro do Castelo, como
nos cento e cinqüenta contos fortes do homem que está preso em Valhadolide. São
fortes; segundo o meu criado José Rodrigues. quer dizer que são trezentos contos.
Creio neles. Em vida fui amigo de dinheiro, mas havia de trazer mistério. As grandes
riquezas deixadas no Castelo pelos jesuítas foram uma das minhas crenças da
meninice e da mocidade; morri com ela, e agora mesmo ainda a tenho. Perdi saúde,
ilusões. amigos e até dinheiro, mas a crença nos tesouros do Castelo não a perdi.
Imaginei a chegada da ordem que expulsava os jesuítas. Os padres do colégio não
tinham tempo nem me os de levar as riquezas consigo; depressa, depressa, ao
subterrâneo. venham os ricos cálices de prata, os cofres de brilhantes, safiras,
corais, as dobras e os dobrões, os vastos sacos cheios de moeda, cem, duzentos,
quinhentos sacos. Puxa, puxa este Santo Inácio de ouro maciço, com olhos de
brilhantes, dentes de pérolas, toca a esconder, a guardar, a fechar...
— Pára, interrompeu-me S. Paulo; falas como se estivesses a representar
alguma cousa. A imaginação dos homens é perversa. Os homens sonham
facilmente com dinheiro. Os tesouros que valem são os que se guardam no céu.
onde a ferrugem os não come.
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— Não era o dinheiro que me fascinava em vida, era o mistério. Eram os trinta
ou quarenta milhões de cruzados escondidos, há mais de século, no Castelo; são os
trezentos contos do preso de Valhadolide. O mistério, sempre o mistério.
— Sim, vejo que amas o mistério. Explicar-me-ás este de um grande número
de almas que foram daqui para o Brasil e tornaram sem se poderem incorporar?
— Quando, divino apóstolo?
— Ainda agora.
— Há de ser obra de um médico italiano, um doutor ... esperai... creio que
Abel, um doutor Abel, sim Abel... É um facultativo ilustre. Descobriu um processo
para esterilizar as mulheres. Correram muitas, dizem; afirma-se que nenhuma pode
já conceber; estão prontas.
— As pobres almas voltavam tristes e desconsoladas; não sabiam a que
atribuir essa repulsa. Qual é o fim do processo esterilizador? — Político. Diminuir a
população brasileira, à proporção que a italiana vai entrando; idéia de Crispi, aceita
por Giolitti, confiada a Abel ...
— Crispi foi sempre tenebroso.
— Não digo que não; mas, em suma, há um fim político, e os fins políticos são
sempre elevados ... Panamá, que não tinha fim político ...
— Adeus, tu és muito falador. O céu é dos grandes silêncios contemplativos.
[118]
[19 fevereiro]
É meu velho costume levantar-me cedo e ir ver as belas rosas, frescas
murtas, e as borboletas que de todas as partes correm a amar no meu jardim. Tenho
particular amor às borboletas. Acho nelas algo das minhas idéias, que vão com igual
presteza, senão com a mesma graça. Mas deixemo-nos de elogios próprios; vamos
ao que me aconteceu ontem de manhã.
Quando eu mais perdido estava a mirar uma borboleta e uma idéia, parado no
jardim da frente, ouvi uma voz na rua, ao pé da grade:— Faz favor?
Não é preciso mais para fazer fugir uma idéia. A minha escapou-me, e tive
pena. Vestia umas asas de azul-claro, com pintinhas amarelas, cor de ouro. Cor de
ouro embora, não era a mesma (nem para lá caminhava) do banqueiro
Oberndcerffer, que depôs agora no processo Panamá. Esse cavalheiro foi quem deu
à companhia a idéia de emissão de bilhetes de loteria e o respectivo plano, para
falar como no Beco das Cancelas. Pagaram-lhe só por esta idéia dous milhões de
francos. O presidente do tribunal ficou assombrado. Mas um dos diretores, réu no
processo, explicou o caso dizendo que o banqueiro tinha grande influência na praça,
e que assim trabalharia a favor da companhia, em vez de trabalhar contra. Teve uma
feliz idéia, disse o juiz ao depoente; mas, para os acionistas, era melhor que não a
tivesse tido. O depoente provou o contrário e retirou-se.
Tivesse eu a mesma idéia, e não a venderia por menos. Olhem, não fui eu
que ideei esta outra loteria, mais modesta, do Jardim Zoológico; mas, se o houvesse
feito, não daria a minha idéia por menos de cem contos de réis; podia fazer algum
abate, cinco porcento, digamos dez. Relativamente não se pode dizer que fosse
caro. Há invenções mais caras.
Mas, vamos ao caso de ontem de manhã. Olhei para a porta do jardim, dei
com um homem magro, desconhecido, que me repetiu cochilando:
— Faz favor?
37
Cheguei a supor que era uma relíquia do carnaval; erro crasso, porque as
relíquias do carnaval vão para onde vão as luas velhas. As luas velhas, desde o
princípio do mundo, recolhem-se a uma região que fica à esquerda do infinito,
levando apenas algumas lembranças vagas deste mundo. O mundo é que não
guarda nenhuma lembrança delas. Nem os namorados têm saudades das boas
amigas, que, quando eram moças e cheias, tanta vez os cobriram com o seu longo
manto transparente. E suspiravam por elas; cantavam à viola mil cantigas saudosas,
dengosas ou simplesmente tristes; faziam-lhes versos, se eram poetas:
Era no outono, quando a imagem tua,
À luz da lua...
C'etait dans la nuit brume,
Sur le clocher jauni,
La lune...
Todos os metros, todas as línguas, enquanto elas eram moças; uma vez
encanecidas, adeus. E lá vão elas para onde vão as relíquias do carnaval — não sei
se mais esfarrapados, nem mais tristes; mas vão, todas de mistura, trôpegas,
deixando pelo caminho as metáforas e os descanses de poetas e namorados.
Reparando bem, vi que o homem não era precisamente um trapo
carnavalesco. Trazia na mão um papel, que me mostrava de longe, — a princípio,
calado, — depois dizendo que era para mim. Que seria? Alguma carta, — talvez" um
telegrama' Que me dirá esse telegrama? Agora mesmo, houve em Blumenau a
prisão do Sr. Lousada. Telegrafaram a 16 esta notícia, acrescentando que "o povo
dá demonstração sensível de indignação". Para quem conhece o técnica dos
telegramas, o povo estava jogando o bilhar. Tanto é assim que o próprio telegrama,
para suprir a dubiedade e o vago daquelas palavras, concluiu com estas: "esperamse
acontecimentos gravíssimos". Sabe-se que o superlativo paga o mesmo que o
positivo; naturalmente o telegrama não custou mais caro.
Vejam, entretanto, como me enganei. Realmente, houve acontecimentos
gravíssimos; a 17 telegrafaram que vinte homens armados feriram gravemente o
comissário da polícia: esperavam-se outras cenas de sangue. Vinte homens não são
o algarismo ordinário de um povo; mas eram graves os sucessos. Outro telegrama,
porém, não fala de tal ataque; diz apenas que uma comissão do povo foi exigir
providências do juiz de direito, que este pedia a coadjuvação do povo para manter a
ordem, e ficou solto Lousada. Tudo isto, se não é claro, traz-me recordações da
infância, quando eu ia ao teatro ver uma velha comédia de Scribe, o Chapéu de
Palha da Itália. Havia nela um personagem que atravessa os cinco atos, exclamando
alternadamente, conforme os lances da situação: — "Meu genro, tudo está desfeito!"
— "Meu genro, tudo está reconciliado!"
— Telegrama? perguntei.
— Não, senhor, disse o homem.
— Carta?
— Também não. Um papel.
Caminhei até a porta. O desconhecido, cheio de afabilidade que lhe agradeço
nestas linhas, entregou-me um pedacinho de papel impresso, com alguns dizeres
manuscritos. Pedi-lhe que esperasse; respondeu-me que não havia resposta, tirou o
chapéu, e foi andando. Lancei os olhos ao papel, e vi logo que não era para mim,
38
mas para o meu vizinho. Não importa; estava aberto e pude lê-lo. Era uma intimação
da intendência municipal.
Esta intimação começava dizendo que ele tinha de ir pagar a certa casa, na
Rua Nova do Ouvidor, a quantia de mil e quinhentos réis, preço da placa do número
da casa em que mora. Concluí que também eu teria de pagar mil e quinhentos
quando recebesse igual papel, porque a minha casa também recebera placa nova.
O papel era assinado pelo fiscal. Achei tudo correto, salvo o ponto de ir pagar a um
particular, e não à própria intendência; mas a explicação estava no fim.
Se a pessoa intimada não pagasse no prazo de três dias, incorreria na multa
de trinta mil-réis. Estaquei por um instante; três dias, trinta mil-réis, por uma placa,
era um pouco mais do que pedia o serviço, — um serviço que, a rigor, a intendência
é quê devia pagar. Mas estava longe dos meus espantos. Continuei a leitura, e vi
que, no caso de reincidência, pagaria o dobro (sessenta mil-réis) e teria oito dias de
cadeia. Tudo isto em virtude de um contrato.
O papel e a alma caíram-me aos pés. Oito dias de cadeia e sessenta mil-réis
se não pagar uma placa de mil e quinhentos! Tudo por contrato. Afinal apanhei o
papel, e ainda uma vez o li; meditei e vi que o contrato podia ser pior, — podia
estatuir a perda do nariz, em vez da simples prisão. A liberdade volta; nariz cortado
não volta. Além disso, se Xavier de Maistre, em quarenta e dous dias de prisão,
escreveu uma obra-prima, por que razão, se eu for encarcerado por causa de placa,
não escreverei outra? Quem sabe se a falta da cadeia não é que me impede esta
consolação intelectual? Não, não há pena; esta cláusula do contrato é antes um
benefício.
Verdade é que um legista, amigo meu, afirma que não há carcereiro que
receba um devedor remisso de placas. Outro, que não é legista, mas é devedor, há
três meses, assevera que ainda ninguém o convidou a ir para a Detenção. A pena é
um espantalho. Que desastre! Justamente quando eu começava a achá-la útil. Pois
se não há cadeia de verdade, é caso de vistoria e demolição.
[119]
[26 fevereiro]
O que mais me encanta na humanidade, é a perfeição. Há um imenso conflito
de lealdades debaixo do sol. O concerto de louvores entre os homens pode dizer-se
que é já música clássica. A maledicência, que foi antigamente uma das pestes da
terra, serve hoje de assunto a comédias fósseis, a romances arcaicos. A dedicação,
a generosidade, a justiça, a fidelidade, a bondade, andam a rodo, como aquelas
moedas de ouro com que o herói de Voltaire viu os meninos brincarem nas ruas de
El-Dorado.
A organização social podia ser dispensada. Entretanto, é prudente conservá-
la por algum tempo, como um recreio útil. A invenção de crimes, para serem
publicados à maneira de romances, vale bem o dinheiro que se gasta com a
segurança e a justiça públicas. Algumas dessas narrativas são demasiado longas e
enfadonhas, como a Maria de Macedo, cujo sétimo volume vai adiantado; mas isso
mesmo é um benefício. Mostrando aos homens os efeitos de um grande enfado,
prova-se-lhes que o tipo de maçante, — ou cacete, como se dizia outrora — é dos
piores deste mundo, e impede-se a volta de semelhante flagelo. Uma das boas
instituições do século é a falange das cousas perdidas, composta dos antigos
gatunos e incumbida de apanhar os relógios e carteiras que os descuidados deixam
cair, e restituí-los a seus donos. Tudo efeito de discursos morais.
39
Posto que inútil, pela ausência de crimes, o júri é ainda uma excelente
instituição. Em primeiro lugar, o sacrifício que fazem todos os meses alguns
cidadãos em deixarem os seus ofícios e negócios para fingirem de réus, é já um
grande exemplo de civismo. O mesmo direi dos jurados. Em segundo lugar, o torneio
de palavras a que dá lugar entre advogados, constitui uma boa escola de
eloqüência. Os jurados aprendem a responder aos quesitos, para o caso de
aparecer algum crime. Às vezes, como sucedeu há dias, enganam-se nas respostas,
e mandam um réupara as galés, em vez de o devolverem à família; mas, como são
simples ensaios, esse mesmo erro é benefício, para tirar aos homens alguma
pontinha de orgulho de sapiência que porventura lhes haja ficado.
Mas a perfeição maior, a perfeição máxima, é a de que nos deu notícia esta
semana o cabo submarino. O grão-turco, por ocasião do jubileu do papa, escreveulhe
uma carta autografada de felicitações acompanhada de presentes de alta valia.
Não se pode dizer que sejam cortesias temporais. O papa já não governa, como o
sultão da Turquia. A fineza é o chefe espiritual, tão espiritual como o jubileu. Já
cismáticos e heréticos tinham feito a mesma cousa; faltava o grão turco, e já não
falta. Alá cumprimentou o Senhor, M2omé a Cristo. Tudo o que era contraste, fez-se
harmonia, o oposto ajustou-se a oposto. Ondas e ondas de sangue custou o conflito
de dous livros A cruz e o crescente levaram atrás de si milhares e milhares de
homens. Houve cóleras grandes. Houve também grandes e pequeno poetas que
cantaram os feitos e os sentimentos evangélicos, ora pela nota marcial, ora pela
nota desdenhosa. Um deles dedilhou no alaúde romântico a história daquele sultão
que requestava uma cantarina de Granada, e lhe prometia tudo:
Je donneirais sans retour
Mon royaume pour Alédine,
Médine pour ton amour.
— Rei sublime, faze-te primeiramente cristão, respondeu a bela Joana; danado é o
prazer que uma mulher pode achar nos braços de um incrédulo.
Tempos de Granada! já não é preciso que os sultões se cristianizem. Agora é
a Sublime Porta, com a sua chancelaria, as suas circulares diplomáticas, os seus
gestos ocidentais, que desaprendeu o crê ou morre para celebrar a festa de um
grande incrédulo do Corão. Onde vão as guerras de outrora? Onde param os
alfanjes tintos de sangue cristão? Naturalmente estão com as espadas tintas de
sangue muçulmano. Vivam os vivos!
Eu, se pudesse dar um conselho em tais casos, propunha a emenda do
breviário. Glória a Deus nas alturas, deve ficar; mas para que acrescentar: e na terra
paz aos homens? A paz aí está, completa, universal, perene. Vede Ubá. Vede que
magnífico espetáculo deu ela a todos os municípios do Estado mineiro, fazendo uma
eleição tranqüila, sem as ruins paixões que corrompem os melhores sentimentos
deste mundo. O governador de S. Paulo achou-se em casa com cerca de oitenta
bombons de dinamite, — excelente produto da indústria local, que conseguiu reduzir
um explosivo tão violento a simples doce de confeitaria.
Não falo de Pernambuco, nem do Rio Grande do Sul, nem das amazonas de
Daomé, nem das danças de Madri, a que chamaram tumultos, por ignorância do
espanhol, nem da Guaratiba, nem de tantas outras partes e artes, que são
consolações da nossa humanidade triunfante.
40
Mas a paz não basta. Falta dizer da alegria. Oh! doce alegria dos corações!
Um só exemplo, e dou fim a isto. Aqui está o parecer dos síndicos da Geral,
publicado sexta-feira. Diz que entre os nomes da proposta da concordata há alguns
jocosos e outros obscenos. O parecer censura esse gênero de literatura
concordatária. Escrito com a melancolia que a natureza, para realçar a alegria do
século, pôs na alma de todos os síndicos, o parecer não compreende a vida e as
suas belas flores. Isto quanto aos nomes jocosos. Pelo que toca aos obscenos, é
preciso admitir que, assim como há bocas recatadas, também as há lúbricas. A
alegria tem todas as formas, não se há de excluir uma, por não ser igual às outras. A
monotonia é a morte. A vida está na variedade.
Demais, que se há de fazer com acionistas que ainda devem de entradas
oitenta e cinco mil oitocentos e quarenta e seis contos, cento e sessenta mil e
duzentos réis (85.846:160 200)? Rir um pouco, e bater-lhes na barriga. Ora, cada
um ri com a boca que tem. Mas a prova de que a obscenidade, como a jocosidade,
formas de alegria, são de origem legítima e autêntica, é que todas as firmas foram
legalmente reconhecidas. Quando a alegria entra nos cartórios, é que a tristeza fugiu
inteiramente deste mundo.
[120]
[5 março]
Quando os jornais anunciaram para o dia 1.0 deste mês uma parede de,
açougueiros, a sensação que tive foi mui diversa da de todos os meus concidadãos.
Vós ficastes aterrados; eu agradeci o acontecimento ao céu. Boa ocasião para
converter esta cidade ao vegetarismo.
Não sei se sabem que eu era carnívoro por educação e vegetariano por
princípio. Criaram-me a carne, mais carne, ainda carne, sempre carne. Quando
cheguei ao uso da razão e organizei o meu código de princípios, incluí nele o
vegetarismo; mas era tarde para a execução. Fiquei carnívoro. Era a sorte humana;
foi a minha. Certo, a arte disfarça a hediondez da matéria. O cozinheiro corrige o
talho. Pelo que respeita ao boi, a ausência do vulto inteiro faz esquecer que a gente
come um pedaço de animal. Não importa, o homem é carnívoro.
Deus, ao contrário, é vegetariano. Para mim, a questão do paraíso terrestre
explica-se clara e singelamente pelo vegetarismo. Deus criou o homem para os
vegetais, e os vegetais para o homem; fez o paraíso cheio de amores e frutos, e pôs
o homem nele. Comei de tudo, disse-lhe, menos do fruto desta árvore. Ora, essa
chamada árvore era simplesmente carne, um pedaço de boi, talvez um boi inteiro.
Se eu soubesse hebraico, explicaria isto muito melhor.
Vede o nobre cavalo! o paciente burro! o incomparável jumento! Vede o
próprio boi! Contentam-se todos com a erva e o milho. A carne, tão saborosa à onça,
— e ao gato, seu parente, pobre, — não diz cousa nenhuma aos animais amigos do
homem, salvo o cão, exceção misteriosa, que não chego a entender. Talvez, por
mais amigo que todos, comesse o resto do primeiro almoço de Adão, de onde lhe
veio igual castigo.
Enfim, chegou o dia 10 de março; quase todos os açougues amanheceram
sem carne. Chamei a família; com um discurso mostrei-lhe que a superioridade do
vegetal sobre o animal era tão grande, que devíamos aproveitar a ocasião e adotar o
são e fecundo principio vegetariano. Nada de ovos, nem leite, que fediam a carne.
Ervas, ervas santas, puras, em que não há sangue" todas as variedades das
plantas, que não berram nem esperneiam, quando lhes tiram a vida. Convenci a
41
todos; não tivemos almoço nem jantar, mas dous banquetes. Nos outros dias a
mesma cousa.
Não desmaies, retalhistas, nesta forte empresa. Dizia um grande filósofo que
era preciso recomeçar o entendimento humano. Eu creio que o estômago também,
porque não há bom raciocínio sem boa digestão, e não há boa digestão com a
maldição da carne. Morre-se de porco. Quem já morreu de alface? Retalhistas, meus
amigos, por amor daquele filósofo, por amor de mim, continuei a resistência. Os
vegetarianos vos serão gratos. Tereis morte gloriosa e sepultura honrada, com ervas
e arbustos. Não é preciso pedir, como o poeta, que vos plantem um salgueiro no
cemitério; plantar é conosco; nós cercaremos as vossas campas de salgueiros
tristes e saudosos. Que é nossa vida? Nada. A vossa morte, porém, será a grande
reconstituição da humanidade. Que o Senhor vo-la dê suave e pronta.
Compreende-se que, ocupado com esta passagem de doutrina à prática,
pouco haja atendido aos sucessos de outra espécie, que, aliás, são filhos da carne.
Sim, o vegetarismo é pai dos simples. Os vegetarianos não se batem; têm horror ao
sangue. Gostei, por exemplo, de saber que a multidão, na noite do desastre do Liceu
de Artes e Ofícios, atirou-se ao interior do edifício para salvar o que pudesse; é ação
própria da carne, que avigora o ânimo e a cega diante dos grandes perigos. Mas,
quando li que, de envolta com ela, entraram alguns homens, não para despejar a
casa, mas para despejar as algibeiras dos que despejavam a casa, reconheci
também aí o sinal do carnívoro. Porque o vegetariano não cobiça as causas alheias;
mal chega a amar as próprias. Reconstituindo segundo o plano divino, anterior à
desobediência, ele torna às idéias simples e desambiciosas que o Criador incutiu no
primeiro homem.
Se não pratica o furto, é claro que o vegetariano detesta a fraude e não
conhece a vaidade. Daí um elogio a mim mesmo. Eu não me dou por apóstolo único
desta grande doutrina. Creio até que os temos aqui, anteriores a mim, e, — singular
aproximação! — no próprio conselho municipal. Só assim explico a nota jovial que
entra em alguns debates sobre assuntos graves e gravíssimos.
Suponhamos a instrução pública. Aqui está um discurso, saído esta semana,
mas proferido muito antes do dia 1.1) de março; discurso meditado, estudado, cheio
de circunspeção (que o vegetariano não repele, ao contrário) e de muitas
pontuações alegres, que são da essência da nossa doutrina. Tratava-se dos jardins
da infância. O Sr. Capelli notava que tais e tantos são os dotes exigidos nas
jardineiras, beleza, carinho, idade inferior a trinta anos, boa voz, canto, que
dificilmente se poderão achar neste país moças em quantidade precisa
Não conheço o Sr. Maia Lacerda, mas conheço o mundo e os seus
sentimentos de justiça, para me não admirar do cordial não apoiado com que ele
repeliu a asseveração do Sr. Capelli. Não contava com o orador, (que aparou o
golpe galhardamente: "Vou responder ao se não apoiado, disse ele. As que
encontramos, remetendo-as para lá, receio, que, bonitas como soem ser as
brasileiras, corram o risco de não voltar mais, e sejam apreendidas como belos
espécimens do tipo americano."
Outro ponto alegre do discurso é o que trata da necessidade de ensinar a
língua italiana, fundando-se em que a colônia italiana aqui é numerosa e crescente,
e espalha-se por todo o interior. Parece que a conclusão devia ser o contrário; não
ensinar italiano ao povo, ante ensinar a nossa língua aos italianos. Mas, posto que
isto não tenha nada com o vegetarismo, desde que faz com que o povo possa ouvi
as óperas sem libreto na mão, é um progresso.
42
[121]
[12 de março]
Que cuidam que me ficou dos últimos acontecimentos Amazonas? Um verbo:
desaclamar-se. Está em um dos telegrama do Pará e refere-se ao cidadão que, por
algumas horas, estivera com o poder nas mãos. "Tendo em ofício participado a sua
aclamação marcado o prazo de 12 horas para a retirada do governador, de clamouse
em seguida por outro ofício..."
Pode ser (tudo é possível) que o intuito da palavra fosse ante gracejar com a
ação; mas as palavras, com os livros, têm os seus fados, e os desta serão
prósperos. É uma porta aberta para as restituições políticas. Resignar, como
abdicar, exprime a entrega de um poder legítimo, que o uso tornou pesado, ou os
acontecimentos fizeram caduco. Mas, como se há de exprimir a restituição do poder
que a aclamação de alguns entregou por horas a alguém? Desaclamar-se. Não vejo
outro modo.
Mérimée confessou um dia que da história só dava apreço às anedotas. Eu
nem às anedotas. Contento-me com palavras. Palavra brotada no calor do debate,
ou composta por estudo, filha da necessidade, oriunda do amor ao requinte, obra do
acaso, qualquer que seja a sua certidão de batismo, eis o que me interessa na
história dos homens. Desta maneira fico abaixo do outro, que só curava de
anedotas. Sim, meus amigos, nunca me vereis vencido por ninguém. Alta ou baixa
que seja uma idéia, acreditei que tenho outra mais alta ou mais baixa. Assim o autor
da Crônica de Carlos IX dava Tucídides por umas memórias autênticas de Aspásia
ou de um escravo de Péricles. Eu dou as memórias deste escravo pela notícia da
palavra que Péricles aplicava, em particular, aos cacetes e amoladores de seu
tempo.
Que valem, por exemplo, todas as lutas do nosso velho parlamentarismo, em
comparação com esta palavra: inverdade? Inverdade é o mesmo que mentira, mas
mentira de luva de pelica. Vede bem a diferença. Mentira só, nua e crua, dada na
bochecha, dói. Inverdade, embora dita com energia, não obriga a ir aos queixos da
pessoa que a profere. — "Perdoe-me V. Ex.a, mas o que acaba de dizer é uma
inverdade; nunca o presidente da Paraíba afirmou tal cousa." — "Inverdade é a sua;
desculpe-me que lhe diga em boa amizade; V. Ex.a neste negócio tem espalhado as
maiores inverdades possíveis! para não ir mais longe, o crime atribuído ao redator
do Imparcial... " — "São pontos de vista; peço a palavra."
Parece que inexatidão bastava ao caso; mas é preciso atender ao uso das
palavras. Não cansam só as línguas que as dizem; elas próprias gastam-se. Quando
menos, adoecem. A anemia é um dos seus males freqüentes; o esfalfamento é
outro. Só um longo repouso as pode restituir ao que eram, e torná-las prestáveis.
Não achei a certidão de batismo da inverdade; pode ser até que nem se
batizasse. Não nasceu do povo, isso creio. Entretanto, esta moça, pode ainda casar,
conceber e aumentar a família do léxico. Ouso até afirmar que há nela alguns sinais
de pessoa que está de esperanças. E o filho é macho; e há de chamar-se
inverdadeiro. Não se achará melhor eufemismo de mentiroso; é ainda mais doce que
sua mãe, posto que seja feio de cara; mas quem vê cara, não vê corações.
Vi muitos outros viventes de igual condição, que mereceriam algumas linhas;
mas o tempo urge, e fica para outra vez. Nem há só viventes separados; tenho visto
irmãos, fileira de irmãos, saídos da mesma coxa ou do mesmo útero, com o nome de
uma só família apenas diferençado pelo Sufixo, cuja significação não alcanço. Um
exemplo, e despeço-me.
43
A chefia, e particularmente a chefia de polícia, é uma dona robusta, de
grandes predicados e alto poder. Supus por muitos anos que era filha única do velho
chefe; mas os tempos me foram mostrando que não. Tem irmãs, tem irmãos, tem
chefação, pessoa de igual ou maior força, porque a desinência é mais enérgica. Tem
chefança. Vi muitas vezes esta outra senhora, à frente da polícia ou de um partido,
disputar às irmãs o domínio exclusivo, sem alcançar mais que comparti-lo com elas.
Vi ainda a nobre chefatitra, tão válida e tão ambiciosa como as outras. Dos irmãos
só conheço o esbelto chefiado, que, alegando o sexo, pretendeu sempre a chefança,
a chefatura, a chefação ou a chefia da família.
Parece que, à semelhança dos filhos de Jacó, invejosos de José, que era
particularmente amado do pai, os filhos e filhas do velho chefe, verido a predileção
deste pela linda chefia, cuidaram de a matar. Estavam prestes a fazê-lo, quando
surgiu a idéia de a meter na cisterna, e dizê-la morta por uma fera, como na
Escritura; mas a vinda dos mesmos israelitas, com os seus camelos, carregados de
mirra e aromas ...
Velha imaginação, onde vais tu, pelos caminhos do sonho? Deixa os camelos
e a sua carga, deixa o Egito, fecha as asas, abre os olhos, desce; esta é a Rua do
Ouvidor, onde não se mata José nem chefia; mas unicamente o tempo, esse bom e
mau amigo, que não tem pai, nem mãe, nem irmãos, e domina todo este mundo,
desde antes de Jacó até Deus sabe quando.
Para crônica, é pouco; mas para matar o tempo, sobra.
[122]
[26 março]
Entrou o outono. Despontam as esperanças de ouvir Sarah Bemhardt e
Falstaff. A arte virá assim, com as suas notas de ouro, cantada e faladas, trazer à
nossa alma aquela paz que alguns homens de boa vontade tentaram restituir à alma
Tio-grandense, reunindo-se quinta feira na Rua da Quitanda.
Creio que a arte há de ser mais feliz que os homens. Da reunião destes
resultou saber-se que não havia solução prática de acordo com os seus intuitos.
Talvez os convidados que lá não foram e mandara os seus votos em favor do que
passasse, já adivinhassem isso mesmo Viram de longe o texto da moção final, e a
assinaram de véspera Há desses espíritos que, ou por sagacidade pronta, ou por
esforço grande, lêem antes da meia-noite as palavras que a aurora tem d trazer
escritas na capa vermelha e branca, saúdam as estrelas, fecha as janelas e vão
dormir descansados. Alguns sonham, e creio que sonhos generosos; mas a
imaginação e o coração não mudam a cor rente das cousas, e os homens acordam
frescos e leves, sem haver debatido nem incandescido nada.
Comecemos por pacificar-nos. Paz na terra aos homens de boa vontade — é
a prece cristã; mas nem sempre o céu a escuta, e, apesar da boa vontade, a paz
não alcança os homens e as paixões os dilaceram. Para este efeito, a arte vale mais
que o céu. A própria guerra, cantada por ela, dá-nos a serenidade que não achamos
na vida. Venha a arte, a grande arte, entre o fim do outono e o princípio do inverno.
Confiemos em Sarah Bernhardt com todos os seus ossos e caprichos, mas
com o seu gênio também. Vamos ouvir-lhe a prosa e o verso, a paixão moderna ou
antiga. Confiemos no grande Falstafl. Não é poético, decerto, aquele gordo Sir John;
afoga-se em amores lúbricos e vinho das Canárias. Mas tanto se tem dito dele,
depois que o Verdi o pôs em música, que mui naturalmente é obra-prima.
44
O pior será o libreto, que, por via de regra, não há de prestar; mas leve o
diabo libretos. Antes do dilúvio, — ou mais especificadamente, pelo tempo do
Trovador, dizia-se que o autor do texto dessa ópera era o único libretista capaz. Não
sei; nunca o li. O que me ficou é pouco para provar alguma cousa. Quando a cigana
cantava: Ai nostri monti ritorneremo, a gente só ouvia o vozeirão da Casaloni, uma
mulher que valia, corpo e alma, por uma companhia inteira. Quando Manrico rompia
o famoso: Di quella pira 1'orrendo fuoco, rasgaram-se as luvas com palmas ao
Tamberlick ou ao Mirate. Ninguém queria saber do Camarano, que era o autor dos
versos.
Resignemos ao que algum mau alfaiate houver cortado na capa magnífica de
Shakespeare. Têm-se aqui publicado notícias da obra nova, e creio haver lido que
um trecho vai ser cantado em concerto; mas eu prefiro esperar. Demais, pouco é o
tempo para ir seguindo esta outra guerra civil, a propósito do facultativo italiano, que
mostra ser patrício de Machiavelli. Fez o seu anúncio, e entregou a causa aos
adversários. Estes fazem, sem querer, o negócio dele: e se algum vai ficando
conhecido, a culpa é das cousas, não da intenção; não se pode falar sem palavras,
e as palavras fizeram-se para ser ouvidas. Não digo entendidas, posto que as haja
de fina casta, tais como a isquioebetomia, a isquiopubiotomia, a sinfisiotomia, a
cofarectomia, a histerectomin, a histerosalpingectomia, e outras que andam pelos
jornais, todas de raça grega e talvez do próprio sangue dos Atridas.
Tudo isto a propósito de um processo ignoto e célebre. Descobriu-se agora
(segundo li) que uma senhora já o conhece e emprega. Seja o que for, é uma
questão reduzida aos médicos; não passará aos magistrados. Vamos esquecendo; é
o nosso ofício.
Bem faz o Dr. Castro Lopes, que trabalha no silêncio, e de quando em
quando aparece com uma descoberta, seja por livro, ou por artigo. Anuncia-se agora
um volume de questões econômicas, em que ele trata, além de outras cousas, de
uma moeda universal. Um só rebanho e um só pastor, é o ideal da Igreja Católica.
Uma só moeda deve ser o ideal da igreja do diabo, porque há uma igreja do diabo,
no sentir de um grande padre. Venha, venha depressa esse volapuque das riquezas.
Não lhe conheço o tamanho; pode ser do tamanho universal o mesmo que
aconteceu com o volapuque. Acabo de ler que um dos mais influentes
propugnadores daquela língua reconhece a inutilidade do esforço. O comércio do
mundo inteiro não pega, e prefere os seus dizeres antigos às combinações dos que
gramaticaram aquele invento curioso. É que o artificial morre sempre, mais cedo ou
mais tarde.
[123]
[23 abril]
Eu, se tivesse de dar Hamlet em língua puramente carioca, traduziria a
célebre resposta do príncipe da Dinamarca: Words, words, words, por esta: Boatos,
boatos, boatos. Com efeito, não há outra que melhor diga o sentido do grande
melancólico. Palavras, boatos, poeira, nada, cousa nenhuma.
Toda a semana finda viveu disso, salvo a parte que não veio por' boatos, mas
por fatos, como o caso do coreto da Praça Tiradentes. Ninguém boquejou nada
sobre aquela construção; por isso mesmo deu de si uma porção de conseqüências
graves. Os boatos, porém, andavam a rodo, os rumores iam de ouvido em ouvido,
nas lojas, corredores, em casa, entre a pera e o queijo, entre o basto e a espadilha.
Conspirações, dissenções, explosões. Uns davam à distribuição dos boatos a forma
45
interrogativa, que é ainda a melhor de todas. Homem, será certo que X furtou um
lenço? O ouvinte, que nada sabe, nada afirma; mas aqui está como ele transmite a
notícia: — Parece que X furtou um lenço. Um lenço de seda? Provavelmente; não
valeria a pena furtar um lenço de algodão. A notícia chega à Tijuca com esta forma
definitiva: X furtou dous lenços, um de seda, e, o que é mais nojento, outro de
algodão, na Rua dos Ourives.
Não me digam que imito assim a fábula do marido e do ovo. Na fábula,
quando o marido chega a ter posto uma dúzia de ovos, há ao menos o único ovo de
galinha com que ele experimentou de manhã a discrição da esposa' Aqui não há
sequer as casacas. E, se não, vejam o que me aconteceu quarta-feira.
Estava à porta de uma farmácia, conversando com dous amigos sobre os
efeitos prodigiosos do quinino, quando apareceu outro velho amigo nosso, o qual
nos revelou muito à puridade que na quinta-feira teríamos graves acontecimentos, e
que nos acautelássemos. Quisemos saber o que era, instamos, rogamos, não
alcançamos nada. Graves acontecimentos. Ele falava de boa fé. Tinha a expressão
ingênua da pessoa que crê, e a expressão piedosa da pessoa que avisa. Retirou-se;
ficamos a conjeturar e chegamos a esta conclusão, que os sucessos anunciados
eram o desenlace fatal dos boatos que andavam na rua. Todas essas cegonhas
bateriam as asas à mesma hora, convertidas em abutres, que nos comeriam em
poucos instantes.
Para mistério, mistério e meio. Saí dali, corri à casa de um armeiro, onde
comprei algumas espingardas e bastante cartuchame. Além disso, com o pretexto de
saudar o dia 21 de abril, alcancei por empréstimo duas peças de artilharia. Assim
armado, recolhi-me a casa, jantei, digeri, e meti-me na cama. Naturalmente não
dormi; mas também não vi a aurora. nem o sol de quinta-feira. Portas e janelas
fechadas. Nenhum rumor em casa, comidas frias para não fazer fogo, que
denunciasse pelo fumo a presença de refugiados. Ensinei à família a senha
monástica; andávamos calados, interrompendo a silêncio de quando em quando
para dizermos uns aos outros que era preciso morrer. Assim se passou a quintafeira.
Na sexta-feira, pelas seis horas da manhã, ouvi tiros de artilharia. Ou é a
salva de Tiradentes, disse à família, ou é a revolução espanhola, inteiramente. A
constituição foi dada na mesma noite, contra a vontade de algumas pessoas, e
retirada no dia seguinte, depois de alguns lances próprios de tais crises, não por ser
constituição, visto que, dous anos depois, tínhamos outra, — mas naturalmente por
ser espanhola. De Espanha só mulheres, guitarras e pintores.
Tudo são aniversários. Que é hoje senão o dia aniversário natalício de
Shakespeare? Respiremos, amigos; a poesia é um ar eternamente respirável.
Miremos este grande homem; miremos as suas belas figuras, terríveis, heróicas,
ternas, cômicas, melancólicas, apaixonadas, varões e matronas, donzéis e donzelas,
robustos, frágeis, pálidos, e a multidão, a eterna multidão forte e movediça, que
execra e brada contra César, ouvindo a Bruto, e chora e aclama César, ouvindo a
Antônio, toda essa humanidade real e verdadeira. E acabemos aqui; acabemos com
ele mesmo, que acabaremos bem. Allis well that ends well.
[124]
[14 maio]
Ontem de manhã, descendo ao jardim, achei a grama, as flores e as
folhagens transidas de frio e pingando. Chovera a noite inteira; o chão estava
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molhado, o céu feio e triste, e o Corcovado de carapuça. Eram seis horas; as
fortalezas e os navios começaram a salvar pelo quinto aniversário do Treze de Maio.
Não havia esperanças de sol; e eu perguntei a mim mesmo se o não teríamos nesse
grande aniversário. É tão bom poder exclamar: "Soldados, é o sol de Austerlitz!" O
sol é, na verdade, o sócio natural das alegrias públicas; e ainda as domésticas, sem
ele, parecem minguadas.
Houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a
lei, que a regente sancionou, e todos saímos à rua. Sim, também eu saí à rua, eu o
mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta,
se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam
felicidade, tudo era delírio. Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que
me lembra ter visto. Essas memórias atravessaram-me o espírito, enquanto os
pássaros treinavam os nomes dos grandes batalhadores e vencedores, que
receberam ontem nesta mesma coluna da Gazeta a merecida glorificação. No meio
de tudo, porém, uma tristeza indefinível. A ausência do sol coincidia com a do povo?
O espírito público tornaria à sanidade habitual?
Chegaram-me os jornais. Deles vi que uma comissão da sociedade que tem o
nome de Rio Branco, iria levar à sepultura deste homem de Estado uma coroa de
louros e amores-perfeitos. Compreendi a filosofia do ato; era relembrar o primeiro
tiro vibrado na escravidão. Não me dissipou a melancolia. Imaginei ver a comissão
entrar modestamente pelo cemitério, desviar-se de um enterro obscuro, quase
anônimo, e ir depor piedosamente a coroa na sepultura do vencedor de 1871. Uma
comissão, uma grinalda. Então lembraram-me outras flores. Quando o Senado
acabou de votar a lei de 28 de setembro, caíram punhados de flores das galerias e
das tribunas sobre a cabeça do vencedor e dos seus pares. E ainda me lembraram
outras flores...
Estas eram de climas alheias. Primrose day!
Oh! se pudéssemos tem um primrose day! Esse dia de primavera é
consagrado à memória de Disracli pela idealista e poética Inglaterra. É o da sua
morte, há treze anos. Nesse dia, o pedestal da estátua do homem de Estado e
romancista é forrado de seda e coberto de infinitas grinaldas e ramalhetes. Dizem
que a primavera era a flor da sua predileção. Daí o nome do dia. Aqui estão jornais
que contam a festa de 19 do mês passado. Primrose day! Oh! quem nos dera um
primrose day! Começaríamos, é certo, por ter os pedestais.
Um velho autor da nossa língua, — creio que João de Barros; não posso ir
verificá-lo agora; ponhamos João de Barros. Este velho autor fala de um provérbio
que dizia: "os italianos governam-se pelo passado, os espanhóis pelo presente e os
franceses pelo que há de vir." E em seguida dava "uma repreensão de pena à nossa
Espanha", considerando que Espanha é toda a península, e só Castela é Castela. A
nossa gente, que dali veio, tem de receber a mesma repreensão de pena; governase
pelo presente, tem o porvir em pouco, o passado em nada ou quase nada. Eu
creio que os ingleses resumem as outras três nações.
Temo que o nosso regozijo vá morrendo, e a lembrança do passado com ele,
e tudo se acabe naquela frase estereotipada da imprensa nos dias da minha
primeira juventude. Que eram afinal as festas da independência? Uma parada, um
cortejo, um espetáculo de gala. Tudo isso ocupava duas linhas, e mais estas duas:
as fortalezas e os navios de guerra nacionais e estrangeiros surtos no porto deram
as salvas de estilo. Com este pouco, e certo, estava comemorado o grande ato da
nossa separação da metrópole.
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Em menino, conheci de vista o Major Valadares; morava na Rua Sete de
Setembro, que ainda não tinha este título, mas o vulgar nome de Rua do Cano.
Todos os anos, no dia 7 de setembro, armava a porta da rua com cetim verde e
amarelo, espalhava na calcada e no corredor da casa folhas da Independência,
reunia amigos, não sei se também música. e comemorava assim o dia nacional. Foi
o último abencerragem. Depois ficaram as salvas do estilo.
Todas essas minhas idéias melancólicas bateram as asas à entrada do sol,
que afinal rompeu as nuvens, e às três horas governava o céu, salvo alguns trechos
onde as nuvens teimavam em ficar. O Corcovado desbarretou-se, mas com tal
fastio, que se via bem ser obrigação de vassalo, não amor da cortesia, menos ainda
amizade pessoal ou admiração. Quando tornei ao jardim, achei as flores enxutas e
lépidas. Vivam as flores! Gladstone não fala na Câmara dos Comuns sem levar
alguma na sobrecasaca; o seu grande rival morto tinha o mesmo vício. Imaginai o
efeito que nos faria Rio Branco ou Itaboraí com uma rosa ao peito, discutindo o
orçamento, e dizei-me se não somos um povo triste.
Não, não. O triste sou eu. Provavelmente má digestão. Comi favas, e as favas
não se dão comigo. Comerei rosas ou primaveras, e pedirvos-ei uma estátua e uma
festa que dure, pelo menos, deus aniversários. Já é demais para um homem
modesto.
[125]
[29 outubro]
—... MAS POR QUE é que não adoece outra vez? No domingo passado,
esteve aqui um senhor alto, cheio, bem-nascido, que me deu no cias suas, disse-me
que havia adoecido, — adoecido ou nadado?— Adoecido; mas doenças, minha
senhora, não se compram na botica, posto se agravem nela, alguma vez. A minha
achou felizmente um boticário consciencioso, que, depois de me haver dado um
vidro de remédio e o troco do dinheiro, disse-me com um gesto mais doutoral que
farmacêutico: "Não desanime; a sua moléstia tem um prazo certo; são três
períodos." Quis pedir o dinheiro, restituir o vidro e esperar o fim do prazo certo, mas
o homem já ouvia outro freguês, igualmente enfermo dos olhos, e naturalmente ia
preparar-lhe o mesmo remédio, pelo mesmo preço, com o mesmo prazo e igual
animação.
— Então, não foi nadando que ...
— Não, bela criatura, eu não sei nadar. Outrora, quando tomava banhos de
mar... Sim, houve tempo em que penetrei no seio de Anfitrite, com estes pés que a
senhora está vendo, e com estes braços; ficávamos peito a peito; eu chegava a
meter a cabeça na bela cama verde da deusa, mas não saía da beira da praia. Se o
seio lhe intumescia um pouco mais, por efeito de algum suspiro, eu, cheio de
respeito, desandava. Quando Vênus a flagelava muito, eu não penetrava; deixavame
ficar do lado de fora, olhando com vontade e com pena.
— (À parte) Singular banhista!
— A senhora diz?
— Que tinha bem vontade de ver outra vez o senhor que aqui esteve,
domingo passado. Ele que faz?
— Minha senhora, ele presentemente cessa de engordar. Anda lépido, come
bem, dorme bem, escreve bem, nada bem. Quer-me até parecer que o nadador de
que lhe falou, é ele mesmo; disse aquilo para desviar as atenções, mas não é outro.
— Ah! também penetra no seio de Anfitrite?
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— Penetra, e sempre com estes dous versos de Camões, na boca:
Todas as deusas desprezei do céu,
Só por amar das águas a princesa.
— Gracioso!
— Gracioso, mas falso; é um modo de cativar a deusa. A senhora sabe que
não há cousa que mais enterneça uma deusa, que falar de sentimentos exclusivos.
Ele é fino; não há de ir dizer a Anfitrite que a todas as deusas prefere a majestosa
Juno ou a guerreira Palas; mas creia que é também guerreiro e majestoso. Naquele
dia, enquanto bracejava através da onda marinha, fazia de Mercúrio, com a
diferença que levava os recados na barriga.
— Então, deveras, foi ele?
— Positivamente, não sei: mas vou dizendo que foi, já por vingança, já porque
não conheço nada mais recreativo que espalhar um boato. O vício é muita vez um
boato falso, e há virtudes que nunca foram outra cousa. Digo-lhe mais: este mundo
em que a senhora supõe viver, não passa talvez de um simples boato. Os anjos,
para matar o imortal tempo, fizeram correr pelo infinito o boato da criação, e nós, que
imaginamos existir, não passamos das próprias palavras do boato, que rolam por
todos os séculos dos séculos.
— Palavras apenas?
— Palavras, frases. A senhora é uma linda frase de artista. Tem nas formas
um magnífico substantivo: os adjetivos são da casa de Madame Guimarães. A boca
é um verbo. Et verbum caro factuin est.
— Aí vem o senhor com as suas graças sem graça. Não me há de fazer crer
que a explosão da ilha Mocanguê foi uma vírgula ...
— Não foi outra cousa. O bombardeio é uma reticência, a moléstia um
solecismo, a morte um hiato, o casamento um ditongo, as lutas parlamentares,
eleitorais e outras uma cacofonia.
— Ainda uma vez, por que não adoeceu esta semana? Está soporífero.
Quisera saber de uma porção de cousas, mas não lhe pergunto nada. Adeus.
— Não, não me mande embora, deixe-me ficar ainda um instante. É tão bom
vê-la, mirá-la ... E depois, advirto que estou apenas na tira oitava, e tenho de dar,
termo médio, doze.
— Vamos; fale por tiras.
— Tomara poder falar-lhe por volumes, por bibliotecas. Não esgotaria o
assunto; tudo seria pouco para dizer os seus feitiços e o gosto que sinto em estar a
seu lado. Compreendo Tartufo ao O de Elmira: Je tâte votre habit; l'étofle en est
moelleiíse ... Vá; responda que a senhora é fort chatouilleuse, para conservar a rima
do texto, mas emendemos Molière. Eu, para mim, tenho que Tartufo é um caluniado.
A verdade é que, sem acomodações com o céu, este mundo seria insuportável. E o
céu é o mais acomodatício dos credores. Judas ainda pode ser perdoado. Pilatos
também; lembre-se que ele começou por lavar as mãos; lave a alma, e está a
caminho. Sendo assim, que mal há na bonomia que Tartufo atribui ao céu? "Oh!
fazenda macia que é a deste seu vestido!" Que estremeções são esses, meu Deus?
— Ouço o bombardeio.
— Não é bombardeio. É o meu coração que bate. A artilharia do meu amor é
extraordinária; não digo única, porque há a de Otelo. Pouco abaixo de Otelo,
estamos Fedra e eu. Já notou que não me comparo nunca a gente miúda?
— Já; assim como tenho notado que o senhor é muito derretido. — Querida
amiga, isso não depende da cera, mas do fogo. Que há de fazer uma vela acesa,
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senão derreter-se? É a única razão de haver fábrica de velas; se elas durassem
sempre, acabavam as fábricas, os fabricantes, e consequentemente as próprias
velas. Creio que há aqui alguma contradição; mas a contradição é deste mundo.
Para longe os raciocínios perfeitos e os homens imutáveis! Cada erro de lógica pode
ser um tento que a imaginação ganhe, e a imaginação é o sal da vida. Quanto aos
homens imutáveis, são de duas ordens, os que se limitam a sê-lo sem confessá-lo,
— e os que o são, e o proclamam a todos os ventos. A perfeição é dizê-lo sem o ser.
Um homem que passe por várias opiniões, e demonstre que só teve uma opinião na
vida, esse é a perfeição buscada. e alcançada. A modo que a senhora está
bocejando? A culpa é sua, se me meto em assuntos áridos; podíamos ter
continuado Tartufo.
— Quantas tiras?
— Começo a décima segunda. A senhora faz-me lembrar uma borboleta que
encontrei ontem na Rua da Assembléia. A Rua da Assembléia não é passeio
ordinário de borboletas; não há ali flores nem árvores. Esta de que lhe falo, agitava
as asas de um lado para outro, abaixo e acima, de porta em porta. Suspendendo as
minhas reflexões aborrecidas, parei alguns instantes para observar. Evidentemente,
estava perdida; descera de algum morro ou fugira de algum jardim, se os há por ali
perto. De repente, sumiu-se; eu meti a cabeça no chão e segui com as minhas
cogitações tétricas. Mas a borboleta apareceu de novo, para tomar a sumir-se e
reaparecer, segundo eu estacava o passo ou ia andando. Finalmente, encontrei um
amigo que me convidou a tornar uma xícara de café e quatro boatos. A borboleta
sumiu-se de todo. Conclua.
— As asas eram azuis?
— Azuis.
— Rajadas de ouro?
— De ouro.
— Não era eu; era um fiozinho de poeira, que forcejava por arrancá-lo aos
pensamentos lúgubres. Há desses fenômenos. Agora mesmo, parece-me ver, ao
longe, um pontozinho luminoso.
— Não, senhora; está perto, e é escuro; é o ponto final.
— Que não seja boato, como tantos!
[126]
[5 novembro]
Há na comédia Verso e Reverso, de José de Alencar, um personagem que
não vê ninguém entrar em cena, que não lhe pergunte: Que há de novo. Esse
personagem cresceu com os trinta e tantos anos que lá vão, engrossou,, bracejou
por todos os cantos da cidade, onde ora ressoa a cada instante: — Que há de novo?
Ninguém sai de casa que não ouça a infalível pergunta, primeiro ao vizinho, depois
aos companheiros de bond. Se ainda não a ouvimos ao próprio condutor do bond,
não é por falta de familiaridade, mas porque os cuidados políticos ainda o não
distraíram da cobrança da passagens e da troca de idéias com o cocheiro, porém,
chega a seu tempo e compensa o perdido.
Confesso que esta semana entrei a aborrecer semelhante interrogação. Não
digo o número de vezes que a ouvi, na segunda-feira, para não parecer inverossímil.
Na terça-feira, cuidei lê-Ia impressa nas paredes, nas caras, no chão, no céu e no
mar. Todos a repetiam em torno de mim. Em casa, à tarde, foi a primeira cousa que
me perguntaram. Jantei mal; tive um pesadelo; trezentas mil vozes bradaram do seio
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do infinito: — Que há de novo? Os ventos, as marés, a burra de Balaão, as
locomotivas, as bocas de fogo, os profetas, todas as vozes celestes e terrestres
formavam este grito uníssono: Que há de novo?
Quis vingar-me; mas onde há tal ação que nos vingue de uma cidade inteira?
Não podendo queimá-la, adotei um processo delicado e amigo. Na quarta-feira, mal
saí à rua, dei com um conhecido que me disse, depois dos bons dias costumados:
— Que há de novo?
— O terremoto.
— Que terremoto? Verdade é que esta noite ouvi grandes estrondos, tanto
que supus serem as fortalezas todas juntas. Mas há de ser isso, um terremoto; as
paredes da minha casa estremeceram; eu saltei da cama; estou ainda surdo ...
Houve algum desastre?
— Ruínas, senhor, e grandes ruínas.
— Não me diga isso! A Rua do Ouvidor, ao menos ...
— A Rua do Ouvidor está intacta, e corri ela a Gazeta de Notícias.
— Mas onde foi?
— Foi em Lisboa.
— Em Lisboa?
— No dia de hoje, 1 de novembro, há século e meio. Uma calamidade,
senhor! A cidade inteira em ruínas. Imagine por um instante, que não havia o
Marquês de Pombal, — ainda o não era, Sebastião José de Carvalho, um grande
homem, que pôs ordem a tudo, enterrando os mortos, salvando os vivos, enforcando
os ladrões, e restaurando a cidade. Fala-se da reconstrução de Chicago; eu creio
que não lhe fica abaixo o caso de Lisboa, visto a diferença dos tempos, e a distância
que vai de um povo a um homem. Grande homem, senhor! Uma calamidade! uma
terrível calamidade!
Meio embaçado, o meu interlocutor seguiu caminho, a buscar notícias mais
frescas. Peguei em mim e fui por aí fora distribuindo o terremoto a todas as
curiosidades insaciáveis. Tornei satisfeito a casa; tinha o dia ganho.
Na quinta-feira, dous de novembro, era minha intenção ir tão somente ao
cemitério; mas não há cemitério que valha contra o personagem do Verso e
Reverso. Pouco depois de transpor o portão da lúgubre morada, veio a mim um
amigo vestido de preto, que me apertou a mão. Tinha ido visitar os restos da esposa
(uma santa!), suspirou e concluiu:
— Que há de novo?
— Foram executados.
— Quem?
— A coragem, porém, com que morreram, compensou os desvarios da ação,
se ela os teve; mas eu creio que não. Realmente, era um escândalo. Depois, a
traição do pupilo e afilhado foi indigna; pagou-se-lhe o prêmio, mas a indignação
pública vingou a morte do traído.
— De acordo: um pupilo ... Mas quem é o pupilo?
— Um miserável. Lázaro de Melo.
— Não conheço. Então, foram executados todos?
— Todos; isto é, dous. Um dos cabeças foi degredado por dez anos.
— Quais foram os executados?
— Sampaio. .
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— Não conheço.
— Nem eu; mas tanto ele, como o Manuel Beckman, executados neste triste
dia de mortos ... Lá vão dous séculos! Em ver e, passaram mais de duzentos anos, e
a memória deles ainda vive. Nobre Maranhão!
O viúvo mordeu os beiços; depois, com um toque de ironia triste, murmurou:
— Quando lhe perguntei o que havia de novo, esperava alguma cousa mais
recente.
— Mais recente só a morte de Rocha Pita, neste mesmo dia, em 1738. Note
como a história se entrelaça com os historiadores; morreram no mesmo dia, talvez à
mesma hora, os que a fazem e os que a escrevem.
O viúvo sumiu-se; eu deixei-me ir costeando aquelas casas derradeiras, cujos
moradores não perguntaram nada, naturalmente porque já tiveram resposta a tudo.
Necrópole da minha alma, aí é que eu quisera residir e não nesta cidade inquieta e
curiosa, que não se farta de perscrutar, nem de saber. Se aí estivesse de uma vez,
não ouviria como no dia seguinte, sexta-feira, a mesma eterna pergunta. Era já cerca
de 11 horas quando saí de casa, armado de um naufrágio, um terrível naufrágio,
meu amigo.
— Onde? Que naufrágio?
— O cadáver da principal vítima não se achou; o mar serviu-lhe de sepultura.
Natural sepultura; ele cantou o mar, o mar pagou-lhe o canto arrebatando-o à terra e
guardando-o para si. Mas vá que se perdesse o homem; o poema, porém, esse
poema, cujos quatro primeiros cantos aí ficaram para mostrar o que valiam os outros
... Pobre Brasil! pobre Gonçalves Dias! Três de novembro, dia terrível; 1864, ano
detestável! Lembro-me como se fosse hoje. A notícia chegou muitos dias depois do
desastre. O poeta voltava ao Maranhão ...
Raros ouviam o resto. Os que ouviam, mandavam-me interiormente a todos
os diabos. Eu, sereno, ia contando, contando, e recitava versos, e dizia a impressão
que tive a primeira vez que vi o poeta. Estava na sala de redação do Diário do Rio,
quando ali entrou um homem pequenino, magro, ligeiro. Não foi preciso que me
dissessem o nome; adivinhei quem era. Gonçalves Dias! Fiquei a olhar, pasmado,
com todas as minhas sensações e entusiasmos da adolescência. Ouvia cantar em
mim a famosa "Canção do Exílio". E toca a repetir a canção, e a recitar versos sobre
versos. Os intrépidos, se me agüentavam até o fim, marcavam-me; eu só os deixava
moribundos.
No sábado, notei que os perguntadores fugiam de mim, com receio, talvez, de
ouvir a queda do império romano ou a conquista do Peru. Eu, por não fiar dos
tempos, saí com a morte de Torres Homem no bolso; era recentíssima, podia
enganar o estômago. Creio, porém, que a explosão da véspera bastou às
curiosidades vadias. Não me arguam de impiedade. Se é certo, como já se disse,
que os mortos governam os vivos, não é muito que os vivos se defendam com os
mortos. Dá-se assim uma confederação tácita para a boa marcha das cousas
humanas.
Hoje não saio de casa; ninguém me perguntará nada. Não me perguntes tu
também, leitor indiscreto, para que eu te não responda como na comédia, após o
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desenlace: — Que há de novo? inquire o curioso, entrando. E um dos rapazes: —
Que vamos almoçar.
[127]
[12 novembro]
Durante a semana houve algumas pausas, mais ou menos raras, mais ou
menos prolongadas; mas os tiros comeram a maior parte do tempo. Basta dizer que
foram mais numerosos que os boatos. Aquela quadra pré-histórica, em que um tiro
de peça, ouvido à noite, era o sinal para consultar e acertar os relógios, não se pode
já comparar a estes dias terríveis, em que os tiros parecem pancadas de um relógio
enorme, de um relógio que pára às vezes, mas a que se dá corda com pouco:
Never forever,
Forever never,
tal qual na balada de Longfellow. A poesia, meus amigos, está e tudo, na guerra
como no amor.
Relevem-me aqui uma ilustre banalidade. Que é o amor mais que uma
guerra, em que se vai por escaramuças e batalhas, em que há mortos e feridos,
heróis e multidões ignoradas? Como os outros bombardeios, o amor atrai curiosos.
A vida, neste particular, é uma interminável Praia da Glória ou do Flamengo. Quando
Dáfnis e Cloe travam as suas lutas, são poucos os óculos e binóculos da gente vadia
para contar as balas, ou que se perdem, ou que se aproveitam, não falando dos
naturais holofotes que todos trazemos na cara.
De mim digo, porém, que aborreço a galeria. Uma vez desci do bond, na
Praia da Glória, para ceder ao convite de um amigo que queria ver o bombardeio.
Desci ainda outra vez para escapar a um sujeito que me contava a guerra da
Criméia, onde não esteve, não havendo nunca saído daqui, mas que se ligava à sua
adolescência, por serem contemporâneos. Ninguém ignora que os sucessos deste
mundo, domésticos ou estranhos, uma vez que se liguem de algum modo aos
nossos primeiros anos, ficam-nos perpetuados na memória. Por que é que, entre
tantas cousas infantis e locais, nunca me esqueceu a notícia do golpe de Estado de
Luís Napoleão? Pelo espanto com que a ouvi ler. As famosas palavras: Saí da
legalidade para entrar no direito ficaram-me na lembrança, posto não soubesse o
que era direito nem legalidade. Mais tarde, tendo reconhecido que este mundo era
uma infância perpétua, concluí que a proclamação de Napoleão III acabava como as
histórias de minha meninice: "Entrou por uma porta, saiu por outra, manda el-rei
nosso senhor que nos conte outra". Por exemplo, o dia de hoje, 12 de novembro, é o
aniversário do golpe de Estado de Pedro I, que também saiu da legalidade para
entrar no direito.
Mas não quero ir adiante sem lhes dizer o que me sucedeu, quando pela
segunda vez desci na Praia da Glória, a pretexto de ver o bombardeio. Estive ali uns
dez minutos, os precisos para ouvir a um homem, e depois a outro homem, cousas
que achei dignas do prelo. O primeiro defendia a tese de que os tiros eram
necessários, mormente os de canhão-revólver, e também as explosões de paióis de
pólvora. Dizia isto com tal placidez, que cuidei ouvir um simples amador; mas o
segundo homem retificou esta minha impressão, dizendo-me, logo que o outro se
retirou: — "É um vidraceiro; não quer a morte de ninguém, quer os vidros
quebrados." E o segundo homem, ar grave, declarou que abominava as lutas civis,
concluindo que ninguém tinha a vida segura nesta troca de bombardas; ele, pela sua
53
parte, já fizera testamento, não sabendo se voltaria para casa, visto que a existência
dependia agora de uma bala fortuita. Gostei de ouvi-lo. Era o contraste judicioso e
melancólico do primeiro. Quando ele se despediu, perguntei a um terceiro: "Quem é
este senhor?" — "É um tabelião", respondeu-me.
Assim vai o mundo. Nem sempre o cidadão mata o homem. E Bruto, o
cidadão, também é homem, diz um verso de Garret. Deixem-me acrescentar, em
prosa, que o homem é muitas vezes mulher, por esse vício de curiosidade que
herdou da nossa mãe Eva, — outra ilustre banalidade. É a segunda que digo hoje.
Rigorosamente, devia parar aqui; mas então não falaria das emissões particulares
que estão aparecendo em Joinville, Catuguases e Campos. A Gazeta anteontem,
transcreveu três notas campistas, e indignou-se. Prova que é mais moça que eu. Há
muitos anos, 1868 ou 1869, lembro-me bem ter visto em Petrópolis bilhetes de
emissões particulares, não impressos, mas ingenuamente manuscritos. Não traziam
filetes nem emblemas; não se davam ao escrúpulo dos números de série. Vale tanto,
ou vale isto, mais nada. Não posso afirmar com segurança se ainda se conhecia a
origem de alguns; mas creio que sim.
Esta questão prende com uma teoria, que reputo verdadeira, a saber, que o
direito de emitir é individual. Cada homem pode pôr em circulação o número de
bilhetes que lhe parecer. Serão aceitos até onde for a confiança. O crédito
responderá pelo valor. Nesta hipótese, melhor é o manuscrito que o impresso;
porque o impresso é de todos, e o manuscrito é meu. Entendam-me bem. Não
admiro a cláusula forçada da troca do bilhete por outro, prata ou papel do Estado;
seria rebaixar a uma permuta de cousas tangíveis uma operação que deve repousar
pura e simplesmente no crédito, "essa alavanca do progresso e da civilização", para
falar como o meu criado. Isto posto, a sociedade terá achado o eixo que perdeu
desde a morte do feudalismo. A fome morrerá de fome. Ninguém pedirá, todos
darão.
Não me acordeis, se é sonho. Mas não é sonho. Vejo mais que todos vós que
vos supondes acordados. Se descreis disto, chegareis a descrer do espiritismo,
perdereis a própria razão. Que radioso paraíso! Nesse dia, o tempo será aquele
mesmo relógio que o poeta americano pôs na escada dos seus versos; mas a
pêndula não baterá mais que amor, paz e abundância, com esta pequena alteração
do estribilho:
Ever — forever!
Forever — ever!
[128]
[119 novembro]
Um dia destes, lendo nos diários alguns atestados sobre as excelência s do
xarope Cambará, fiz lima observação tão justa que não quero furtá-la aos
contemporâneos, e porventura aos pósteros. Verdadeiramente, a minha observação
é um problema, e, como o de Hamlet, trata da vida e da morte. Quando a gente não
pode imitar os grandes homens, imite no menos as grandes ficções.
E por que não hei de eu imitar os grandes homens? Conta-se que Xerxes,
contemplando um dia o seu imenso exército, chorou com a idéia de que, ao cabo de
um século, toda aquela gente estaria morta. Também eu contemplo, e choro, por
efeito de igual idéia; o exército é que é outro. Não são os homens que me levam à
melancolia persa, mas os remédios que os curam. Mirando os remédios vivos e
eficazes, faço esta pergunta a mim mesmo: Por que é que os remédios morrem?
54
Com efeito, eu assisti ao nascimento do xarope ... Perdão; vamos atrás. Eu
ainda mamava, quando apareceu um médico que "restituía a vista a quem a
houvesse perdido". Chamava-se o autor Antônio Gomes, que o vendia em sua
própria casa, Rua dos Barbonos n.º 26. A Rua dos Barbonos era a que hoje se
chama do Evaristo da Veiga. Muitas pessoas colheram o benefício inestimável que o
remédio prometia. Saíram da noite para a luz, para os espetáculos da natureza,
dispensaram a muleta de terceiro, puderam ler, escrever, contar. Um dia, Antônio
Gomes morreu. Era natural; morreu como os soldados de Xerxes. O inventor da
pólvora, quem quer que ele fosse, também morreu. Mas por que não sobreviveu o
colírio de Antônio Gomes, como a pólvora? Que razão houve para acabar com o
autor uma invenção tão útil à humanidade?
Não se diga que o colírio foi vencido pelo rapé Grimstone, "vulgarmente
denominado de alfazema", seu contemporâneo. Esse, conquanto fosse um bom
específico para moléstias de olhos, não restituía a vista a quem a houvesse perdido;
ao menos, não o fazia contar. Quando, porém, tivesse esse mesmo efeito, também
ele morreu, e morreu duas vezes, como remédio e como rapé.
As inflamações de olhos tinham, aliás, outro inimigo terrível nas "pílulas
universais americanas"; mas, como estas eram universais, não se limitavam aos
olhos, curavam também sarnas, úlceras antigas erupções cutâneas, erisipela e a
própria hidropisia. Vendiam-se ri farmácia de Lourenço Pinto Moreira; mas o único
depósito era ri Rua do Hospício nº 40. Eram pílulas provadas; não curavam todos,
visto que há diferença nos humores e outras partes; mas curavam muita vez e
aliviavam, sempre. Onde estão elas? Sabemos número da casa em que moravam;
não conhecemos o da cova e que repousam. Não se sabe sequer de que morreram;
talvez um duelo com as "pílulas catárticas do farmacêutico Carvalho Júnior" que
também curavam as inflamações de olhos e moléstias da pele com esta
particularidade que dissipavam a melancolia. Eram úteis no reumatismo, eficazes
nos males de estômago, e faziam vigorar cor do rosto. Mas também estas
descansam no Senhor, como o velhos hebreus.
Para que falar do "elixir antiflegmático", do "bálsamo homogêneo e tantos
outros preparados contemporâneos da Maioridade? O xarope a cujo nascimento
assisti, foi o "Xarope do Bosque", um remédio composto de vegetais, como se vê do
nome, e deveras miraculos Era bem pequeno, quando este preparado entrou no
mercado; chego à maturidade, já não o vejo entre os vivos. É certo que a vida não é
a mesma em todos; uns a tiveram mais longa, outros mais breve. Há casos
particulares, como o das sanguessugas; essas acabaram por causa do gasto infinito.
Imagine-se que há meio século vendiam-se "aos milheiros" na Rua da Alfândega nº
15. Não há produção que resista a tamanha procura. Depois, o barbeiro sangrador é
ofício extinto.
Por que é que morreram tantos remédios? Por que é que os remédios
morrem? Tal é o problema. Não basta expô-lo; força é achar-lhe solução. Há de
haver uma razão que explique tamanha ruína. Não se pode compreender que
drogas eficazes no princípio de um século, sejam inúteis ou insuficientes no fim dele.
Tendo meditado sobre este ponto algumas horas longas, creio haver achado a
solução necessária.
Esta solução é de ordem metafísica. A natureza, interessada na conservação
da espécie humana, inspira a composição dos remédios, conforme a graduação
patológica dos tempos. Já alguém disse, com grande sagacidade, que não há
doenças, mas doentes. Isto que se diz dos indivíduos, cabe igualmente aos tempos,
e a moléstia de um vi não é exatamente a de outro. Há modificações lentas,
55
sucessivas, por modo que, ao cabo de um século, já a droga que a curou não cura;
é preciso outra. Não me digam que, se isto é assim, a observação basta para dar a
sucessão dos remédios. Em primeiro lugar, não é a observação que produz todas as
modificações terapêuticas; muitas destas são de pura sugestão. Em segundo lugar,
a observação, em substância, não é mais que uma sugestão refletida da natureza.
Prova desta solução é o fato curiosíssimo de que grande parte dos remédios
citados e não citados, existentes há quarenta e cinqüenta anos, curavam
particularmente a erisipela. Variavam as outras moléstias, mas a erisipela estava
inclusa na lista de cada um deles. Naturalmente, era moléstia vulgar; daí a
florescência dos medicamentos apropriados à cura. O povo, graças à ilusão da
Providência, costuma dizer que Deus dá o frio conforme a roupa; o caso da erisipela
mostra que a roupa vem conforme o frio.
Não importa que daqui a algumas dezenas de anos, um século ou ainda mais,
certos medicamentos de hoje estejam mortos. Verificar-se-á que a modificação do
mal trouxe a modificação da cura. Tanto melhor para os homens. O mal irá
recuando. Essa marcha gradativa terá um termo, remotíssimo, é verdade, mas certo.
Assim, chegará o dia em que, por falta de doenças, acabarão os remédios, e o
homem, com a saúde moral, terá alcançado a saúde física, perene e indestrutível,
como aquela.
Indestrutível? Tudo se pode esperar da indústria humana, a braços com o
eterno aborrecimento. A monotonia da saúde pode inspirar a busca de uma ou outra
macacoa leve. O homem receitará tonturas ao homem. Haverá fábrica de resfriados.
Vender-se-ão calos artificiais, quase tão dolorosos como os verdadeiros. Alguns
dirão que mais.
1894
[129]
[1 fevereiro]
Sombre quatre-vingt-treize! É o caso de dizer, com o poeta, agora que ele se
despede de nós, este ano em que perfaz um século o a terrível da Revolução. Mas a
crônica não gosta de lembranças tristes por mais heróicas que também sejam; não
vai para epopéias, nem tragédias. Cousas doces, leves, sem sangue nem lágrimas.
No banquete da vida, para falar como outro poeta ... Já agora falo por poetas;
está provado que, apesar de fantásticos e sonhador são ainda os mais hábeis
contadores de história e inventores de imagens. A vida, por exemplo, comparada a
um banquete é idéia felicíssima. Cada um de nós tem ali o seu lugar; uns retiram-se
logo depois da sopa, outros do coup du milieu, não raros vão até à sobremesa. Tem
havido casos em que o conviva se deixa estar comi bebido, e sentado. É o que os
noticiários chamam macróbio, quando a pessoa é mulher, por uma dessas
liberdades que toda gente usa com a língua, macróbia.
Felizes esses! Não que o banquete seja sempre uma delícia. sopas
execráveis, peixes podres e não poucas vezes esturro. Mas, u vez que a gente se
deixou vir para a mesa, melhor é ir farto dela para não levar saudades. Não se sente
a marcha; vai-se pelos pés dos outros. Houve desses retardatários, Moltke esteve
prestes a sê-lo, Gladstone creio que acaba por aí, como os nossos Saldanha Manho
e Tamandaré. Deus os fade a todos!
Imaginemos um homem que haja nascido com o século e mor com ele. Vítor
Hugo já o achou com dous anos (ce siècle avait de ans) e pode ser que contasse
viver até o fim; não passou da casa d oitenta. Mas Heine, que veio ao mundo no
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próprio dia 1 de janeiro de 1800, bem podia ter vivido até 1899, e contar tudo o que
passou no século, com a sua pena mestra de humour... Oh! página imortal! Assistir à
Santa Aliança e à dinamite! Vir do legitimismo ao anarquismo, parando aqui e ali na
liberdade, eis aí uma viagem interessante de dizer e de ouvir. Revoluções, guerras,
conquistas, uma infinidade de constituições, grande variedade de calças, casacas
chapéus, escolas novas, novas descobertas, idéias, palavras, dança livros, armas,
carruagens, e até línguas... Viver tudo isso, e referi-lo século XX, grande obra, em
verdade. Deus ou a paralisia não o quis. Heine notaria, melhor que ninguém o
advento do anarquismo, se é certo que este governo inédito te de sair à luz com o
fim do século. Ninguém melhor que ele faria o paralelo do legitimismo do princípio
com o anarquismo do fim, Carlos X e Nada. Que excelentes conclusões! Nem todas
seria cabais, mas seriam todas belas. Aos homens da ciência ficam razões sólidas
com que afirmam a marcha ascendente para a perfeição. Os poetas variam; ora
crêem no paraíso, ora no inferno, com ,esta particularidade que adotam o pior para
expô-lo em versos bonitos. Heine tinha a vantagem de o saber expor em bonita
prosa.
Mas, como ia dizendo, no banquete da vida... Leve-me o diabo se sei a que é
que vinha este banquete. Talvez para notar que a distribuição dos lugares põe a
gente, às vezes, ao pé de maus vizinhos, em cujo caso não há mais poderoso
remédio que descansar do paradoxo da esquerda na banalidade da direita, e viceversa.
Se a idéia não foi essa, então foi dizer que a crônica é prato de pouca ou
nenhuma resistência, simples molho branco. Idéia velha, mas antes velha que nada.
Uns fazem a história pela ação pessoal e coletiva, outros a contam ou cantam pela
tuba canora e belicosa... Tuba canora e belicosa é expressão de poeta — de
Camões, creio. A crônica é flauta rude ou agreste avena do mesmo poeta. Vivam os
poetas! Não me acode outra gente para coroar este ano que nasce.
Quanto ao que morre, 1893, não vai sem pragas nem saudades, como os
demais anos seus irmãos, desde que há astronomia e almanaques. Tal é a condição
dos tempos, que são todos duros e amenos, segundo a condição e o lugar. Se esta
banalidade da direita lhe parece cansativa, volte-se o leitor para a esquerda, e ouvirá
algum paradoxo que o descanse dela — este, por exemplo, que o melhor dos anos é
o pior de todos. Toda a questão (lhe dirá a esquerda) está em definir o que seja bom
ou mau.
Por exemplo, a guerra é má, em si mesma; mas a guerra pode ser boa,
comparada com o anarquismo. Se este vier, 1893, tu haverás sido uma das suas
datas históricas, pelos golpes que deste, pelo princípio de sistematização do mal.
Que será o mundo contigo? Não consultemos Xenofonte, que, ao ver as trocas de
governo nas repúblicas, monarquias e oligarquias, concluía que o homem era o
animal mais difícil de reger, mas, ao mesmo tempo, mirando o seu herói e a
numerosa gente que lhe obedecia, concluía que o animal de mais fácil governo era o
homem. Se já por essa noite dos tempos fosse conhecido o anarquismo, é provável
que a opinião do historiador fosse esta: que, embora péssimo, era um governo
ótimo. A variedade dos pareceres, a sua própria contradição, tem a vantagem de
chamar leitores, visto que a maior parte deles só lê os livros da sua opinião. É assim
que eu explico a universalidade de Xenofonte.
Não me atribuam desrespeito ao escritor; isto é rir, para não fazer outra cousa
que deixe de aliviar o baço. Em todo caso, antes gracejar de um homem finado há
tantos séculos, que estrear já o carnaval com este imenso calor, como fez ontem
lima associação. Agora tu, Terpsícore, me ensina ...
57
[130]
[7 janeiro]
Quem será esta cigarra que me acorda todos os dias neste verão do diabo —
quero dizer, de todos os diabos, que eu nunca vi outro que me matasse tanto? Um
amigo meu conta-me cousas terríveis do verão de Cuiabá, onde, a certa hora do dia,
chega a parar a administração pública. Tudo vai para as redes. Aqui não há rede,
não há descanso, não há nada. Este tempo serve, quando muito, para reanimar
conversações moribundas, ou para dar que dizer a pessoas que conhecem pouco e
são obrigadas a vinte ou trinta minutos de bond Começa-se por uma exclamação e
um gesto, depois uma ou duas anedotas, quatro reminiscências, e a declaração
inevitável de que pessoa passa bem de saúde, a despeito da temperatura.
Custa-me a suportar o calor, mas de saúde passo maravilhes mente bem.
Não sei se é isso que me diz todas as manhãs a tal cigarra. Seja que for, é
sempre a mesma cousa, e é notícia d'alma, porque é dita com um grau de
sonoridade e tenacidade que excede os maior exemplos de gargantas musicais,
serviçais e rijas. A minha memória que nunca perde essas ocasiões, recita logo a
fábula de Lã Fontai e reproduz a famosa gravura de Gustavo Doré, a bela moça da
rã ca, que o inverno veio achar com a rabeca na mão, repelida p uma mulher
trabalhadeira, como faz a formiga à outra. E o quadro e os versos misturam-se,
prendem-se de tal maneira, que acabo recitando as figuras e contemplando os
versos.
Nisto entra um galo. O galo é um maometano vadio, relógio certo cantor
medíocre, ruim vianda. Entra o galo e faz com a cigarra u concerto de vozes, que me
acorda inteiramente. Sacudo a preguiça colijo os trechos de sonho que me ficaram,
se algum tive, e fito dossel da cama ou as tábuas do teto. Às vezes fito um quintal
Roma, de onde algum velho galo acorda o ilustre Virgílio, e pergunto se não será o
mesmo galo que me acorda, e se eu não serei o me míssimo Virgílio. É o período de
loucura mansa, que em mim sucede ao sono. Subo então pela Via Appia, dobro a
Rua do Ouvidor, e barro com Mecenas, que me convida a cear com Augusto e um
remanescente da Companhia Geral. Segue-se a vez de um passarinho que me
canta no jardim, depois outro, mais outro. Pássaros, galo, cigarra, entoam a sinfonia
matutina, até que salto da cama e abro a janela
Bom dia, belo sol! Já vejo as guias torcidas dos teus magníficos bigodes de
ouro. Morro verde e crestado, palmeiras que reco tais o céu azul, e tu, locomotiva do
Corcovado, que trazes o sibilo da indústria humana ao concerto da natureza, bom
dia! Pregão d indústria, tu, "duzentos contos, Paraná, último de resto!", recebo
também a minha saudação. Que és tu, senão a locomotiva da Fortuna? Tempo
houve em que a gente ia dos arrabaldes à casa do João Pedro da Veiga, Rua da
Quitanda, comprar o número da esperança Agora és tu mesmo, número solícito, que
vens cá ter aos arrabalde como os simples mascates de fazendas e os compradores
de garrafa vazias. Progresso quer dizer concorrência e comodidade. Melhor que eu
compre a riqueza a duas pessoas, à porta de minha casa, d que vá comprar à casa
de uma só, a dous tostões de distância.
Eis aí começam a deitar fumo as chaminés vizinhas; tratam do café ou do
almoço. Na rua passa assobiando um moleque, que faz lembrar aquele chefe do
ministério austríaco, a que se referiu quinta feira, na Gazeta de Notícias, Max
Nordau. Ouço também uma cantiga, um choro de criança, um bond, os prelúdios de
alguma cousa ao piano, e outra vez e sempre a cigarra cantando todos os seus
erres sem effes, enquanto o sol espalha as barbas louras pelo ar transparente.
58
Ir-me-á cantar, todo o verão, esta cigarra estrídula? Canta, e que eu te ouça,
amiga minha; é sinal de que não haverei entrado no obituário do mesmo verão, que
já sobe a cinqüenta pessoas diárias. Disseram-mo, eu não me dou ao trabalho de
contar os mortos. Percebo que morre mais gente, pela freqüência dos carros de
defuntos que encontro, quando volto para casa e eles voltam do cemitério, com o
seu aspecto fúnebre e os seus cocheiros menos fúnebres. Não digo que os
cocheiros voltem alegres; posso até admitir. para facilidade da discussão, que
tornem tristes; mas há grande diferença entre a tristeza do veículo e a do
automedonte. Este traz no rosto uma expressão de dever cumprido e consciência
repousada, que inteiramente escapa às frias tábuas de um carro.
De mim peço ao cocheiro que me levar, que já na ida para o cemitério vá
francamente satisfeito, com uma pontinha de riso e outra de cigarro ao canto da
boca. Pisque o olho às amas-secas e frescas, e criaturas análogas que for
encontrando na rua; creia que os meus manes não sofrerão no outro mundo; ao
contrário, alegrar-se-ão de saber a cara ajustada ao coração, e a indiferença interior
não desmentida pelo gesto. Imite as suas mulas, que levam com igual passo César
e João Fernandes.
Ah! enquanto eu ia escrevendo essas melancolias aborrecidas, o sol foi
enchendo tudo; entra-me pela janela, já tudo é mar; ao mar já faltam praias, dizia
Ovídio por boca de Bocage. Aqui o dilúvio é de claridade; mas uma claridade
cantante, porque a cigarra não cessa, continua a cigarrear no arvoredo, fundindo o
som no espetáculo. Como há pouco, na cama, miro a cantiga e ouço o clarão. Se
todos estes dias não fossem isto mesmo, eu diria que era a comemoração da
chegada dos três Reis.
Essa festa popular, não sei se perdurará no interior; aqui morreu há muitos
anos. Cantar os Reis era uma dessas usanças locais, como o presepe, que o tempo
demoliu e em cuias ruínas brotou a árvore do Natal, produção do norte da Europa,
que parece pedir os gelos do inverno. O nosso presepe era mais devoto, mas menos
alegre. Durava, em alguns lugares, até o dia de Reis. A cantiga da festa de ontem
era a mesma em toda a parte.
Ó de casa, nobre gente,
Acordai, e ouvireis,
E o resto, que pode parecer simplório e velho, mas o velho foi moço e o simplório
também é sinal de ingênuo.
[131]
[4 fevereiro]
Quando eu Li que este ano não pode haver carnaval na rua, fiquei
mortalmente triste. É crença minha, que no dia em que deus Morno for de todo
exilado deste mundo, o mundo acaba. Rir não é só le propre de 1'homme, é ainda
uma necessidade dele. E só há riso, e grande riso, quando é público, universal,
inextinguível, à maneira deuses de Homero, ao ver o pobre coxo Vulcano.
Não veremos Vulcano estes dias, cambaio ou não, não ouviremos chocalhos,
nem guizos, nem vozes tortas e finas. Não sairão as sociedades, com os seus carros
cobertos de flores e mulheres, e as ri roupas de veludo e cetim. A única veste que
poderá aparecer, é cinta espanhola, ou não sei de que raça, que dispensa agora os
cole e dá mais graça ao corpo. Esta moda quer-me parecer que pega; p ora, não há
muitos que a tragam. Quatrocentas pessoas? Quinhentas? Mas toda religião
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começa por um pequeno número de fiéis. O primeiro homem que vestiu um simples
colar de miçangas, não viu logo todos os homens com o mesmo traje; mas pouco a
pouco a moda pegando, até que vieram atrás das miçangas, conchas, pedras ver e
outras. Daí até o capote, e as atuais mangas de presunto, em q as senhoras metem
os braços, que caminho! O chapéu baixo, feltro ou palha, era há 25 anos uma
minoria ínfima. Há uma chapelaria nesta cidade que se inaugurou com chapéus altos
em toda a par nas portas, vidraças, balcões, cabides, dentro das caixas, tudo
chapéus altos. Anos depois, passando por ela, não vi mais um só daquela espécie;
eram muitos e baixos, de vária matéria e formas variadíssimas.
Não admira que acabemos todos de cinta de seda. Quem sabe não é uma
reminiscência da tanga do homem primitivo? Quem sabe se não vamos remontar os
tempos até ao colar de miçangas? Talvez a perfeição esteja aí. Montaigne é de
parecer que não fazemos m que repisar as mesmas cousas e andar no mesmo
círculo; e o Eci siastes diz claramente que o que é, foi, e o que foi, é o que há vir.
Com autoridades de tal porte, podemos crer que acabarão algum dia alfaiates e
costureiras. Um colar apenas, matéria simples, na mais; quando muito, nos bailes,
um simulacro de gibus para ped com graça uma quadrilha ou uma polca. Oh! a polca
das miçanga. Há de haver uma com esse título, porque a polca é eterna, e quando
não houver mais nada, nem sol, nem lua, e tudo tornar às trevas, últimos deus ecos
da catástrofe derradeira usarão ainda, no fundo do infinito, esta polca, oferecida ao
Criador: Derruba, meu De derruba!
Como se disfarçarão os homens pelo carnaval quando voltar idade da
miçanga? Naturalmente com os trajes de hoje. A Gazeta de Notícias escreverá por
esse tempo um artigo, em que dirá:
Pelas figuras que têm aparecido nas ruas, terão visto os nossos leitores a
Onde foi, séculos atrás, já não diremos o mau gosto, que é evidente, mas violação
da natureza, no modo de vestir dos homens. Quando possuíam as melhores
casacas e calças, que são a própria epiderme, tão justa ao corpo, tão sincera,
inventaram umas vestiduras perversas falsas. Tudo é obra do orgulho humano, que
pensa aperfeiçoar a natureza, quando infringe as suas leis mais elementares. Vede
o lenço; o homem de outrora achou que ele tinha uma ponta de mais, e fez um
tecido de quatro pontas, sem músculos, sem nervos, sem sangue, absolutamente
imprestável, desde que não esteja a da pessoa. Há no nosso museu nacional um
exemplar dessa ridicularia. Hoje, vara dar uma idéia viva da diferença das duas
civilizações, publicam um desenho comparativo, dous homens, um moderno, outro
dos fins do século XIX; é obra de um jovem por um dos redatores desta folha, o
nosso excelente companheiro João, amigo de todos os tempos.
Que não possa eu ler esse artigo, ver as figuras, compará-las, e repetir os
ditos do Eciesiastes e de Montaigne, e anunciar aos povos desse tempo que a
civilização mudará outra vez de camisa! Irei antes, muito antes, para aquela outra
Petrópolis, capital da vida eterna. Lá ao menos há fresco, não se morre de
insolação, nome que já entrou no nosso obituário, segundo me disseram esta
semana. Não se pode imaginar a minha desilusão. Eu cria que, apesar de termos
um sol de rachar, não morreríamos nunca de semelhante cousa. Há anos deram-se
aqui alguns casos de não sei que moléstia fulminante, que disseram ser isso; mas
vão lá provar que sim ou que não. Para se não provai nada, é que o mal fulmina.
Assim, nem tudo acaba em cajuada, como eu supunha; também se morre de
insolação. Morreu um, morrerão ainda outros. A chuva destes dias não fez mais que
açular a canícula.
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De resto, a morte escreveu esta semana em suas tabelas, algumas das
melhores datas, levando consigo um Dantas, um José Silva, um Coelho Bastos. Não
se conclui que ela tem mais amor aos que sobrenadam, do que aos que se
afundam; a sua democracia não distingue. Mas há certo gosto particular em dizer
aos primeiros, que nas suas águas tudo se funde e confunde, e que não há serviços
à pátria ou à humanidade, que impeçam de ir para onde vão os inúteis ou ainda os
maus. Vingue-se a vida guardando a memória dos que o merecem, e na proporção
de cada um, distintos com distintos, ilustres com ilustres.
Essa há de ser a moda que não acaba. Ou caminhemos para a perfeição
deliciosa e terna, ou não façamos mais que ruminar, perpétuo camelo, o mesmo
jantar de todas as idades, a moda de morrer é a mesma ... Mas isto é lúgubre, e a
primeira das condições do meu ofício é deitar fora as melancolias, mormente em dia
de carnaval. Tornemos ao carnaval, e liguemos assim o princípio e o fim da crônica.
A razão de o não termos este ano, é justa; seria até melhor que a proibição não
fosse precisa, e viesse do próprio ânimo dos foliões. Mas não se pode pensar em
tudo.
[132]
[11 março]
Escrevo com o pé no estribo. É um modo de dizer que talvez esteja prestes a
mudar de clima. Para onde, não sei. Se consultasse o meu desejo, iria para a ilha da
Trindade. Pelo que leio, foi um cidadão norte-americano, casado com uma linda
moça de New York, que entrou pela ilha dentro, não achou viva alma, tomou conta
do território e trata de colonizá-lo. Dizem as notícias que a ilha será um principado, e
já tem o seu brasão; um triângulo de ouro com uma coroa ducal. Dizem mais que o
posseiro já embarcou para a Europa, a fim de ser reconhecido pelas potência.
Justamente o contrário do que eu faria; mas se os gostos fossem iguais, já não
haveria mundo neste mundo.
Eu, entrando que fosse na ilha, começava por não sair mais dela; far-me-ia rei
sem súbditos. Ficaríamos três pessoas, eu, a rainha um cozinheiro. Mais tarde,
poetas e historiadores concordariam e dizer que as três pessoas da ilha é que deram
ocasião ao título desta diferença é que os poetas diriam a cousa em verso, sem
documentos, e os historiadores di-la-iam em prosa com documentos. Entre tanto,
não só o título é anterior, como não haveria em mim a menor intenção simbólica.
Rei sem súbditos! Oh! sonho sublime! imaginação única! Rei se ter a quem
governar, nem a quem ouvir, nem petições, nem aborrecimentos. Não haveria
partido que me atacasse, que me espiasse, que me caluniasse, nem partido que me
bajulasse, que me beijasse os pé que me chamasse sol radiante, leão indômito,
cofre de virtudes, o a e a vida do universo. Quando me nascesse uma espinha na
cara, não haveria uma corte inteira para me dizer que era uma flor, uma açucena,
que todas as pessoas bem constituídas usavam por enfeite; nenhum, mais
engenhoso que os outros, acrescentaria: "Senhor, natureza também tem as suas
modas". Se eu perdesse um pé, na teria o desprazer de ver coxear os meus
vassalos.
Entretanto, para que a mentira não se pudesse supor exilada do meu reino,
eu ensinaria à rainha e ao cozinheiro uma geografia nova; dir-lhes-ia que a terra era
um pão de açúcar, ou uma pirâmide, par ser mais egípcio, e que a minha ilha era o
cume da pirâmide. Tudo mais estava abaixo. O sol não era propriamente um sol,
mas um mensageiro que me traria todos os dias as saudações da parte inferi da
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terra. As estrelas, suas filhas, incumbidas de velar-me à noite eram as aias
destinadas unicamente ao rei da Trindade.
— Mas também em New York há estrelas e na Virgínia, e n Califórnia, diria a
rainha da Trindade durante as primeiras lições.— Jasmim-do-cabo (este é o nome
que eu lhe daria), jasmim-do-cabo e do meu coração, as estrelas de New York, da
Califórnia e Virgínia não são filhas do sol, mas enteadas. Hás de saber que o s é
casado em segundas núpcias com a lua, que lhe trouxe todas e filhas que operam lá
embaixo. As daqui são filhas dele mesmo; são as de raça pura e divina.
E eu acabaria crendo nos meus próprios sonhos, que é a vantagem deles, e a
mais positiva do mundo. Prova disso é a notícia da moratória dada esta semana a
um comerciante, por credores de cerca sete mil contos. Foi tal o efeito que isto
produziu em mim, que entrei a supor-me devedor de sete, de dez, de vinte mil
contos. Comecei por uma pontinha de inveja; não pela moratória, que para mim seria
indiferente; com ela ou sem ela, o principal é dever tantos mil contos de réis. As
pequenas dívidas são aborrecidas como moscas. As grandes, logicamente. deviam
ser terríveis como leões, e são mansíssima.
Cri-me devedor dos sete mil contos, tanto mais feliz quanto q não lidara com
dinheiros tão altos. Este sonho, que afligiria a espíritos menos sublimes, para mim foi
tal que se converteu em realidade e não pude acabar de crer que não devia nada,
quando o meu cria me quis provar hoje de manhã que todas as minhas pequenas
contas estavam pagas. As pequenas, creio; mas as grandes? Sim, eu de ainda, pelo
menos uns cinco mil contos. Que não possa dever vinte mil! Quem não prefere ser
devedor de vinte mil contos, a ser credor de quatro patacas?
Demais, tenho veneração aos grandes números. Acho que a marcha da
civilização explica-se pelo crescimento numeroso dos séculos. Que podia ser o
século IV em comparação com o século XIX? Que poderá ser o século XIX, em
comparação com o século MDCCCXXXVIII? O maior número implica maior
perfeição.
Vede o obituário. À medida que vai crescendo, deixa de ser a lista vulgar dos
outros dias: impõe, aterra. Já é alguma cousa morrerem ara mais de cento e setenta
pessoas. Podemos chegar a duzentas e a trezentas. Certamente não é alegre; há
espetáculos mais joviais, leituras mais leves; mas o interesse não está na leveza
nem na alegria. A tragédia é terrível, é pavorosa, mas é interessante. Depois, se é
verdade que os mortos governam os vivos, também o é que os vivos vem dos
mortos. Esta outra idéia é banal, mas não podemos deixar reconhecer que os
alugadores de carros, os cocheiros, os farmacêuticos, os físicos (para falar à antiga),
os marmoristas, os escrivães, os juizes, alfaiates, sem contar a Empresa Funerária,
ganham com o que os outros perdem. Ex fumo dare lucem.
Mas deixemos números tristes, e venhamos aos alegres. O dos concorrentes
literários da Gazeta é respeitável. Por maior que seja a lista os escritos fracos, certo
é que ainda ficou boa soma de outros, e dos vencidos ainda os haverá que pugnem
mais tarde e vençam. Bom é e, no meio das preocupações de outra ordem, as
musas não tenham perdido os seus devotos e ganhem novos. Magalhães de
Azeredo, que ficou à frente de todos, pode servir de exemplo aos que, tendo talento
ele, quiserem perseverar do mesmo modo. Vivam as musas! belas moças antigas
não envelhecem nem desfeiam. Afinal é o à mais firme debaixo do sol.
62
[133]
[18 março]
Que se anunciou a batalha do dia 13, recolhi-me à casa, disposto a não
aparecer antes de tudo acabado. Convidaram-me a subir a os morros, onde o perigo
era muito menor que o sol; mas o sol grande. Nem a vista dos homens que
passavam, desde manhã, com óculos e Binóculos, me animou a ir também ver a
batalha. A preguiça ajudou o temor, e ambos me ataram as pernas.
Em casa, ocorreu-me que podia ter a visão da batalha, sem sol nem diga. Era
bastante que me ajudasse o gênio humano com o seu poder divino. A história, por
mais animada que fosse, não sei se me daria a própria sensação da cousa. A poesia
era melhor; Homero, por exemplo, com a Ilíada. Nada mais apropriado que este
poema. Tróia, um campo entre a cidade e os navios, e no campo e nos avios as
tropas gregas. Aqui as fortalezas e as balas formariam o campo.
Ouço uma objeção. A pólvora não estava inventada no tempo de mero. É
certo; mas também é certo que outras cousas havia no tempo de Homero, que
totalmente se perderam. Nem eu pedia mais que a vista da realidade por sugestão
da poesia.
Ao meio-dia, troando os primeiros tiros, abri o poeta. Pouco a pouco fui
mergulhando na ação cantada. As pancadas que os cocheiros de bonds davam com
os pés, para instigar as multas, cansadas de puxar tanta gente, )a me pareciam o
tumulto dos carros dos guerreiros. Percebi o efeito da leitura. Quando o meu criado
me levou ao gabinete uma cajuada, cuidei que era a deusa Hebe que me servia uma
taça de néctar, e disse:
— Hebe divina, graças à tua excelsa bondade, vou apreciar esta delícia,
desconhecida aos homens.
José Rodrigues, com espanto de si mesmo, retorquia-me:
— Tu és já um deus, tu estás no próprio Olimpo, ao lado de Júpiter.
Vi que era assim mesmo. Mas, em vez de entrar na luta dos homens ,— como
os outros deuses, meus colegas, deixei-me estar mirando o furor dos combates, o
retinir das lanças nos broquéis, o estrondo das armaduras quebradas, o sangue que
corria dos peitos, das pernas e dos ombros, os homens que morriam e as vozes
grandes de todos. Era belo ver os deuses intervindo na pugna, disfarçados em
pessoas da terra, desviando os golpes de uns, guiando a mão de outros, cobrindo a
estes com uma nuvem opaca, fazê-los sair do campo, falando, animando,
descompondo, se era preciso. Os seus próprios ardis eram admiráveis.
De quando em quando, a memória e o ouvido juntavam-se à leitura, e a
realidade ia de par com a ficção. Assim no momento em que Marte, lanceado por
Diomedes, volta ao céu, onde Paeon lhe deita um bálsamo suavíssimo, na ferida,
que o faz sarar logo, veio-me à lembrança a notícia lida naquela manhã de estarem
fechadas todas as farmácias da cidade, menos a do Sr. Honório Prado. Depois,
quando o capacete de Agamenon recolhe os sinais dos guerreiros, o arauto os agita,
e, tira-se à sorte qual será o valente que terá de lutar com Heitor, ouvi, lembro-me
bem que ouvi uma voz conhecida na rua: "Um resto! vinte contos!" Tudo, porém, se
confundia na minha imaginação; e a realidade presente ou passada era prontamente
desfeita na contemplação da poesia.
63
Todos os guerreiros me apareciam, com as armas homéricas, rutilantes e
fortes, com os seus escudos de sete e oito couros de boi, cobertos de bronze, os
arcos e setas, as lanças e capacetes. Agamenon, rei dos reis, o divino Aquiles,
Diomedes, os dous Ájax, e tu, artificioso Ulisses, enfrentando com Heitor, com
Enéias, com Páris, com todos os bravos defensores da santa Ílion. Via o campo
coalhado de mortos, de armas, de carros. As cerimônias do culto, as libações e os
sacrifícios vinham temperar o espetáculo da cólera humana; e, posto que a cozinha
de Homero seja mais substancial que delicada, gostava de ver matar um boi, passá-
lo pelo fogo e comê-lo com essa mistura de mel, cebola, vinho e farinha, que devia
ser muito grata ao paladar antigo.
A ação ia seguindo, com a alternativa própria das batalhas. Ora perdia um,
ora outro. Este avançava até à praia, depois recuava, terra dentro. O clamor era
enorme, as mortes infinitas. Heróis de ambos os lados caíam, ensopados em
sangue. O terror desfazia as linhas, a coragem as recompunha, e os combates
sucediam aos combates. Eu, do Olimpo, mirava tudo, tudo tranqüilo como agora que
escrevo isto. Minto; não podia esquivar-me à comoção dos outros deuses. Assim,
quando Pátroclo, vendo os seus quase perdidos, saiu a combater com as armas de
Aquiles, senti a grandeza do espetáculo; mas nem esse nem outro gosto algum
pode ser comparado ao que me deu o próprio Aquiles, quando soube que o amigo
morrera às mãos de Heitor.
Vi, ninguém me contou, vi as lágrimas e a fúria do herói. Vi-o sair com as
novas armas que o próprio Vulcano fabricou para ele; vi, depois, ainda novos e
terríveis combates. No mais renhido deles, desceram todos os deuses e dividiram-se
entre os exércitos, conforme as suas simpatias. Só ficamos Júpiter e eu. E disse-me
o rei dos deuses:
— Anônimo (chamo-te assim, porque ainda não tens nome no céu),
contempla comigo este quadro não menos deleitoso que acerbo. Até os rios
buscaram combater Aquiles; mas o filho de Peleu vencerá a todos.
Não direi o que vi, nem o que ouvi; teria de repetir aqui uma interminável
história. Foi medonho e belo. Os deuses, mais que nunca, ajudavam os homens.
Momento houve em que eles próprios combateram uns com outros, entre grandes
palavradas, cão, cadela, e muito murro, muita pedrada, uma luta de raivas e
despeitos. Enfim, Aquiles matou Heitor. Jamais esquecerei as lamentações das
mulheres troianas. Assisti depois às festas da vitória, corridas a cavalo e a pé, o
disco e o pugilato.
Eram seis horas da tarde, quando me chamaram para jantar. Pessoas vindas
dos morros próximos contaram que não houvera batalha nenhuma; desmenti esse
princípio de balela, referindo tudo o que vira, que foi muito, longo e áspero. Não me
deram crédito. Um insinuou que eu tinha o juízo virado. Outro quis fazer-me crer que
a fogueira em que ardiam os restos de Heitor, era um simples incêndio na ilha das
Cobras. Os jornais estão de acordo com os meus contraditores; mas eu prefiro crer
em Homero, que é mais velho.
[134]
[25 março]
A semana foi santa — mas não foi a semana santa que eu conheci, quando
tinha a idade de mocinho nascido depois da guerra do Paraguai. Deus meu! Há
64
pessoas que nasceram depois da guerra do Paraguai! Há rapazes que fazem a
barba, que namoram, que se casam, que têm filhos, e, não obstante, nasceram
depois da batalha de Aquidabã! Mas então que é o tempo? É a brisa fresca e
preguiçosa de outros anos, ou este tufão impetuoso que parece apostar com a
eletricidade? Não há dúvida que os relógios, depois da morte de López, andam
muito mais depressa. Antigamente tinham o andar próprio de uma quadra em que as
notícias de Ouro Preto gastavam cinco dias para chegar ao Rio de Janeiro. Ia-se a
São Paulo por Santos. Ainda assim, na semana, os estudantes de Direito desciam a
serra de Cubatão e vinham tomar o vapor de Santos para o Rio. Que digo? Ca
houve em que vieram unicamente assistir à primeira representação um a peça de
teatro. Lembras-te, Ferreira de Meneses? Lembras-te Sisenando Nabuco? Não
respondem; creio que estão mortos.
Aí vou escorrendo para o passado, cousa que não interessa no presente. O
passado que o jovem leitor há de saborear é o presente lá para 1920, quando os
relógios e os almanaques criarem asas. Ei tão, se ele escrever nesta coluna, aos
domingos, será igualmente insípido com as suas recordações.
Tempo houve (dirá ele) em que o primeiro Frontão da Rua do Ouvidor
descendo, à esquerda, perto da Rua de Gonçalves Dias, era uma confeitaria,
Confeitaria Pascoal. Este nome, que nenhuma comoção produz na alma do rapaz
nascido com o século, acorda em mim saudades vivíssimas. A casa mesma rua,
esquina da dos Ourives, onde ainda ontem (perdoem ao guloso) comprei um
excelente paio, era uma casa de jóia, pertencente a um italiano, um Farâni, César
Farâni, creio, na qual passei horas excelentes. Fora, for memórias importunas!
Assim poderá escrever o leitor, em 1920, nesta ou noutra coluna para os
jovens desse ano não será menos aborrecido.
Mas, por isso mesmo que os há de enfadar, deixe-me enfadá-lo um pouco,
repetindo que a semana santa que acabou ontem ou acaba hoje não é a semana
santa anterior à passagem do Passo da Pátria ou ao último ministério Olinda.
As semanas santas de outro tempo eram, antes de tudo, muito mais
compridas. O Domingo de Ramos valia por três. As palmas que traziam das igrejas
eram muito mais verdes que as de hoje, mais melhor. Verdadeiramente já não há
verde. O verde de hoje é um amarelo escuro. A segunda-feira e a terça-feira eram
lentas, não longas; não sei se percebem a diferença. Quero dizer que eram tediosas,
por serem vazias. Raiava, porém, a quarta-feira de trevas; era princípio de uma série
de cerimônias, e de ofícios, de procissões, sermões de lágrimas, até o sábado de
aleluia, em que a alegria reaparecia, e finalmente o Domingo de Páscoa que era a
chave de ouro.
Tenho mais critério que meu sucessor de 1920; não quero matá-lo com
algumas notícias que ele não há de entender. Como entender, depois da passagem
de Humaitá, que as procissões do enterro, uma de São Francisco de Paula, outra do
Carmo, eram tão compridas que não acabavam mais? Como pintar-lhe os andores,
as filas tochas inumeráveis, as Marias Behús, segundo a forma popular, centurião, e
tantas outras partes da cerimônia, não contando as janelas das casas iluminadas,
acolchoadas e atapetadas de moças bonitas — moças e velhas — porque já
naquele tempo havia algumas pessoas velhas, mas poucas. Tudo era da idade e da
cor das palmas verde. A velhice é uma idéia recente. Data do berço de um menino
que vi nascer com o ministério Sinimbu. Antes deste — ou mais exatamente, antes
do ministério Rio Branco — tudo era juvenil no mundo, não juvenil de passagem,
mas perpetuamente juvenil. As exceções que eram raras, vinham confirmar a regra.
65
Não entenderíeis nada. Nem sei se chegareis a entender o que sucedeu
agora, indo ver o ofício da Paixão em uma igreja. Outrora, quando de todo o sermão
da montanha eu só conhecia o padre-nosso, a impressão que recebia era mui
particular, uma mistura de fé e de curiosidade, um gosto de ver as luzes, de ouvir os
cantos, de mirar as alvas e as casulas, o hissope e o turíbulo. Entrei na igreja. A
gente não era muita; sabe-se que parte da população está fora daqui. Metade dos
fiéis ali presentes eram senhoras, e senhoras de chapéu. Nunca. me esqueceu o
escândalo produzido pelos primeiros chapéus que ousaram entrar na igreja em tais
dias; escândalo sem tumulto, nada mais que murmuração. Mas o costume venceu a
repugnância e os chapéus vão à missa e ao sermão. Algumas senhoras rezavam
por livros, outras desfiavam rosários, as restantes olhavam só ou rezariam
mentalmente. Não quero esquecer um velho cantor de igreja, que ali achei, e que,
em criança, ouvira cantar nas festas religiosas; creio que nunca fez outra cousa,
salvo o curto período em que o vi no coro da defunta ópera Nacional. Que idade
teria? Sessenta, setenta, oitenta...
Soou o cantochão. Chegou-me o incenso. A imaginação deixou-se-me
embalar pela música e inebriar pelo aroma, duas fortes asas que a levaram de oeste
a leste. Atrás dela foi o coração, tornado à simpleza antiga. E eu ressurgi, antes de
Jesus. E Jesus apareceu-me antes de morto e ressuscitado, como nos dias em que
rodeava a Galiléia, e, abrindo os lábios, disse-me que a sua palavra dá solução a
tudo.
— Senhor, disse eu então, a vida é aflitiva, e aí está o Eclesiastes que diz ter
visto as lágrimas dos inocentes, e que ninguém os consolava.
— Bem-aventurados os que choram, porque eles serão consolados. — Vede
a injustiça do mundo. "Nem sempre o prêmio é dos que melhor correm, diz ainda o
Eclesiastes, e tudo se faz por encontro e casualidade."
— Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão
fartos.
— Mas é ainda o Eclesiastes que proclama haver justos, aos quais provêm
males...
— Bem-aventurados os que são perseguidos por amor da justiça, porque
deles é o reino do céu.
E assim por diante. A cada palavra de lástima respondia Jesus com uma
palavra de esperança. Mas já então não era ele que me aparecia, era eu que estava
na própria Galiléia, diante da montanha, ouvindo com o povo. E o sermão
continuava. Bem aventurados os pacíficos. Bem-aventurados os mansos...
[135]
[1 abril]
Enfim! Vai entrar em discussão no Conselho Municipal o projeto que ali
apresentou o Sr. Dr. Capelli, sobre higiene. Ainda assim, foi preciso que o autor o
pedisse, anteontem. Já tenho lido que o Conselho trabalha pouco, mas não aceito
em absoluto esta afirmação. Conselho Municipal ou Câmara Municipal, a instituição
que dirige os serviços da nossa velha e boa cidade, foi sempre objeto de censuras,
às vezes com razão, outras sem ela, como aliás acontece todas as instituições
humanas.
66
Trabalhe pouco ou muito, é de estimar que traga para a discussão o projeto
do Sr. Dr. Capelli. Se ele não resolve totalmente a questão higiênica, nem a isso se
propõe, pode muito bem resolvê-la em parte. Não entro no exame dos seus diversos
artigos; basta-me o primeiro. 0 primeiro artigo estabelece concurso para a nomeação
dos comissários de higiene, que se chamarão de ora avante inspetores sanitários. É
discutível a idéia do concurso. Não me parece claro que melhore o serviço, e pode
não passar de simples ilusão. O artigo, porém, dispõe, como ficou dito, que os
comissários de higiene se chamem de ora avante inspetores sanitários, e essa troca
de um nome para outro é meio caminho andado para a solução. Os nomes velhos
ou gastos tornam caducas as instituições. Não se melhora verdadeiramente um
serviço deixando o mesmo nome aos seus oficiais. É do Evangelho, que não se põe
remendo novo em pano velho. O pano aqui é a denominação. O próprio Conselho
Municipal tem em si um exemplo do que levo dito. Câmara Municipal não era mau
nome, tinha até um ar democrático; mas estava puído. O nome criou a personagem
da cousa, e a má fama levou consigo a obra e o título. Conselho Municipal, sendo
nome diverso, exprime a mesma idéia democrática, é bom e é novo.
Outro exemplo, e de fora. Sabe-se que a Câmara dos Lords está arriscada a
descambar no ocaso, ou a ver-se muito diminuída. Não duvido que os seus últimos
atos tenham dado lugar à guerra que lhe movem, com o próprio chefe do governo à
frente, se é certo o que nos disse há pouco um telegrama. Mas quem sabe se,
trocando oportunamente o título, não teria ela desviado o golpe iminente, embora
ficasse a mesma cousa, ou quase?
Conta-se de um homem (creio que já referi esta anedota) que não podia
achar bons copeiros. De dous em dous meses, mandava embora o que tinha, e
contratava outro. Ao cabo de alguns anos chegou ao desespero; descobriu, porém,
um meio com que resolveu a dificuldade. O copeiro que o servia então, chamava-se
José. Chegado o momento de substituí-lo, pagou-lhe o aluguel e disse:
— José, tu agora chamas-te Joaquim. Vai pôr o almoço, que são horas.
Dous meses depois, reconheceu que o copeiro voltava a ser insuportável.
Fez-lhe as contas, e concluiu:
— Joaquim, tu passas agora a chamar-te André. Vai lá para dentro.
Fê-lo João, Manuel, fê-lo Marcos, fê-lo Rodrigo, percorreu toda a onomástica
latina, grega, judaica, anglo-saxônia, conseguindo ter sempre o mesmo ruim criado,
sem andar a buscá-lo por essas ruas. Entendamo-nos; eu creio que a ruindade
desaparecia com a investidura do nome, e voltava quando este principiava a
envelhecer. Pode ser também que não fosse assim, e que a simples novidade do
nome trouxe ao amo a ilusão da melhoria. De um ou de outro modo, a influência dos
nomes é certa.
Por exemplo, quem ignora a vida nova que trouxe ao ensino da infância a
troca daquela velha tabuleta "Colégio de Meninos" por esta outra "Externato de
Instrução Primária"? Concordo que o aspecto científico da segunda forma tenha
parte no resultado; antes dele, porém, há o efeito misterioso da simples mudança.
Mas eu vou mais longe.
Vou tão longe, que ouso crer nas reabilitações históricas, unicamente ou
quase unicamente pelo alteração do nome das pessoas. O atual processo para
esses trabalhos é rever os documentos, avaliar as opiniões, e contar os fatos,
67
comparar, retificar, excluir, incluir, concluir. Todo esse trabalho é inútil, se não trocar
o nome por outro. Messalina, por exemplo. Esta imperatriz chegou à celebridade do
substantivo, que é a maior a que pode aspirar uma criatura real ou fingida: uma
messalina, um tartufo. Se quiserdes tirá-la da lama histórica, em que ela caiu, não
vos bastará esgravatar o que disseram dela os autores; arranca-lhe violentamente o
nome. Chama-lhe Anastácia. Quereis fazer uma experiência? Pegai em Suetônio e
lede com o nome de Anastácia tudo o que ele se refere de Messalina; é outra cousa.
O asco diminui, o horror afrouxa, o escândalo desaparece; e a figura emerge, não
digo para o céu, mas para uma colina. Em história, o ocupar uma colina é alguma
cousa. Gregorovius, como outros autores deste século, quis reabilitar Lucrécia
Bórgia; acho que o fez, mas esqueceu-se de lhe mudar o nome, e toda gente
continua a descompô-lo em prosa com Vítor Hugo, ou em verso e por música com
Donizetti.
Voltando aos comissários de higiene, futuros inspetores sanitários, repito que
o serviço melhorará muito com essa alteração do título, e não é pouco. Mas é
preciso que, sem dizê-lo na lei, nem no parecer, nem nos debates, fiquem todos
combinados em alterar periodicamente o título, desde que o serviço precise reforma.
Não me compete lembrar outros, nem me ocorre nenhum. Digo só que, passados
mais quatro ou cinco títulos, não será má política voltar ao primeiro. Os nomes têm,
às vezes, a propriedade de criar pele nova, só com o desuso ou descanso.
Comissário de higiene, que vai ser descalçado agora, desde que repouse alguns
anos, ficará com sola nova e tacão direito. Assim acontecesse aos meus sapatos!
[136]
[8 abril]
Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma cousa tão interessante,
que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de
pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que
lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve-me a impertinência; os gostos não
são iguais.
Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o
antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bonds, estava uni burro deitado. O lugar não
era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas
caído. Instantes depois, vimos (eu ia com um amigo), vimos o burro levantar a
cabeça e meio corpo. Os nossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos
fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mas tão frouxamente, que
parecia estar próximo do fim.
Diante do animal havia algum capim espalhado e uma lata com água. Logo,
não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quem quer que
é que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se
o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta. receba daqui um aperto de
mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava para outros capins e
outras águas, em campos mais largos e eternos.
Meia dúzia de curiosos tinham parado ao pé do animal. Um deles, menino de
dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca
do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava
do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Diga-se a verdade; não o fez
— ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos. Esses poucos minutos,
porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na terra, valerão por um século,
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tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos
estudiosos.
O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos
curiosos, como ao capim e à água, tinha no olhar a expressão dos meditativos. Era
um trabalho interior e profundo. Este remoque popular: por pensar morreu um burro
mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento
não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do
pensamento, não há dúvida que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame
da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali
gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas, más
idéias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
E diria o burro consigo:
"Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso.
Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda
a minha vida, se dei três couces, foi o mais, isso mesmo antes de haver aprendido
maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar.
Quanto ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não
entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com idéia de agravar
ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bond, houve
algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era
minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando a
autoridade.
"Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor
lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a
minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo
nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem.
Nenhum golpe de Estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os abrigou.
Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os
interesses dá minha espécie. Qualquer que seja o regímen, ronca o pau. O pau é a
minha instituição um pouco temperada pela teima, que é, em resumo, o meu único
defeito. Quando não teimava, mordia freio, dando assim um bonito exemplo de
submissão e conformidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o
freguês o tílburi ou o apito do bond, para sair logo. Até aqui os males que não fiz;
vejamos os bens que pratiquei.
"A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa tílburi e o
namorado à casa da namorada — ou simplesmente empacando em lugar onde o
moço que ia no bond podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos
devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a
muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos
sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscos, queria fazer rir os
amigos, fui sempre em auxílio dele, deixando que me desse tapas e punhadas na
cara. Enfim... "
Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso.
Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de que um burro tão bom
pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os
mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam, não seriam menos
exemplares que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do
burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também,
coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às
nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior?
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Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já
morto.
Dous meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante;
mas a infância, como a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver
nem nada. Assim passam os trabalhos desse mundo. Sem exagerar o mérito do
finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a
dinamite. Já é alguma cousa neste final de século. Requiescat in pace.
[137]
[10 junho]
Ontem de manhã, indo ao jardim, como de costume, achei lá um burro. Não
leram mal, não, meus senhores, era um burro de carne e osso, de mais osso que
carne. Ora, eu tenho rosas no jardim, rosas que cultivo com amor, que me querem
bem, que me saúdam todas as manhãs com os seus melhores cheiros, e dizem sem
pudor cousas mui galantes sobre as delícias da vida, porque eu não consinto que as
cortem do pé. Hão de morrer onde nasceram.
Vendo o burro naquele lugar, lembrei-me de Lucius, ou Lucius da Tessália,
que, só com mastigar algumas rosas, passou outra vez de burro a gente. Estremeci,
e confesso a minha ingratidão — foi menos pela perda das rosas, que pelo terror do
prodígio. Hipócrita, como me cumpria ser, saudei o burro com grandes reverências,
e chamei-lhe Lucius. Ele abanou as orelhas, e retorquiu:
— Não me chamo Lucius.
Fiquei sem pinga de sangue; mas para não agravá-lo com demonstrações de
espanto, que lhe seriam duras, disse:
— Não? Então o nome de Vossa Senhoria...?— Também não tenho senhoria.
Nomes só se dão a cavalos, e quase exclusivamente a cavalos de corrida. Não leu
hoje telegramas de Londres, noticiando que nas corridas de Oaks venceram os
cavalos Fulano e Sicrano? Não leu a mesma cousa quinta-feira, a respeito das
corridas de Epsom? Burro de cidade, burro que puxa bond ou carroça não tem
nome; na roça pode ser. Cavalo é tão adulado que, vencendo uma corrida na
Inglaterra, manda-se-lhe o nome a todos os cantos da terra. Não pense que fiz
verso: às vezes saem-me rimas da boca, e podia achar editor para cias, se quisesse;
irias não tendo ambições literárias. Falo rimado, porque e falo poucas vezes, e
atrapalho-me. Pois, sim senhor. E sabe de quem é o primeiro dos cavalos
vencedores de Epsom, o que se chama Ladas? É do próprio chefe do governo, lord
Roseberry, que ainda não há muito ganhou com ele deus mil guinéus.
— Quem é que lhe conta todas essas cousas inglesas?— Quem? Ali! meu
amigo, é justamente o que me traz a seus pós, disse o burro ajoelhando-se, mas
levantando-se, a meu pedido. E continuou: Sei que o senhor se dá com gente de
imprensa, e vim aqui para lhe pedir que interceda por mim e por uma classe inteira,
que devia merecer alguma compaixão ...
— Justiça, justiça, emendei eu com hipocrisia e servilismo.
—Vejo que me compreende. Ouça-me; serei breve. Em regra, só se devia
ensinar aos burros a língua do país; mas o finado Greenough o primeiro gerente que
teve a companhia do Jardim Botânico, achou que devia mandar ensinar inglês aos
burros dos bonds. Compreende-se o motivo do ato. Recém-chegado ao Rio de
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Janeiro, trazia mais vivo que nunca o amor da língua natal. Era natural crer que
nenhuma outra cabia a todas as criaturas da terra. Eu aprendi com facilidade...—
Como? Pois o senhor é contemporâneo da primeira gerência?— Sim, senhor; eu e
alguns mais. Somos já poucos, mas vamos trabalhando. Admira-me que se admire.
Devia conhecer os animais de 1869 pela valente decrepitude com que, embora
deitando a alma pela boca, puxamos os carros e os ossos. Há nisto um resto da
disciplina, que nos deu a primeira educação. Apanhamos, é verdade, apanhamos de
chicote, de ponta de pé, de ponta de rédea, de ponta de ferro, mas é só quando as
poucas forças não acodem ao desejo; os burros modernos, esses são teimosos,
resistem mais à pancadaria. Afinal, são moços.
Suspirou e continuou:
— No meio da tanta aflição, vale-nos a leitura, principalmente de folhas
inglesas e americanas, quando algum passageiro as esquece no bond. Um deles
esqueceu anteontem um número do Pruth. Conhece o Pruth?
— Conheço.
— É um periódico radical de Londres, continuou o burro, dando à força, a
notícia, como um simples homem. Radical e semanal. É escrito por um cidadão, que
dizem ser deputado. O número era o último, chegadinho de fresco. Mal me levaram
à manjedoura, ou cousa que o valha, folheei o periódico de Labouchère... Chamavase
Labouchère o redator. O periódico publica sempre em duas colunas notícia
comparativa das sentenças dadas pelos tribunais londrinos, com o fim de mostrar
que os pobres e desamparados têm mais duras penas que os que o não são, e por
atos de menor monta. Ora, que hei de ler no número chegado? Cousas destas. Um
tal John Fearon Bell, convencido de maltratar quatro potros, não lhes dando
suficiente comida e bebida, do que resultou morrer um e ficarem três em mísero
estado, foi condenado a cinco libras de multa; ao lado desse vinha o caso de Fuão
Thompson, que foi encontrado a dormir em um celeiro e condenado a um mês de
cadeia. Outra comparação. Eliott, acusado de maltratar dezesseis bezerros, cinco
libras de multa e custas. Mary Ellen Connor, acusada de vagabundagem, um mês de
prisão. William Poppe, por não dar comida bastante a oito cavalos, cinco libras e
custas. William Dudd, aprendiz de pescador, réu de desobediência, vinte e dous dias
de prisão. Tudo mais assim. Um rapaz tirou um ovo de faisão de um ninho: quatorze
dias de cadeia. Um senhor maltratou quatro vacas: cinco libras e custas.
— Realmente, disse eu sem grande convicção, a diferença é enorme...
— Ah! meu nobre amigo! Eu e os meus pedimos essa diferença, por maior
que seja. Condenem a um mês ou a um ano os que tirarem ovos ou dormirem na
rua; mas condenem a cinqüenta ou cem mil réis aqueles que nos maltratam por
qualquer modo, ou não nos dando comida suficiente, ou, ao contrário, dando-nos
excessiva pancada. Estamos prontos a apanhar, é o nosso destino, e eu já estou
velho para aprender outro costume; mas seja com moderação, sem esse furor de
cocheiros e carroceiros. O que o tal inglês acha pouco para punir os que são cruéis
conosco, eu acho que é bastante. Quem é pobre não tem vícios. Não exijo cadeia
para-os nossos opressores, mas uma pequena multa e custas, creio que serão
eficazes. O burro ama só a pele; o homem ama a pele e a bolsa. Dê-se-lhe na bolsa;
talvez a nossa pele padeça menos.
— Farei o que puder; mas ...
— Mas quê? O senhor afinal é da espécie humana, há de defender os seus.
Ela, fale aos amigos da imprensa; ponha-se à frente de um grande movimento
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popular. O conselho municipal vai levantar um empréstimo, não? Diga-lhe que, se
lançar uma pena pecuniária sobre os sue maltratam burros, cobrirá cinco ou seis
vezes o empréstimo, sem pagar juros, e ainda lhe, sobrará dinheiro para o Teatro
Municipal, e para teatros paroquiais, se quiser. Ainda uma vez, respeitável senhor,
cuide um pouco de nós. Foram os homens que descobriram que nós éramos seus
tios, senão diretos, por afinidade. Pois, meu caro sobrinho, é tempo de reconstituir a
família. Não nos abandone, como no tempo em que os burros eram parceiros dos
escravos. Faça o nosso treze de Maio. Lincoln dos teus maiores, segundo o
evangelho de Darwin, expede a proclamação da nossa liberdade!
Não se imagina a eloqüência destas últimas palavras. Cheio de entusiasmo,
prometi, pelo céu e pela terra, que faria tudo. Perguntei-lhe se lia o português com
facilidade; e, respondendo-me que sim, disse-lhe que procurasse a Gazeta de hoje.
Agradeceu-me com voz lacrimosa, fez um gesto de orelhas, e saiu do jardim
vagarosamente, cai aqui, cai acolá.
[138]
[1 julho]
Quinta-feira de manhã fiz como Noé, abri a janela da arca e soltei um corvo.
Mas o corvo não tornou, de onde inferi que as cataratas do céu e as fontes do
abismo continuavam escancaradas. Então disse comigo: As águas hão de acabar
algum dia. Tempo virá em que este dilúvio termine de uma vez para sempre, e a
gente possa descer e palmear a Rua do Ouvidor e outros becos. Sim, nem sempre
há de chover. Veremos ainda o céu azul como a alma da gente nova. O sol,
deitando fora a carapuça, espalhará outra vez os grandes cabelos louros. Brotarão
as ervas. As flores deitarão aromas capitosos.
Enquanto pensava, ia fechando a janela da arca e tornei depois aos animais
que trouxera comigo, à imitação de Noé. Todos eles aguardavam notícias do fim.
Quando souberam que não havia notícia nem fim, ficaram desconsolados.
— Mas que diabo vos importa um dia mais ou menos de chuva? pergunteilhes,
Vocês aqui estão comigo, dou-lhes tudo; além da minha conversação, viveis
em paz, ainda os que sois inimigos, lobos e cordeiros, gatos e ratos. Que vos
importa que chova ou não chova?— Senhor meu, disse-me um espadarte, eu sou
grato, e todos os nossos o são, ao cuidado que tivestes em trazer para aqui uma
piscina, onde podemos nadar e viver — mas piscina não vale o mar; falta-nos a onda
grossa e as corridas de peixes grandes e pequenos, em que nos comemos uns aos
outros, com grande alma. Isto que nos destes, prova que tendes bom coração, mas
nós não vivemos do bom coração dos homens. Vamos comendo, é verdade, mas
comendo sem apetite, porque o melhor apetite ...
Foi interrompido pelo galo, que bateu as asas, e, depois de cantar três vezes,
como nos dias de Pedro, proferiu esta alocução:
— Pela minha parte, não é a chuva que me aborrece. O que me aborreceu
desde o princípio do dilúvio, foi a vossa idéia de trazer sete casais de cada vivente,
de modo que somos aqui sete galos e sete galinhas, proporção absolutamente
contrária às mais simples regras da aritmética, ao menos as que eu conheço. Não
brigo com os outros galos, nem eles comigo, porque estamos em tréguas, não por
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falta de casus belli. Há aqui seis galos de mais. Se os mandássemos procurar o
corvo?
Não lhe dei ouvidos. Fui dali ver o elefante enroscando a tromba no surucucu,
e o surucucu enroscando-se na tromba do elefante. O camelo esticava o pescoço,
procurando algumas léguas de deserto, ou quando menos, uma rua do Cairo. Perto
dele, o gato e o rato ensinavam histórias um ao outro. O gato dizia que a história do
rato era apenas uma longa série de violências contra o gato, e o rato explicava que,
se perseguia o gato, é porque o queijo o perseguia a ele. Talvez nenhum deles
estivesse convencido. O sabiá suspirava. A um canto, a lagartixa, o lagarto e o
crocodilo palestravam em família. Cousa digna da atenção do filósofo é que a
lagartixa via no crocodilo uma formidável lagartixa, e o crocodilo achava a lagartixa
um crocodilo mimoso; ambos estavam de acordo em considerar o lagarto um
ambicioso sem gênio (versão lagartixa) e um presumido do sem graça (versão
crocodilo).
— Quando lhe perguntaram pelos avós, observou o crocodilo, costuma
responder que eles foram os mais belos crocodilos do mundo, o que pode provar
com papiros antiquíssimos e autênticos ...
Tendo nascido, concluiu a lagartixa, tendo nascido na mais humilde fenda de
parede, como eu... Crocodilo de bobagem!
— Notai que ele fala muito do loto e do nenúfar, refere casos do hipopótamo,
para enganar os outros, confunde Cleópatra com o Khediva, e as antigas dinastias
com o governo inglês ...
Tudo isso era dito sem que o lagarto fizesse caso. Ao contrário, parecia rir, e
costeava a parede da arca, a ver se achava algum calor de sol. Era então sextafeira,
à tardinha. Pareceu-me verdor uma fresta uma linha azul. Chamei uma pomba
e soltei-a pela janela da arca. Nisto chegou o burro, com uma águia pousada na
cabeça, ente as orelhas. Vinha pedir-me, em nome das outras alimarias, que as
soltasse. Falou-me teso e quieto, não tanto pela circunspeção da raça, como pelo
medo, que me confessou, de ver fugir-lhe águia, se mexesse muito a cabeça. E
dizendo-lhe eu que acabava de soltar a pomba, agradeceu-me e foi andando. Pelas
dez horas da noite, voltou a pomba com lima flor no bico. Era o primeiro sinal de que
as águas iam descendo.
As águas são ainda grandes, disse-me a pomba, mas parece que foram
maiores. Esta flor não foi colhida de erva, mas atirada pela janela fora de tinia arca,
cheia de homens, porque há muitas arcas boiando. Esta de que falo, deitou fora uma
porção de flores, colhi esta que não é das menos lindas.
Examinei a flor; era de retórica. Nenhum dos animais conhecia til planta.
Expliquei-lhes que era uma flor de estufa, produto da arte humana, que ficava entre
a flor de pano e a da campina. Há de haver alguma academia aí perto, concluí,
academia ou parlamento.
Ontem, sobre a madrugada, tornei a abrir a janela e soltei outra vez a pomba,
dizendo aos outros que, se ela não tornasse, era sinal de que as águas estavam
inteiramente acabadas. Não voltando até o meio-dia, abri tudo, portas e janelas, e
despejei toda aquela criação neste mundo. Desisto de descrever a alegria geral. As
borboletas e as aranhas iam dançando a tarantela, a víbora adornava o pescoço do
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cão, a gazela e o urubu, de asa e braço dados, voavam e saltavam ao mesmo tempo
... Viva o dilúvio! e viva o sol!
[139]
[5 agosto]
O PUNHAL DE MARTINHA
Quereis ver o que são destinos? Escutai. Ultrajada por Sexto Tarqüínio, uma
noite, Lucrécia resolve não sobreviver a desonra, mas primeiro denuncia ao marido e
ao pai a aleivosia daquele hóspede, e pede-lhes que a vinguem. Eles juram vingá-la,
e procuram tirá-la da aflição dizendo-lhe que só a alma é culpada, não o corpo, e
que não há crime onde não houve aquiescência. A honesta moça fecha os ouvidos à
consolação e ao raciocínio, e, sacando o punhal que trazia escondido, embebe-o no
peito e morre. Esse punhal podia ter ficado no peito da heroina, sem que ninguém
mais soubesse dele; mas, arrancado por Bruto, serviu de lábaro à revolução que fez
baquear a realeza e passou o governo à aristocracia romana. Tanto bastou para que
Tito Lívio lhe desse um lugar de honra na história, entre enérgicos discursos de
vingança. O punhal ficou sendo clássico. Pelo duplo caráter de arma doméstica e
pública, serve tanto a exaltar a virtude conjugal, como a dar força e luz à eloqüência
política.
Bem sei que Roma não é a Cachoeira, nem as gazetas dessa cidade balaria
podem competir com historiadores de gênio. Mas é isso mesmo que deploro. Essa
parcialidade dos tempos, que só recolhem, conservam e transmitem as 'ações
encomendadas nos bons livros, é que me entristece, para não dizer que me indigna.
Cachoeira não é Roma, mas o punhal de Lucrécia, por mais digno que seja dos
encômios do mundo, não ocupa tanto lugar na história, que não fique um canto para
o punhal de Martinha. Entretanto, vereis que esta pobre arma vai ser consumida pela
ferrugem da obscuridade.
Martinha não é certamente Lucrécia. Parece-me até, se bem entendo uma
expressão do jornal A Ordem, que é exatamente o contrário. "Martinha (diz ele) é
uma rapariga franzina, moderna ainda, e muito conhecida nesta cidade, de onde é
natural". Se é moça, se é natural da Cachoeira, onde é muito conhecida, que quer
dizer moderna? Naturalmente quer dizer que faz parte da última leva de Citera. Esta
condição, em vez de prejudicar o paralelo dos punhais, dá-lhe maior realce, como
ides ver. Por outro, lado, convém notar que, se há contrastes das pessoas, há uma
coincidência de lugar: Martinha mora na Rua do Pagão, nome que faz lembrar a
religião da esposa de Colatino. As circunstâncias dos dous atos são diversas.
Martinha não deu hospedagem a nenhum moço de sangue régio ou de outra
qualidade. Andava a passeio, à noite, um domingo do mês passado. O Sexto
Tarqüínio da localidade, cristãmente chamado João, corri o sobrenome de Limeira,
agrediu e insultou a moça, irritado naturalmente com os seus desdéns. Martinha
recolheu-se a casa. Nova agressão, à porta. Martinha, indignada, mas ainda
prudente, disse ao importuno: "Não se aproxime, que eu lhe furo". João Limeira
aproximou-se, ela deu-lhe uma punhalada, que o matou instantaneamente.
Talvez esperásseis que ela se matasse a si própria. Esperaríeis o impossível,
e mostraríeis que me não entendesses. A diferença das duas ações é justamente a
que vai do suicídio ao homicídio. A romana confia a vingança ao marido e ao pai. A
cachoeirense vinga-se por si própria, e, notai bem, vinga-se de uma simples
intenção. As pessoas são desiguais, mas força é dizer que a ação da primeira não é
74
mais corajosa que a da segunda, sendo que esta cede a tal ou qual subtileza de
motivos, natural deste século complicado.
Isto posto, em que é que o punhal de Martinha é inferior ao de Lucrécia? Nem
é inferior, mas até certo ponto é superior. Martinha não profere uma frase de Tito
Lívío, não vai a João de Barros, alcunhado o Tito Lívio português, nem ao nosso
João Francisco Lisboa, grande escritor de igual valia. Não quer sanefas literárias,
não ensaia atitudes de tragédia, não faz daqueles gestos oratórias que a história
antiga põe nos seus personagens. Não; ela diz simplesmente e incorretamente:
"Não se aproxime que eu lhe firo". A palmatória dos gramáticas pode punir essa
expressão; não importa, o eu lhe furo traz um valor natal e popular, que vale por
todas as belas frases de Lucrécia. E depois, que tocante eufemismo! Furar por
matar; não sei se Martinha inventou esta aplicação; mas, fosse ela ou outra a autora,
é um achado do povo, que não manuseia tratados de retórica, e sabe às vezes mais
que os retóricas de ofício.
Com tudo isso, arrojo de ação, defesa própria, simplicidade de palavra,
Martinha não verá o seu punhal no mesmo feixe de armas que os tempos
resguardam da ferrugem. O punhal de Carlota Corday, o de Ravaillac, o de Booth,
todos esses e ainda outros farão cortejo ao punhal de Lucrécia, luzidos e prontos
para a tribuna, para a dissertação, para a palestra. O de Martinha irá rio abaixo do
esquecimento, Tais são as cousas deste mundo! Tal é a desigualdade dos destinos!
Se, ao menos, o punhal de Lucrécia tivesse existido, vá; mas tal alma, nem tal
ação, nem tal injúria, existiram jamais, é tudo uma pura lenda, que a história meteu
nos seus livros. A mentira usurpa assim a coroa da verdade, e o punhal de Martinha,
que existiu e existe, não logrará ocupar um lugarzinho ao pé do de Lucrécia, pura
ficção. Não quero mal às ficções, amo-as, acredito nelas, acho-as preferíveis às
realidades; nem por isso deixo de filosofar sobre o destino das cousas tangíveis em
comparação com as imaginárias. Grande sabedoria é inventar um pássaro sem
asas, descrevê-lo, fazê-lo ver a todos, e acabar acreditando que não há pássaros
com asas ... Mas não falemos mais em Martinha.
[140]
[19 agosto]
Tem havido grandes cercos e entradas da polícia em casas de jogo.
Sistematicamente, a autoridade procura dispersar os religionários da Fortuna, e
trancar os antros da perdição. Esta frase não é nova, mas o vício também é velho, e
não se põe remendo novo em pano velho, diz a Escritura. Já se jogava no tempo da
Escritura; lançaram-se dados sobre a túnica de Jesus Cristo. Na China, em que há
tudo desde muitos milhares de anos, é provável que o jogo se perca na noite dos
tempos. Maomé, que tinha algumas partes de grande homem, apesar de ser o
próprio cão tinhoso, consentiu o uso do xadrez aos seus árabes, e fez muito bem; é
um jogo que não admite quinielas, e, apesar de ter cavalos, não se dá ao
aperfeiçoamento da raça cavalar, como os vários derbys deste mundo.
Antes de ir adiante, deixem-me pôr aqui uma observação que fiz e me
pareceu digna de nota. Compilador do século vinte, quando folheares a coleção da
Gazeta de Notícias, do ano da graça de 1894, e deres com estas linhas, não vás
adiante sem saber qual foi a minha observação. Não é que lhe atribua nenhuma
mina de ouro, nem grande mérito; mas há de ser agradável aos meus manes saber
que um homem de 1944 dá alguma atenção a uma velha crônica de meio século. E
se levares a piedade ao ponto de escrever em algum livro ou revista: "Um escritor do
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século XIX achou um caso de cor local que não nos parece destituído de interesse...
", se fizeres isto, podes acrescentar como o soldado da canção francesa:
Du haut du ciel, — ta demeure dernière, —
Mon colonel, tu dois être content.
Sim, meu jovem capitão, ficarei contente, desde que te abençoou, compilador
do século vinte; mas vamos à minha observação.
A marcha ordinária da polícia é entrar na casa, apreender a roleta, as cartas,
os dados, multar o dono em quinhentos mil-réis e sair. Enquanto ela entra, os
fregueses escondem-se ou fogem pelos muros ou pelos telhados. O dono da casa
raramente foge; afeito à guerra, sabe que recebeu um balázio, e força é deixar
algum sangue. Quando, porém, acontece serem todos apanhados entre o 10 e o 22,
ou entre a sota e o ás, parece que há gestos de acatamento e consideração. É
quase provável que, terminada a ação policial, todos eles acompanhem os agentes
até o patamar, com reverências.
Ora bem; telegramas de Espanha dizem que a polícia deu em uma casa de
jogo de Madri, onde achou muitos fidalgos. Que pensais que fizeram os fregueses?
Que fugiram pelos fundos ou pelos telhados? Não, senhor, os fregueses correram
aos trabucos que haviam trazido consigo e travaram combate com a polícia. Não
dizem os telegramas se venceram ou foram vencidos, nem quantos morreram.
Também não quero sabê-lo. O que me importa em tudo isso é a cor local. Vêde bem
como estamos na Espanha. Um fidalgo, que terá talvez o direito de se cobrir diante
do rei, jamais consentirá que um alguazil lhe deite mão ao ombro, e primeiro a
decepará com uma bala.
Essa notícia, que parece nada, explica o fracasso da nossa ópera Nacional. O
caso da tavolagem de Madri daria nas mãos de um Mérimée uma novela como a
Carmen, de onde viria um maestro extrair uma ópera. Os espanhóis têm a sua
ópera, que é a zarzuela. Não lhes hão de faltar assuntos, pois que sabem fugir da
realidade chata das lutas incruentas, e os bons fidalgos defendem o rei de copas
com o mesmo brio e prontidão com que defenderiam o rei da Espanha. Como
fazermos a mesma cousa? Não só não há trabucos nas nossas casas de jogo, mas
as próprias bengalas são esquecidas nos momentos de crise. Ao primeiro apito,
pernas. Ao primeiro vulto, muros. Quando sucede faltarem as pernas e os muros,
sobram sorrisos e barretadas. Nunca deixarei de aprovar uma atitude ou um
movimento que exprima respeito à autoridade e reconhecimento implícito do erro;
mas com isto fazem-se catecismos, apólogos morais e partes de polícia. óperas é
que não.
Explicado assim o fracasso da nossa ópera Nacional, deixem-me confessar
que nem tudo são óperas neste mundo. Há palavras sem música. Daí as nossas
diligências, que, se perdem pelo lado estético, lucram pelo lado moral. Por isso
mesmo, convém apoiá-las. Toda repressão é pouca. Se, porém, basta o zelo da
autoridade e a energia dos seus agentes, não sei. Pode suceder que a ação da
polícia seja igual à das Danaides, e que o imenso tonel não chegue a depositar um
litro de água. Primeiro seria preciso calafetá-lo, a fim de que a água não se escoe da
Rua do Lavradio para a dos Inválidos. Onde está, porém, esse tanoeiro ciclópico?
Não induzam daqui que eu quero ver interrompido o serviço das Danaides,
nem concluam da. citação do telegrama de Madri que aprovo o uso do trabuco. Não,
Deus meu; tanto não quero uma cousa, nem aprovo outra, que aplaudo ambas as
contrárias. E perdoem-me se insisto neste ponto. Nem todos os leitores concluem
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logicamente. Muitos há que, se alguém acha o Rangel mais elegante que o Bastos,
exclamam convencidos:
— Ah! já sei, é amigo do Rangel!
E todo o tempo é pouco para replicar:
Não, homem de Deus, não sou amigo nem inimigo do Rangel; creio até que
ele me deve dez tostões. O que digo, é que, comparado com o Bastos, o Rangel é
mais elegante.
— Pobre Bastos! Ódio velho não cansa. Por que não confessa logo que o
detesta?
— Mas eu não detesto o Bastos; simpatizo até com ele, e, se bem me lembro,
devo-lhe um favor, não pequeno, aqui há anos, tanto mais digno de lembrança
quanto foi espontâneo ...
— Mas por que lhe chama lapuz?
— Que lapuz? Não disse tal. Disse que acho o Rangel mais elegante...
— Que o adora, em suma.
Não há sair daqui. O melhor, em tais casos é calar a boca, ou encerrar o
escrito, se escreve. Viva Deus! Creio que está finda a crônica.
[141]
[2 setembro]
Acabo de ler que os condutores de bonds tiram anualmente para si, das
passagens que recebem, mais de mil contos de réis. Só a Companhia do Jardim
Botânico perdeu por essa via, no ano passado, trezentos e sessenta contos.
Escrevo por extenso todas as quantias, não só por evitar enganos de impressão,
fáceis de dar com algarismos, mas ainda para não assustar logo à primeira vista, se
os números saírem certos. Pode acontecer também, que tais números, sendo
grandes, gerem incredulidade, e nada mais duro que escrever para incrédulos.
Parece que as companhias têm experimentado vários meios de fiscalizar a
cobrança, sem claro efeito. Atribui-se ao finado Miller, gerente que foi da Companhia
do Jardim Botânico, um dito mais gracioso que verdadeiro, assaz expressivo do
ceticismo que distinguia aquele amável alemão. Dizia ele, se é verdade, que, pondo
fiscais aos condutores, comiam condutores e fiscais, melhor era que só comessem
condutores. Há nisso parcialidade. Ou o espiritismo é nada, ou Miller foi condutor de
bond em alguma existência anterior, e daí essa proteção exclusiva a uma classe.
Não haveria bonds, mas havia homens. Miller terá sido condutor de homens, os
quais, juntos em nação, formam um vasto bond, ora atolado e parado, como a
China, ora tirado por eletricidade, como o Japão.
Mas eu não creio que Miller tenha dito semelhante cousa; há de ser invenção
do cocheiro. Ninguém acusa o cocheiro de conivência na subtração dos mil e tantos
coitos, sendo aliás certo que, no organismo político e parlamentar do bond, ele é o
presidente do conselho, o chefe do gabinete. O condutor é o rei constitucional, que
reina e não governa, os passageiros são os contribuintes. Que o condutor não
governa, vê-se a todo instante pela desatenção do cocheiro à campainha, que o
manda parar. "Advirto Vossa Majestade, diz o cocheiro com o gesto, que a
responsabilidade do governo é minha, e eu só obedeço à vontade do parlamento,
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cujas rédeas levo aqui seguras. "Segundo toque de campainha recomenda ao chefe
do gabinete que, nesse caso, peça às câmaras um voto de aprovação.
"Perfeitamente", responde o cocheiro, e requer o voto com duas fortes lambadas. O
parlamento, cioso das suas prerrogativas, empaca; é justamente a ocasião que o
passageiro ágil e sagaz aproveita para descer e entrar em casa.
Não é preciso demonstrar que as sociedades anônimas, como as políticas,
são outros tantos bond, e se Miller não foi condutor de algumas destas, é que o foi
de algumas daquelas. Mas deixemos suposições gratuitas. Ninguém jura ter ouvido
ao próprio Miller as palavras que à lenda lhe atribui. Que ficam elas valendo? Valem
o que valem outras tantas palavras históricas. Não percamos tempo com ficções.
Vamos antes a duas espécies de subtração, que devem ser contadas na
soma total — uma contra as companhias, outra contra os passageiros. A primeira é
rara, mas existe, como as anomalias do organismo. Tem-se visto algum passageiro
tirar modestamente do bolso o níquel da passagem, — ou não tirá-lo (há duas
escolas) — e ir olhando cheio de melancolia pelas casas que lhe ficam à direita ou à
esquerda, segundo a ponta do banco em que está. Os olhos derramam idéias
tristes. Se o condutor, distraído ou atrapalhado na cobrança, não convida o
passageiro a idéias chistosas, dá-se este por pago, e o níquel torna surdamente
para a algibeira de onde saiu, ou, se não saiu, lá fica.
A segunda espécie de subtração é também rara, e ainda mais prejudicial ao
passageiro que espere o troco da nota que este lhe deu. Às vezes nem é preciso
pedir, faz um gesto ou não faz nada: subentende-se que toda nota tem troco. O
passageiro prossegue na leitura ou na conversação interrompida, se não vai
simplesmente pensando na instabilidade das cousa desta vida. Acontece que chega
à casa ou à esquina da rua em que mora, e manda parar o bond. Igualmente
sensível ao aspecto melancólico das habitações humanas, o condutor toca
maquinalmente a campainha, e o homem desce, louvando ainda uma vez esta
condução tão barata, que lhe permite ir por um tostão do Largo de São Francisco ao
Campo de São Cristóvão.
Este segundo caso é de consciência. Com efeito, se o condutor não deu troco
ao passageiro, há de entregar a nota à companhia? Não; seria fazer com que
cobrasse dez vezes a mesma passagem. Há de trocar a nota para entregar só a
passagem e ficar com o resto? Seria legitimar uma divisão criminosa. Há de
anunciar a nota? Seria publicar a sua própria distração, e demais arriscar o
emprego, cousa que um pai de família não deve fazer. A única solução é guardar
tudo.
Mas ainda, sem estes dous elementos, parece que a perda anual é grande, e
algum remédio é necessário. A idéia de interessar os próprios passageiros, ligados
por um laço de caridade, pode ser fecunda, e, em todo caso, é elevada. O único
receio que tenho, é da pouca resistência nossa, por preguiça de ânimo ou outra
cousa. O interesse é mais constante. José Rodrigues, a quem consultei sobre esta
matéria, disse-me que isto de perder são os Ônus do ofício; também a companhia de
que ele tinha debêntures, perdeu-os todos. Mas lembrou-me um meio engenhoso e
útil: incumbir os acionistas de vigiarem por seus próprios olhos a cobrança das
passagens. Interessados em recolher todo o dinheiro, serão mais severos que
ninguém, mais pontuais, não ficará vintém nem conto de réis da caixa.
[142]
[9 setembro]
78
A morte de Mancinelli deu lugar a uma observação, naturalmente tão velha ou
pouco menos velha que o mundo, a saber, que o homem é um animal de sonhos e
mistérios. Não gosta das verdades simples. Assim, relativamente no motivo do
suicídio, ouvi muitas versões remotas e complicadas. A mais espantosa foi que
Mancinelli estava com ordem de prisão, por ter mandado lançar fogo ao Politeama, e
recorrera à morte, não por desespero, mas por temor.
Confessemos que é ir um pouco longe. Entretanto, façamos justiça aos
homens, a realidade era mais difícil de crer que a invenção e a fantasia. Um
empresário que se mata por não poder pagar aos credos, orça pela Fênix e pela
Sibila. Era natural não admitir que, em tal situação, um empresário prefira a bala ao
paquete. O paquete é a solução comum, mas também há casos de simples discurso
explicativo, palavras duras, uma redução, uma convenção, uma infração e o silêncio.
Não me lembra nenhum caso mortal.
O pobre e fino artista foi o primeiro, e por muitos e muitos anos será o único.
porque eu não creio que nenhum outro, nas mesmas condições, se meta tão cedo
em tal ofício, para o qual não basta o sentimento da arte. Não o conheci de perto,
nem de longe, mas parece que era profundamente sensível, tinha o orgulho alto, o
pundonor agudo e o sentimento da responsabilidade vivíssimo. Não podendo lutar,
preferiu a morte, que se lhe afigurou mais fácil que a vida e mais necessária
também.
Há justamente um mês, deu-se em Oxford um suicídio, que, a certo respeito é
o de Mancinelli. Foi o de John Mowat. Este erudito era bibliotecário da Universidade.
Nomeado membro do Congresso das Ciências que ali se reunia agora, teve
medo de não poder desempenhar cabalmente o mandato, pegou de uma corda e
enforcou-se. Sabia-se que era homem de grande impressibilidade. Vivendo feliz,
sossegado, entregue aos livros, temeu cá fora um fiasco. Compreendendo que a
gente inglesa também recusasse tal motivo, e preferisse crer, visto tratar-se de um
bibliotecário, que ele deitara fogo à biblioteca de Alexandria.
Realmente, matar-se um homem por suspeitar que pode ficar abaixo de um
cargo. é coisa que, ainda escrita, ninguém crê; parece uma página de Swift. Antes
de tudo, esse sentimento de inferioridade é raríssimo. Quando existe, fica tão fundo
na consciência, que só o olho perspicaz do observador pode senti-lo e palpá-lo cá
de fora. A aparência é contrária; o ar da pessoa, o tom, o aspecto, tudo persuade à
multidão que o cargo é que é pequeno. A verdade, porém, é que Mowat matou-se
por causa dessa modéstia doentia, quando o seu dever era ser sadio e forte, crer
que podia arrancar uma estrela do céu, e, obrigado a fazê-lo, tirá-la da algibeira.
Num e noutro caso, como nos demais, surge a questão de saber se o suicídio
é um ato de coragem ou de fraqueza. Questão velha. Tem sido muito discutida,
como a de sabe, qual é maior, se César ou Napoleão; mas esta é a mais recente e
indígena. Pode dizer-se que os dous grandes homens equilibram-se, nos votos, mas
a questão do suicídio é antes resolvida no sentido da fraqueza que no da coragem.
É um problema psicológico fácil de tratar entre o Largo do Machado e o da Carioca.
Se o bond for elétrico, a solução é achada em metade do caminho.
Segundo os cânones, o suicídio é um atentado ao Criador, e o nosso primeiro
e recente arcebispo aproveitou o caso Mancinelli para lembrá-lo aos párocos e a
todo o clero, e consequentemente que os sufrágios eclesiásticos são negados aos
que se matam. A circular de D. João Esberard é sóbria, enérgica e verdadeira;
recorda que a sociedade civil e a filosofia condenam o suicídio, e que a natureza o
considera com horror. No mesmo dia da expedição da circular (quinta-feira) um
homem que padecia de moléstia dolorosa ou incurável, talvez uma e outra cousa,
79
recorreu à morte como a melhor das tisanas. Suponho que não terá lido a palavra do
prelado; mas outros suicidas virão depois dela, pois que os cânones são mais
antigos, a filosofia também, e mais que todos a natureza.
Conta Plutarco que houve, durante algum tempo, em Mileto, uma cousa que
ele chama conjuração, mas que eu, mais moderno, direi epidemia, e era que as
moças do lugar entraram a matar-se umas após outras. A autoridade pública, para
acudir a tamanho perigo, decretou que os cadáveres das moças que dali em diante
se matassem, seriam arrastados pelas ruas, inteiramente nus. Cessaram os
suicídios. O pudor acabou com o que não puderam conselhos nem lágrimas. A
privação dos sufrágios eclesiásticos é assaz forte para os crentes, embora não seja
sempre decisiva: mas a incredulidade do século e a frouxidão dos próprios crentes
hão de tornar improfícua muita vez a intervenção do prelado.
Pela minha parte, estou com os cânones, com a filosofia, com a sociedade e
com a natureza, sem negar são dous belos versos aqueles com que o poeta Garção
fecha a ode que compôs ao suicídio:
Todos podem tirar a vida ao homem,
Ninguém lhe tira a morte.
Convenho que a morte seja propriedade inalienável do homem, mas há de ser
com a condição de a conservar inculta, de lhe não meter arado nem enxada.
Condição que não se pode crer segura, nem geralmente aceita. São matérias
complicadas, longas, e cada vez sinto menos papel debaixo da pena. Enchamos o
que falta com uma revelação e uma observação.
A revelação é um grito d'alma que ouvi, quando a notícia do suicídio de
Mancinelli chegou a um lugar onde estávamos eu e um amigo. "Ora pílulas! bradou
este meu amigo; é outro empresário que me leva a assinatura." Consolei-o dizendo
que as assinaturas do Teatro Lírico, perdidas ou interrompidas neste mundo, são
pagas em tresdobro no céu. A esperança de ouvir eternamente os Huguenotes e o
Lohengrin alegrou a alma diletante e cristã do meu amigo. Disse-lhe que os anjos,
como a eternidade é longa, estudam as óperas todas, para indenização das
algibeiras e dos ouvidos defraudados pelo suicídio ou pelo paquete; acrescendo que
os maestros no céu serão os regentes da orquestra das suas óperas, menos os
judeus, que poderão mandar pessoa de confiança.
Quanto ao reparo, é um pouco velho, mas serve. Verificou-se ainda Lima vez
a supremacia da música em nossa alma. Certamente, as circunstâncias da morte de
Mancinelli, as qualidades simpáticas do homem, os dons do artista, a honradez do
caráter, contribuíram muito para o terrível efeito da notícia. Creio, porém, que uma
parte do efeito originou-se na condição de empresário lírico. A verdade é que nós
amamos a música sobre todas as cousas e as prima-donas como a nós mesmos.
[143]
[16 setembro]
Que boas que são as semanas pobres. As semanas ricas são ruidosas e
enfeitadas. aborrecíveis, em suma. Uma semana pobre chega à porta do gabinete,
humilde é medrosa:
— Meu caro senhor, eu pouco tenho que lhe dar. Trago as algibeiras vazias;
quando muito, tenho aqui esta cabeça quebrada, a cabeça do Matias ...
— Mas que quero eu mais, minha amiga? Uma cabeça é uma mundo ...
Matias, que Matias?
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— Matias, o leiloeiro que passava ontem pela Rua de São José, escorregou e
caiu... Foi uma casca de banana.
— Mas há cascas de banana na Rua de São José?
— Onde é que não há cascas de bananas? Nem no céu, onde não se come
outra fruta, com toda certeza, que é fruta celestial. Mate-me Deus com bananas,
Gosto delas cruas, com queijo de Minas, assada com açúcar, açúcar e canela ...
Dizem que é mui nutritiva.
Confirmo este parecer, e aí vamos, eu a semana pobre, papel abaixo. falando
de mil cousas que se ligam à banana, desde a botânica até a política. Tudo sai da
cabeça do Matias. Não há tempo nem espaço, há só eternidade e infinito, que nos
levam consigo; vamos pegando aqui de uma flor, ali de uma pedra, uma estrela, um
raio, os cabelos de Medusa, as pontas do Diabo, micróbios e beijos, todos os beijos
que se têm consumido, até que damos por nós no fim do papel. São assim as
semanas pobres.
Mas as semanas ricas! Uma semana como esta que ontem acabou farta de
sucessos, de aventuras, de palavras, uma semana em que até o câmbio começou a
esticar o pescoço pode ser boa para quem gostar de bulha e de acontecimentos.
Para mim que amo o sossego e a paz é a pior de todas as visitas. As semanas ricas
exigem várias cerimônias, algum serviço, muitas cortesias. Demais, são trapalhonas,
despejam as algibeiras sem ordem e a gente não sabe por onde lhes pegue, tantas
e tais são as cousas que trazem consigo. Não há tempo de fazer estilo com elas,
nem abrir a porta à imaginação. Todo ele é pouco para acudir aos fatos.
— Como é que V. Ex.a pôde vir tão carregado assim, não me dirá?
— Não é tudo.
— Ainda há mais fitos?
— Tenho-os ali fora, na carruagem; trouxe comigo os de maior melindre, e
vou mandar trazer os outros pelo lacaio ... Pedro!
— Não se incomode V. Ex.a; eu mando o José Rodrigues. José Rodrigues!
Vá ali à carruagem desta senhora e traga os pacotes que lá achar. Vêm todos os
pacotes?
— Todos, menos o edifício da Fábrica da Chitas, que afinal recebeu o último
piparote do tempo e caiu. Pelo resultado, podemos dizer que foi o dedo da
Providência que o deitou abaixo; não matou ninguém. Imagine se o bond que descia
passasse no momento de cair o monstro, e que o homem que queria ir ver na casa
arruinada a cadela que dava leite aos filhos houvesse chegado ao lugar onde
estavam os cães. Que desastre, santo Deus! Que terrível desastre
— Terrível. minha senhora? Não nego que fosse feio, mas o mal seria muito
menor que o bem. Perdão; não gesticule antes de ouvir até o fim . . Repito que o
bem compensaria o mal. Imagine que morria gente, que havia pernas esmigalhadas,
ventres estripados, crânios arrebentados, lágrimas, gritos, viúvas, órfãos, angústias,
desesperos ... Era triste, mas que comoção pública! que assunto fértil para três dias!
Recorde-se da Mortona.
— Que Mortona?
— Creio que houve um desastre deste nome; não me lembro bem, mas foi
negócio em que se falou três dias. Nós precisamos de comoções públicas, são os
banhos elétricos da cidade. Como duram pouco, devem ser fortes. Olhe o caso
Mancinelli ...
— A minha mana mais velha é que o trouxe consigo. Foi um suicídio, creio.
81
— Foi, um horrível suicídio que abalou a cidade em seus fundamentos. No dia
da morte, cerca de mil pessoas foram ver o cadáver do triste empresário. Quando se
deu o primeiro espetáculo a favor dos artistas, acudiram ao teatro dezessete
pessoas, não contando os porteiros, que entram por ofício. Não há que admirar
nessa diferença de algarismos; as comoções fortes são naturalmente curtas. Fortes
e longas, seriam a mais horrível das nevroses. Foi uma pena não ter passado um
bond cheio de gente, na ocasião em que ruiu a Fábrica das Chitas; cheio de gente,
isto é, de crianças sem mães, maridos sem esposas, viúvas costureiras, sem os
filhos, e muitos passageiros, muitos pingentes, como dizem dos que vão pendurados
nos estribos, incomodando os outros. Creia V. Ex.a; uma vez que os homens já não
compõem tragédias, é preciso que Deus as faça, para que este teatro do mundo
varie de espetáculo. Tudo fandango, minha senhora! Seria demais.
— Como o senhor é perverso!
— Eu? Mas ...
— Vamos aos outros sucessos destes sete dias; trago muitos.
— Perdão; quero primeiro lavar-me da pecha que me pôs. Eu perverso?
— Danado.
— Eu danado? Mas em que é que sou danado e perverso? Não lhe disse,
note bem, que eu faria ruir o edifício da Fábrica das Chitas, quando passasse o
bond, mas que era bom que ele ruísse quando o bond passasse. Há um abismo ...
Pois sim; vamos ao mais. Aqui estão dous fatos importantes.... um grande
abismo. Nem falo só pelas outros. mas também por mim. Não tenho dúvida em
confessar que o espetáculo de uma perna alanhada, quebrada, ensangüentada, é
muito mais interessante que o da simples calça que a veste. As calças, esses
simples e banais canudos de pano, não dão comoção. As próprias calças femininas,
quando comovem não é por serem calças ...
— Vamos aos sucessos.
— ...mas por serem calças calçadas. É outro abismo. Repare que hoje só vejo
abismos. Há uma chuva de abismos; a imagem não é boa, mas que há bom neste
século, minha senhora, excluindo a ocupação do Egito? Dizem que se descobriu um
elemento novo. Talvez seja falso, mas pode ser que não; tudo é relativo. O relativo é
inimigo do absoluto: o absoluto, quando não é Deus, é (com licença) o tenor que
canta as glórias divinas. Começo a variar, minha senhora; não me sinto bem ...
— Então acabemos depressa; é tarde, preciso retirar-me.
— E ... se é que não estou pior. O pior é inimigo do bom, dizem; mas os
dicionários negam absolutamente essa proposição, e eu vou com eles ...
— Oh! o senhor faz-me nervosa!
— ...não só por serem dicionários, mas por serem livros grossos. Oh! V. Ex.a
não sabe o que são esses livros altos e de ponderação. Os dicionários, se não são
eternos, deviam sê-lo. Uma só página, um só dicionário, eterno; era o ideal da
sistematização. A sistematização é, para falar verdade ...
— Não posso mais, adeus!
— José Rodrigues, fecha a porta; se esta senhora voltar, dize-lhe que saí. Ah!
[144]
[23 setembro]
82
Os depoimentos desta semana complicaram de tal maneira o caso da bigamia
Louzada, que é impossível destrinchá-lo [sic], sem o auxílio de uma grande doutrina.
Essa doutrina, eu, que algumas vezes me ri dela, venho proclamá-la bem alto, como
a última e verdadeira.
Com efeito, vimos que a primeira mulher do capitão é negada por ele, que
afirma ser apenas sua cunhada. Outros, porém, dizem que a primeira mulher é esta
mesma que aí está, e quem o diz é o vigário que os casou em 1870, e o padrinho,
que assistiu à cerimônia. Mas eis aí surge a certidão de óbito e o número da
sepultura da primeira esposa, que, de outra parte, são negadas, porque a pessoa
morta não é a mesma e tinha nome diverso. Há assim uma pessoa enterrada e viva,
mulher, cunhada e estranha, um enigma para cinco polícias juntas, quanto mais
uma.
Vinde, porém, ao espiritismo, e vereis tudo claro como água. Eu não cria no
espiritismo até junho último, quando li na União Espírita que, há anos, um distinto
jurisconsulto nosso, antigo deputado por Mato Grosso, consentiu em assistir a uma
experiência. Foi invocado o espírito da sogra do deputado e respondeu o Marquês
de Abaeté: "Meu amigo; o espiritismo é uma verdade. Abaeté". Caíram-me as
cataratas dos olhos. Certamente o caso não era novo; mais de uma resposta destas
aparecem, que eu sempre atribuí à simulação. A circunstância, porém, da assinatura
é que me clareou a alma, não só porque o marquês era homem verdadeiro, mas
ainda porque o espírito assinara, não o seu nome de batismo mas o título mobiliário.
Se houvesse charlatanismo, teria saído o nome de Antônio, para fazer crer que os
espíritos desencarnados deixam neste mundo todas as distinções. A assinatura do
título prova a autenticidade da resposta e a verdade da doutrina.
Sendo a doutrina verdadeira, está explicada a confusão da esposa, da
cunhada e da senhora estranha, que se dá no processo do capitão, porquanto os
doutores da escola ensinam que os espíritos renascem muita vez mortos, isto é, os
filhos encarnam-se nos pais, nas mães e não é raro um menino voltar a este mundo
filho de um primo. Daí essa complicação de pessoas, que a polícia não deslindará
nunca, sem o auxílio desta grande doutrina moderna e eterna.
Converta-se a polícia. Não há desdouro em abraçar a verdade, ainda que
outros a contestem; todas as grandes verdades acham grandes incrédulos. A
resposta do marquês prova que os homens, de envolta com a carne, que é matéria,
não deixam o título, que é uma forma particular de espírito. Quando o Japão
começou a ter espírito, não adotou só o regime parlamentar, nacionalizou também
os condes, e lá tem, entre outros, o seu Conde Ito, que dizem ser estadista
eminente. A China, invejosa e preguiçosa, ergueu a custo as pálpebras e murmurou
como no nosso antigo Alcazar da Rua Uruguaiana: Vous avez de 1'esprit?Nous
aussi. E criou um marquês, o Marquês Tcheng, mas não foi adiante.
Quanto a mim, não só creio no espiritismo, mas desenvolvo a doutrina.
Desconfiai de doutrinas que nascem à maneira de Minerva, completas e armadas.
Confiai nas que crescem com o tempo. Sim, vou além dos meus doutores; creio
firmemente que um espírito de homem pode reencarnar-se em um animal. Em MogiMirim,
Estado de São Paulo, acaba de enlouquecer um burro. Assim o conta a
Ordem por estas palavras: "Segunda-feira passada, um burro do Dr. Santo di
Prospero enlouqueceu repentinamente". E refere os destroços que o animal fez até
achar a morte. Ora, esta loucura do burro mostra claramente que o infeliz perdeu a
razão. Que espírito estaria encarnado nesse pobre animal, amigo do homem, seu
companheiro, e muita vez seu substituto? Talvez um gênio. A prova é que o perdeu.
Com quatro pés, não pode entrar onde nós entramos com dous. Quanta vez teria ele
83
dito consigo: — Não fosse a minha ilusão em reencarnar-me nesta besta, e estaria
agora entre pessoas honradas e ilustradas, falando em vez de zurrar, colhendo
palmas, em vez de pancadaria. É bem feito; a minha idéia de incorporar o burro na
sociedade humana, se era generosa, não era prática, porque o homem nunca
perderá o preconceito dos seus dous pés.
Outro ponto que me parece deve ser examinado e adicionado à nossa grande
doutrina, é a volta dos espíritos, encarnados (se assim posso dizer) em simples
obras humanas, veículo ou outro objeto. Penso, entretanto, que a gradação
necessária a todas as cousas exige para esta nova encarnação que o espírito haja
primeiro tornado em algum bruto. Assim é que um espírito, desde que tenha sido
reencarnado na tartaruga, logo que se desencarne, pode voltar novamente
encarnado no bond elétrico. Não dou isto como dogma, mas é doutrina assaz
provável. Já não digo o mesmo da idéia (se a há) de que um serviço pode ser
reencarnado em outro. Serviço é propriamente o efeito da atividade e do esforço
humano em uma dada aplicação. Tirai-lhe essa condição, e não há serviço. É um
resultado, nada mais. Pode não prestar, ser descurado, não valer dous caracóis, ou
ao contrário pode não ser excelente e perfeito, mas é sempre um resultado. Quem
disser, por exemplo, que o serviço da antiga Companhia de Bonds do Jardim
Botânico está reencarnado no novo, provará com isto que de certo tempo a esta
parte só tem andado de carro, mas andar de carro não é condição para ser espírita.
Ao contrário, a nossa doutrina prefere os humildes aos orgulhosos. Quer a fé e a
ciência, não cocheiros embonecados, nem cavalos briosos.
Voltando à bigamia do capitão, digo novamente à polícia que estude o
espiritismo e achará pé nessa confusão de senhoras. Sem ele, nada há claro nem
sólido. tudo é precário, escuro e anárquico. Se vos disserem que é vezo de todas as
doutrinas deste mundo darem-se por salvadoras e definitivas, acreditai e afirmai que
sim, excetuando sempre a nossa, que é a única definitiva e verdadeira. Amen.
[145 ]
[4 novembro]
É verdade trivial que, quando o rumor é grande, perdem-se naturalmente as
vozes pequenas. Foi o que se deu esta semana.
A semana foi toda de combatividade, para falar como os frenologistas. Tudo
esteve na tela da discussão, desde a luz esteárica até a demora dos processos,
desde as carnes verdes até a liberdade de cabotagem. De algumas questões, como
a da luz esteárica, sei apenas que, se a lesse, não estaria vivo. A das carnes verdes
é propriamente de nós todos; mas a disposição em que me acho, de passar à
vegetariano, desinteressa-me da solução, e tanto faz que haja monopólio, como
liberdade. A liberdade é um mistério, escreveu Montaigne, e eu acrescento que o
monopólio é outro mistério, e, se tudo são mistérios neste mundo, como no outro,
fiquem-se com os seus mistérios, que eu me vou aos meus espinafres.
De resto, nos negócios que não interessam diretamente, não é meu costume
perder o tempo que posso empregar em cousas de obrigação. É assim que aprovo e
aprovarei sempre uma passagem que li na ata da reunião de comerciante, que se
fez na Intendência Municipal, para tratar da crise de transportes. Orando, o Sr.
Antônio Wernek observou que havia pouca gente na sala. Respondeu-lhe um dos
presentes, em aparte: "Eu, se não fosse o pedido de um amigo, não estaria aqui".
Digo que aprovo, mas com restrições, porque não há amigos que me arranquem de
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casa, para ir cuidar dos seus negócios. Os amigos têm outros fins, se não amigos,
se não são mandados pelo diabo para tentar um homem que está quieto.
Não obstante a pequena concorrência, parece que o rumor do debate foi
grande, pouco menor que o da questão de cabotagem na Câmara dos Deputados.
Mas, para mim, em matéria de navegação, tudo é navegar, tudo é encomendar a
alma a Deus e ao piloto. A melhor navegação é ainda a daquelas conchas cor de
neve, com uma ondina dentro, olhos cor do céu, tranças de sol, toda um verso e
toda no aconchego do gabinete. Mormente em dias de chuva, como os desta
semana, é navegação excelente, e aqui a tive, em primeiro lugar com o nosso
Coelho Neto, que aliás não falou em verso, nem trouxe daquelas figuras do Norte ou
do Levante, ainda a musa costuma levá-lo, vestido, ora de névoas, ora de sol. 2.Não
foi o Coelho Neto das Baladilhas, mas o dos Bilhetes Postais (dous livros em um
ano), por antonomásia Anselmo Ribas. Páginas de humour e de fantasia, em que a
imaginação e o sentimento se casam ainda uma vez, ante esse pretor de sua
eleição. Derramados na imprensa, pareciam esquecidos; coligidos no livro, vê-se
que deviam ser lembrados e relembrados. A segunda concha ...
A segunda concha trouxe deveras uma ondina, uma senhora, e veio cheia de
versos, os Versos, de Júlia Cortines. Esta poetisa de temperamento e de verdade
disse-me cousas pensadas e sentidas, em uma linguagem inteiramente pessoal e
forte. Que poetisa é esta? Lúcio de Mendonça é que apresenta o livro em um
prefácio necessário, não só para dar-nos mais uma página vibrante de simpatia, mas
ainda para convidar essa multidão de distraídos a deter-se um pouco a ler. Lede o
livro; há nele uma vocação e uma alma, e não é sem razão que Júlia Cortines traduz
à p. 94, um canto de Leopardi. A alma desta moça tem uma corda dorida de
Leopardi. A dor é velha; o talento é que a faz nova, e aqui a achareis novíssima.
Júlia Cortines vem sentar-se ao pé de Zalina Rolim, outra poetisa de verdade, que
sabe rimar os seus sentimentos com arte fina, delicada e pura. O Coração, livro
desta outra moça, terno, a espaços triste, mas é menos amargo que o daquela; não
tem os mesmos desesperos ...
Eia! foge, foge, poesia amiga, basta de recordar as horas de ontem e de
anteontem. A culpa foi da Câmara dos Deputados, com a sua navegação de
cabotagem, que me fez falar da tua concha eterna, para a qual tudo são mares
largos e não há leis nem Constituições que vinguem. Anda, vai, que o cisne te leve
água fora com as tuas hóspedes novas e nossas.
Voltemos ao que eu dizia do rumor grande, que faz morrer as vozes
pequenas. Não ouviste decerto uma dessas vozes discretas, mas eloqüentes; não
leste a punição de três jóqueis. Um, por nome José Nogueira, não disputou a corrida
com ânimo de ganhar; foi suspenso por três meses. Outro, H. Cousins, "atrapalhou a
carreira ao cavalo Sílvio"; teve a multa de quinhentos mil-réis. Outro, finalmente.
Horácio Perazzo, foi suspenso por seis meses, porque, além de não disputar a
corrida com ânimo de ganhar, ofendeu com a espora uma égua.
Estes castigos encheram-me de espanto, não que os ache duros, nem
injustos; creio que sejam merecidos, visto o delito, que é grave. Os capítulos da
acusação são tais, que nenhum espírito reto achará defesa para eles. O meu
assombro vem de que eu considerava o jóquei parte integrante do cavalo. Cuidei
que, lançados na corrida, formavam uma só pessoa, moral e física, um lutador único.
Não supunha que as duas vontades se dividissem, a ponto de uma correr com
ânimo de ganhar a palma, e outra de a perder; menos ainda que o complemento
humano de um cavalo embaraçava a marcha de outro cavalo, e muito menos que se
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lembrasse de ofender uma égua com a espora. Se os animais fossem cartas, em
vez de cavalos, dir-se-ia que os homens furtavam no jogo.
Quinhentos mil-réis de multa! Pelas asas do Pégaso! devem ser ricos, esses
funcionários. Três e seis meses de suspensão! Como sustentarão agora as famílias,
se as têm, ou a si mesmos, que também comem? Não irão empregar-se na
Intendência Municipal, onde a demora dos ordenados faz presumir que os jóqueis do
expediente andam suspensos por ações semelhantes. Não hão de ir puxar carroça.
Vocação teatral não creio que possuam. Se são ricos, bem; mas, então, por que é
que não fundaram, há dous ou três anos, uma sociedade bancária, ou de outra
espécie, onde podiam agora atrapalhar a marcha dos outros cavalos, esporear as
éguas alheias, e, em caso de necessidade, correr sem ânimo de ganhar a partida?
Este último ponto não seria comum, antes raríssimo; mas basta que fosse possível.
Nem é outra a regra cristã, que manda perder a terra para ganhar o céu. Sem contar
que não haveria suspensões nem multas.
[146]
[11 novembro]
A antiguidade cerca-me por todos os lados. E não me dou mal com isso. Há
nela um aroma que, ainda aplicado a cousas modernas, como que lhes toca a
natureza. Os bandidos da atual Grécia, por exemplo, têm melhor sabor que o
clavinoteiros da Bahia. Quando a gente lê que alguns sujeitos foram estripados na
Tessália ou Maratona, não sabe se lê um jornal ou Plutarco. Não sucede o mesmo
com a comarca de Ilhéus. Os gatunos de Atenas levam o dinheiro e o relógio, mas
em nome de Homero. Verdadeiramente não são furtos, são reminiscências
clássicas.
Quinta-feira um telegrama de Londres noticiou que acabava de ser publicada
urna versão inglesa da Eneida, por Gladstone. Aqui há antigo e velho. Não é o caso
do Sr. Zama, que, para escrever de capitães, foi buscá-los à antiguidade, e aqui nolos
deu há duas semanas; o Sr. Zama é relativamente moço. Gladstone é velho e
teima em não envelhecer. É octogenário, podia contentar-se com a doce carreira de
macróbio e só vir à imprensa quando fosse para o cemitério. Não quer; nem ele,
nem Verdi. Um faz óperas, outro saiu do parlamento com uma catarata, operou a
catarata e publicou a Eneida em inglês, para mostrar aos ingleses como Virgílio
escreveria em inglês, se fosse inglês. E não será inglês Virgílio?
Como se não bastasse essa revivescência antiga, e mais o livro do Sr. Zama,
parece-me Carlos Dias com os Cenários, um banho enorme da antiguidade. Já é
bom que um livro responda ao título, e é o caso deste, em que os cenários são
cenários, sem ponta de drama, ou raramente. Que levou este moço de vinte anos ao
gosto da antiguidade? Diz ele, na página última, que foi uma mulher; eu, antes de ler
a última página, cuidei que era simples efeito de leitura, com extraordinária
tendência natural. Leconte de Lisle e Flaubert lhe terão dado a ocasião de ir às
grandezas mortas, e a Profissão de Fé, no desdém dos modernos, faz lembrar o
soneto do poeta romântico.
Mas não se trata aqui da antiguidade simples, heróica ou trágica, tal como a
achamos nas páginas de Homero ou Sófocles. A antiguidade que este moço de
talento prefere, é a complicada, requintada ou decadente, os grandes quadros de
luxo e de luxúria, o enorme, o assombroso, o babilônico. Há muitas mulheres neste
livro, e de toda casta, e de vária forma. Pede-lhe vigor, pede-lhe calor e colorido,
achá-los-ás. Não lhe peças — ao seu Nero, por exemplo — a filosofia em que
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Hamerling envolve a vida e a morte do imperador. Este grande poeta deu à farta
daqueles quadros lascivos ou terríveis, em que a sua imaginação se compraz; mas,
corre por todo o poema um fluido interior, a ironia final do César sai de envolta com o
sentimento da realidade última: "O desejo da morte acabou a minha insaciável sede
da vida".
Ao fechar o livro dos Cenários, disse comigo: "Bem, a antiguidade acabou". —
"Não acabou, bradou um jornal; aqui está uma nova descoberta, uma coleção
recente de papiros gregos. Já estão discriminados cinco mil". — "Cinco mil!" pulei
eu. E o jornal, com bonomia: "Cinco mil, por ora; dizem cousas interessantes da vida
comum dos gregos, há entre eles uma paródia da Ilíada, uma novela, explicações de
um discurso de Demóstenes ... Pertence tudo ao museu de Berlim".
— Basta, é muita antiguidade; venhamos aos modernos.
— Perdão, acudiu outra folha, a França também descobriu agora alguma
cousa para competir com a rival germânica; achou em Delos duas estátuas de
Apolo. Mais Apolos. Puro mármore. Achou também paredes de casas antigas, cuja
pintura parece de ontem. Os assuntos são mitológicos ou domésticos, e servem ...
— Basta!
— Não basta; Babilônia também é gente, insinua uma gazeta; Babilônia, em
que tanta cousa se tem descoberto, revelou agora uma vasta sala atualhada de
retábulos inscritos ... Cousas preciosas! já estão com a Inglaterra, a França, a
Alemanha e os Estados Unidos da América. Sim; não é à toa que estes americanos
são ingleses de origem. Têm o gosto da antiguidade; e, como inventam telefone e
outros milagres, podem pagar caro essas relíquias. Há ainda ...
Sacudi fora os jornais e cheguei à janela. A antiguidade é boa, mas é preciso
descansar um pouco e respirar ares modernos. Reconheci então que tudo hoje me
anda impregnado do antigo e, que, por mais que busque o vivo e o moderno, o
antigo é que me cai nas mãos. Quando não é o antigo, é o velho, Gladstone substitui
Virgílio. A comissão uruguaia que aí está, trazendo medalhas comemorativas da
campanha do Paraguai, não sendo propriamente antiga, fala de cousas velhas aos
moços. Campanha do Paraguai! Mas então, houve alguma campanha do Paraguai?
Onde fica o Paraguai? Os que já forem entrados na história e na geografia, poderão
descrever essa guerra, quase tão bem como a de Jugurta. Faltar-lhes-á, porém, a
sensação do tempo.
Oh! a sensação do tempo! A vista dos soldados que entravam e saíam de
semana em semana, de mês em mês, a ânsia das notícias, a leitura dos feitos
heróicos, trazidos de repente por um paquete ou um transporte de guerra... Não
tínhamos ainda este cabo telegráfico, instrumento destinado a amesquinhar tudo, a
dividir as novidades em talhadas finas, poucas e breves. Naquele tempo as batalhas
vinham por inteiro, com as bandeiras tomadas, os mortos e feridos, número de
prisioneiros, nomes dos heróis do dia, as próprias partes oficiais. Uma vida intensa
de cinco anos. Já lá vai um quarto de século. Os que ainda mamavam quando
Osório ganhava a grande batalha, podem aplaudi-lo amanhã revivido no bronze,
mas não terão o sentimento exato daqueles dias ...
[147]
[18 setembro]
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Uma semana que inaugura na segunda-feira uma estátua e na quinta um
governo, que é qualquer dessas outras semanas que se despacham brincando. Isto
em princípio; agora, se atenderdes à solenidade especial dos dous atos, à
significação de cada um deles, à multidão de gente que concorreu a ambos,
chegareis à conclusão de que tais sucessos, não cabem numa estreita crônica. Um
mestre de prosa, autor de narrativas lindas, curtas e duradouras, confessou um dia
que o que mais apreciava na história, eram as anedotas. Não discuto a confissão;
digo só que, aplicada a este ofício de cronista, é mais que verdadeira. Não é para
aqui que se fizeram as generalizações, nem os grandes fatos públicos. Esta é, no
banquete dos acontecimentos, a mesa dos meninos.
Já a imprensa, por seus editoriais, narrou e comentou largamente os dois
acontecimentos. Osório foi revivido, depois de o ser no bronze, e Bernardelli
glorificado pela grandeza e perfeição com que perpetuou a figura do herói. Quando à
posse do Sr. presidente da República, as manifestações de entusiasmo do povo, e
as esperanças dessa primeira transmissão do poder, por ordem natural e pacífica,
foram registradas na imprensa diária, à espera que o sejam devidamente no livro.
Nem foram esquecidos os serviços reais daquele que ora deixou o poder, para
repousar das fadigas de dous longos anos de luta e de trabalho.
Não nego que um pouco de filosofia possa ter entrada nesta coluna, contanto
que seja leve e ridente. As sensações também podem ser contadas, se não
cansarem muito pela extensão ou pela matéria; para não ir mais longe, o que se deu
comigo, por ocasião da posse, no Senado. Quinta-feira, quando ali cheguei, ia achei
mais convidados que congressistas, e mais pulmões que ar respirável. Na entrada
da sala das sessões, fronteira à mesa da presidência, muitas senhoras iam
invadindo pouco a pouco à mesa da presidência, muitas senhoras iam invadindo
pouco a pouco o espaço até conquistá-lo de todo. Era novo; mais novo ainda a
entrada de uma senhora, que foi sentar-se na cadeira do Barão de S. Lourenço. Ao
menos, o lugar era o mesmo; a cadeira pode ser que fosse outra. Daí a pouco,
alguns deputados e senadores ofereciam às senhoras as suas poltronas, e todos
aqueles vestidos claros vieram alternar com as casacas pretas.
Quando isto se deu, tive uma visão do passado, uma daquelas visões
chamadas imperiais (duas por ano), em que o regimento nunca perdia os seus
direitos. Tudo era medido, regrado e solitário. Faltava agora tudo, até a figura do
porteiro, que nesses dias solenes calçava as meias pretas e os sapatos de fivela,
enfiava os calções, e punha aos ombros a capa. Os senadores, como tinham farda
especial, vinham todos com ela, exceto algum padre, que trazia a farda da igreja. O
Barão de S. Lourenço se ali ressuscitasse, compreenderia, ao aspecto da sala, que
as instituições eram outras, tão outras como provavelmente a sua cadeira. Aquela
gente numerosa, rumorosa e mesclada esperava alguém, que não era o imperador.
Certo, eu amo a regra e dou pasto à ordem. Mas não é só na poesia que souvent un
beau désordre est un effet de l'art. Nos atos públicos também; aquela mistura de
damas e cavalheiros de legisladores e convidados, não das instituições, mas do
momento, exprimia um "estado da alma" popular. Não seria propriamente um efeito
da arte, concordo, e sim da natureza; mas que é a natureza senão uma arte
anterior?
Gambetta achava que a República Francesa "não tinha mulheres". A nossa,
ao que vi outro dia, tem boa cópia delas. Elegantes, cumpre, dizê-lo, e tão cheias de
ardor, que foram as primeiras ou das primeiras pessoas que deram palmas, quando
entrou o presidente da República. Vede a nossa felicidade: sentadas nas próprias
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cadeiras do legislador, nenhuma delas pensava ocupar, nem pensa ainda em ocupá-
las à força de votos.
Não as teremos tão cedo em clubes, pedindo direitos políticos. São ainda
caseiras como as antigas romanas, e, se nem todas fiam lã, muitas as vestem, e
vestem bem, sem pensar em construir ou destruir ministérios.
Nós é que fazemos ministérios, e, se já os não fazemos nas Câmaras, há
sempre a imprensa, por onde se podem dar indicações ao chefe de Estado. O velho
costume de recomendar nomes, por meio de listas publicadas a pedido nos jornais,
ressuscitou agora, de onde se deve concluir que não havia morrido. Vimos listas
impressas, desde muito antes da posse, a maior parte com algum nome
absolutamente desconhecido. Esta particularidade deu-me que pensar. Por que
esses colaboradores anônimos do Poder Executivo? E por que, entre nomes
sabidos, um que se não sabe a quem pertence? Resolvi a primeira parte da questão,
depois de algum esforço. A segunda foi mais difícil, mas não impossível. Não há
impossíveis.
O que me trouxe a chave do enigma, foi a própria eleição presidencial. As
umas deram cerca de trezentos mil votos ao Sr. Dr. Prudente de Morais, muitas
centenas a alguns nomes de significação republicana ou monárquica, algumas
dezenas a outros, seguindo-se uma multidão de nomes sabidos ou pouco sabidos,
que apenas puderam contar um voto. Quando se apurou a eleição, parei diante do
problema. Que queria dizer essa multidão de cidadãos com um voto cada um? A
razão e a memória explicaram-me o caso. A memória repetiu-me a palavra que ouvi,
há ano, a alguém, eleitor e organizador de uma lista de candidatos à deputação.
Vendo-lhe a lista, composta de nomes conhecidos, exceto um, perguntei quem era
este.
— Não é candidato, disse-me ele, não terá mais de vinte a vinte e cinco votos,
mas é um companheiro aqui do bairro; queremos fazer-lhe esta manifestação de
amigos.
Concluí o que o leitor já percebeu, isto é, que a amizade é engenhosa, e a
gratidão infinita, podendo ir do pudding ao voto. O voto, pela sua natureza política, é
ainda mais nobre que o pudding, e deve ser mais saboroso, pelo fato de obrigar à
impressão do nome votado. Guarda-se a ata eleitoral, que não terá nunca outono.
Toda glória é primavera. A estátua de Osório vinha naturalmente depois desta
máxima, mas o pulo é tão grande, e o papel vai acabando com tal presteza, que o
melhor é não tornar ao assunto. Fique a estátua com os seus dous colaboradores, o
escultor e o soldado; eu contento-me em contemplá-la e passar, e a lembrar-me das
gerações futuras que não hão de contemplar como eu.
[148]
[25 novembro]
Vão acabando as festas uruguaias. Daqui a pouco, amanhã, não haverá mais
que lembranças das luminárias, músicas, flores, danças, corridas, passeios, e tantas
outras cousas que alegraram por alguns dias a cidade. Hoje é a regata de Botafogo,
ontem foi o baile do Cassino, anteontem foi a festa do Corcovado... Não escrevo picnic,
por ter a respeito deste vocábulo duas dúvidas, uma maior outra menor, como
diziam os antigos pregoeiros de praças judiciais
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Aqui está a maior. Sabe-se que esta palavra veio-nos dos franceses que
escrevem pique-nique. Como é que nós, que temos o gosto de adoçar a pronúncia e
muitas vezes alongar a palavra, adotamos esta forma ríspida e breve: pic-nic! Eis aí
um mistério, tanto mais profundo quanto que eu, quando era rapaz (anteontem,
pouco mais ou menos), lia e escrevia pique-nique, à francesa. Que a forma pic-nic
nos viesse de Portugal nos livros e correspondências dos últimos anos sendo a
forma que mais se ajusta à pronúncia da nossa antiga metrópole, é o que primeiro
ocorre aos inadvertidos. Eu, sem negar que assim escrevam os últimos livros e
correspondências daquela origem lembrei que Caldas Aulete adota pique-nique;
resposta que não presta muito para o caso, mas não tenho outra à mão.
Não me digas, leitor esperto, que a palavra é de origem inglesa mas que os
ingleses escrevem pick-nick. Sabes muito bem que ela no veio de França, onde lhe
tiraram as calças londrinas, para vesti-la à moda de Paris, neste caso particular é a
nossa própria moda. Vede frac dos franceses. Usamos hoje esta forma, que é a
original, nós que tínhamos adotado anteontem (era eu rapaz) a forma adoçada de
fraque.
A outra dúvida, a menor, quase não chega a ser dúvida, se refletirmos que as
palavras mudam de significado com o andar do tempo ou quando passam de uma
região a outra. Assim que, pique-nique era aqui, banquete, ou como melhor nome
haja, em que cada conviva entra com a sua quota. Quando um só é que paga a pato
e o resto a cousa tinha outro nome. A palavra ficou significando, ao que parece, um
banquete campestre.
Foi naturalmente para acabar com tais dúvidas que o Sr. Dr. Castro Lopes
inventou a palavra convescote. O Sr. Dr. Castro Lopes a nossa Academia Francesa.
Esta, há cerca de um mês, admitiu no seu dicionário a palavra atualidade. Em vão a
pobre atualidade andou por livros e jornais, conversações e discursos; em vão
Littrée, a incluiu no seu dicionário. A academia não lhe deu ouvidos. Só quando uma
espécie de sufrágio universal decretou a expressão, é que ela canonizou. Donde se
infere que o Sr. Castro Lopes, sendo a nossa Academia Francesa, é também o
contrário dela. É a academia pela autoridade, é o contrário pelo método. Longe de
esperar que as palavras envelhecem cá fora, ele as compõe novas. com os
elemento que tira da sua erudição, dá-lhes a bênção e manda-as por esse mundo. O
mesmo paralelo se pode fazer entre ele e a Igreja Católica. Igreja, tendo igual
autoridade, procede como a academia, não inventa dogmas, define-os.
Convescote tem prosperado, posto não seja claro, à primeira vista, corno
engrossador, termo recente, de aplicação política, expressivo que faz imagem, como
dizem os franceses. É certo que a clareza de vem do verbo donde saiu. Quem o
inventou? Talvez algum cético, por horas mortas, relembrando uma procissão
qualquer; mas também pode ser obra de algum religionário, aborrecido com ver
aumentar o número de fiéis. As religiões políticas diferem das outras em que os fiéis
da primeira hora não gostam de ver fiéis das outras horas. Parecem-lhes inimigos; é
verdade que as conversões, tendo os seus motivos na consciência, escapam à
verificação humana e é possível que um homem se ache, repentinamente, católico
menos pelos dogmas que pelas galhetas. As galhetas fazem engrossar muito. Mas
fosse quem fosse o inventor do vocábulo, certo e que este, apesar da anônimo e
popular, ou por isso mesmo, espalhou-se e prosperou; não admirará que fique na
língua, e se houver, aí por 1950, uma Academia Brasileira, pode bem ser que venha
a incluí-lo no seu dicionário. O Sr. Dr. Castro Lopes poderia recomendá-lo a um alto
destino.
90
Oh! se o nosso venerando latinista me desse uma palavra que, substituindo
mentira, não fosse inverdade! Creio que esta segunda palavra nasceu no
parlamento, obra de algum orador indignado e cauteloso, que, não querendo ir até a
mentira, achou que inexatidão era frouxa demais. Não nego perfeição à inverdade,
nem eufonia, nem cousa nenhuma. Digo só que me é antipática. A simpatia é o meu
léxico. A razão por que eu nunca explodo, nem gosto que os outros explodam, não é
porque este verbo não seja elegante, belo, sonoro, e principalmente necessário; é
porque ele não vai com o meu coração. Le coeur a des raisons que la raison ne
connait pas, disse um moralista.
A outra palavra, mentira, essa é simpática, mas faltam-lhe maneiras e anda
sempre grávida de tumultos. Há cerca de quinze dias, em sessão do Conselho
Municipal, caiu da boca de um intendente no rosto de outro, e foi uma agitação tal,
que obrigou o presidente a suspender os trabalhos por alguns minutos. Reaberta a
sessão, o presidente pediu aos seus colegas que discutissem com a maior
moderação; pedido excessivo, eu contentar-me-ia com a menor, era bastante para
não ir tão longe.
De resto, a agitação é sinal de vida e melhor é que o Conselho se agite que
durma. Esta semana o caso da bandeira, que é um dos mais graciosos, agitou
bastante a alma municipal. Se o leste, é inútil contar; se o não leste, é difícil. Refirome
à bandeira que apareceu hasteada na sala das sessões do Conselho, em dia de
gala, sem se saber o que era nem quem a tinha ali posto. Pelo debate viu-se que a
bandeira era positivista e que um empregado superior a havia hasteado, depois de
consentir nisso o presidente. O presidente explicou-se. Um intendente propôs que a
bandeira fosse recolhida ao Museu Nacional, por ser "obra de algum merecimento".
Outro chamou-lhe trapo. O positivismo foi atacado. Crescendo o debate, alargou-se
o assunto e as origens da revolução do Rio Grande do Sul foram achadas no
positivismo, bem como a estátua de Monroe e um episódio do asilo de mendicidade.
Se assim é, explica-se o apostolado antipositivista, fundado esta semana, e
não pode haver maior alegria para o apostolado positivista; não se faz guerra a
fantasmas, a não ser no livro de Cervantes. Mas que pensa de tudo isto um
habitante do planeta Marte, que está espiando cá para baixo com grandes olhos
irônicos?
A bandeira não teve destino, foi a conclusão de tudo, e não ser de admirar
que torne a aparecer no primeiro dia de gala, para da lugar a nova discussão —
cousa utilíssima, pois da discussão nasce a verdade. Para mim, a bandeira caiu do
céu. Sem ela esta página que começou pedante, acabaria ainda mais pedante.
[149]
[2 dezembro]
Quando me leres, poucas horas terão passado depois da tua volta do
Cassino. Vieste da festa Alencar, é domingo, não tens de ir aos teu negócios, ou aos
teus passeios, se és mulher, como me pareces. O teus dedos não são de homem.
Mas, homem ou mulher, quem quer que sejas tu, se foste ao Cassino, pensa que
fizeste uma boa obra, e se não foste, pensa em Alencar, que é ainda uma obra
excelente Verás em breve erguida a estátua. Uma estátua por alguns livros!
Olha, tens um bom meio de examinar se o homem vale o monumento, etc. É
domingo, lê alguns dos tais livros. Ou então, se queres uma boa idéia dele, pega no
livro de Arararipe Júnior, estudo imparcial e completo, publicado agora em segunda
edição. Araripe Júnior nasceu para a crítica; sabe ver claro e dizer bem. É o autor de
91
Gregório de Matos, creio que basta. Se já conheces José de Alencar não perdes
nada em relê-lo; ganha-se sempre em reler o que merece, acrescendo que acharás
aqui um modo de amar o romancista, vendo-lhe distintamente todas as feições, as
belas e as menos belas, que é perpétuo, e o que é perecível. Ao cabo, fica sempre
uma estátua do chefe dos chefes.
Queres mais? Abre este outro livro recente, Estudos Brasileiros, de José
Veríssimo. Aí tens um capítulo inteiro sobre Alencar, com particularidade de tratar
justamente da cerimônia da primeira pedra do monumento, e, a propósito dele, da
figura do nosso grande romancista nacional. É a segunda série de estudos que José
Veríssimo publica, e cumpre o que diz no título; é brasileiro, puro brasileiro. Da
competência dele nada direi que não saibas: é conhecida e reconhecida. Há lá certo
número de páginas que mostram que há nele muita benevolência. Não digo quais
sejam: adivinha-se o enigma lendo o livro; se, ainda lendo, não o decifrares, é que
me não conheces.
E assim, relendo as críticas, relendo os romances, ganharás o teu domingo,
livre das outras lembranças, como desta ruim semana. Guerra e peste; não digo
fome, para não mentir, mas os preços das cousas são já tão atrevidos, que a gente
come para não morrer.
A peste, essa anda perto, como espiando a gente. Oh! grão de areia de
Cromwell, que vales tu, ao pé do bacilo vírgula? Qualquer Cromwell de hoje, com
infinitamente menos que um grão de areia cai do mais alto poder da terra no fundo
da maior cova. Francamente, prefiro os tempos em que as doenças, se não eram
maleitas, barrigas d'água, ou espinhela caída, tinham causas metafísicas e curavamse
com rezas e sangrias, benzimentos e sanguessugas. A descoberta bacilo foi um
desastre. Antigamente, adoecia-se; hoje mata-se primeiro o bacilo de doença,
depois adoece-se, e o resto da vida dá apenas para morrer.
Tantas pessoas têm já visto o bacilo vírgula e toda a mais pontuação bacilar,
que não se me dá dizer que o vi também. Começa a ser distinção. Um homem capaz
não pode já existir sem ter visto, uma vez que seja, essa extraordinária criatura. O
bacilo vírgula é a Sarah Bernhardt da patologia, o cisne preto dos lagos intestinais, o
bicho de sete cabeças, não tão raro, nem tão fabuloso. Quero crer que todas essas
vírgulas que vou deitando entre as orações, não são mais que bacilos, já sem
veneno, temperando assim a patologia com a ortografia — ou vice-versa.
Quanto à guerra, houve apenas duas noites de combate, investidas a quartéis
e corpos de guarda, nacionais contra policiais, gregos contra troianos, tudo por
causa de uma Helena, que se não sabe quem seja. Ouvi ou li que foi por causa de
um chapéu. É pouco; mas lembremo-nos que assim como o bacilo vírgula substituiu
o grão de areia de Cromwell, assim o chapéu substitui a mulher, e tudo irá
diminuindo. Somos chegados às cousas microscópicas, não tardam as invisíveis, até
que venham as impossíveis. Um chapéu de palhinha de Itália deu para um
vaudeville; este, de palha mais rude, deu para uma tragédia, Tudo é chapéu..
Não quero saber de assassinatos, nem de suicídios, nem das longas histórias
que eles trouxeram à hora da conversação; é sempre demais. Também não vi nem
quero saber o que houve com as pernas de um pobre moço no Catete. que ficaram
embaixo de um bond da Companhia Jardim Botânico. Ouvi que se perderam. Não é
a primeira pessoa a quem isto acontece, nem será a última. A Companhia pode
defender-se muito bem, citando Vítor Hugo, que perdeu uma filha por desastre, e
resignadamente comparou a criação a uma roda:
Que la création est une grande roue
92
Qui ne peut se mouvoir sans écraser quelqu'un.
A mesma cousa dirá a Companhia Jardim Botânico, em prosa ou verso, mas
sempre a mesma cousa: — "Eu sou como a grande roda da criação, não posso
andar sem esmagar alguma pessoa". Comparação enérgica e verdadeira. A
fatalidade do ofício é que a leva a quebrar as pernas aos outros. O pessoal desta
companhia é carinhoso, o horário pontual, nenhum atropelo, nenhum
descarrilamento, as ordens policiais contra os reboques são cumpridas tão
exatamente, que não há coração bem formado que não chegue a entusiasmar-se.
Se ainda vemos dous ou três carros puxados por um elétrico, é porque a eletricidade
atrai irresistivelmente, e os carros prendem-se uns aos outros; mas a administração
estuda um plano que ponha termo a esse escândalo das leis naturais.
Terras há em que os casos, como os do Catete, são punidos com prisão,
indenização e outras penas: mas para que mais penas, além das que a vida traz
consigo? Demais, os processos são longos, não contando que a admirável
instituição do júri — é a melhor escola evangélica destes arredores: "Quem estiver
inocente, que lhe atire a primeira pedra!" exclama ele com o soberbo gesto de
Jesus. E o réu, seja de ferimento ou simples estelionato, é restituído ao ofício de
roda da criação.
O melhor é não punir nada. A consciência é o mais cru dos chicotes. O
dividendo é outro. Uma companhia de carris que reparta igualmente aleijões ao
público e lucros a si mesma, verá nestes o seu próprio castigo se é caso de castigo;
se o não é, para que fazê-la padecer duas vezes?
Não creio que o período anterior esteja claro. Este vai sair menos claro ainda,
visto que é difícil ser fiel aos princípios e não querer que o prefeito saia das urnas. A
verdade, porém, é que eu prefiro um prefeito nomeado a um prefeito eleito — ao
menos, por ora. José Rodrigues, a quem consulto em certos casos, vai mais longe,
entendendo que os próprios intendentes deviam ser nomeados. homem de arrocho;
o pai era saquarema.
Menos claro que tudo. é este período final. Tem-se discutido se Hospício
Nacional de Alienados deve ficar com o Estado ou tornar à Santa Casa de
Misericórdia. Consultei a este respeito um doudo, que me declarou chamar-se
Duque do Cáucaso e da Cracóvia, Conde Stellario, filho de Prometeu, etc., e a sua
resposta foi esta:
Se é verdade que o Hospício foi levantado com o dinheiro de loterias e de
títulos mobiliários, que o José Clemente chamava impostos sobre a vaidade, é
evidente que o Hospício deve ser entregue aos doudos, e eles que o administrem. O
grande Erasmo (ó Deus!) escreveu que andar atrás da fortuna e da distinções é uma
espécie de loucura mansa; logo, a instituição, fundada por doudos, deve ir aos
doudos,— ao menos, por experiência. É o que me parece! é o que parece ao grande
príncipe Stellario, bispo, episcopus, papam... seu a seu dono.
[150]
[16 dezembro]
Um telegrama de S. Petersburgo anunciou anteontem que a bailarina
Labushka cometeu suicídio. Não traz a causa; mas, dizendo que ela era amante do
finado imperador, fica entendido que se matou de saudade.
Que eu não tenha, ó alma eslava, ó Cleópatra sem Egito, que eu não tenha a
lira de Byron para cantar aqui a tua melancólica aventura! Possuías o amor de um
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potentado. O telegrama diz que eras amante "declarada", isto é, aceita como as
demais instituições do país. Sem protocolo, nem outras etiquetas, pela única lei de
Eros, dançavas com ele a redowa da mocidade. Naturalmente eras a professora, por
isso que eras bailarina de ofício; ele, discípulo, timbrava em não perder o compasso,
e a Santa Rússia, que dizem ser imensa, era para vós ambos infinita.
Um dia, a morte, que também gosta de dançar, pegou no teu imperador e
transferiu-o a outra Rússia, ainda mais infinita. A tristeza universal foi grande, porque
era um homem bom e justo, Daqui mesmo, desta remota capital americana, vimos
os grandiosos funerais e ouvimos as lamentações públicas. Não nos chegaram as
tuas, porque há sempre um recanto surdo para as dores irregulares. Agora, porém,
que tudo acabou, eis ai reboa o som de um tiro, que faltava, para completar os
funerais do autocrata. Rival da morte, quiseste ir dançar com ele a redowa da
eternidade.
Há aqui um mistério. Não é vulgar em bailarinas essa fidelidade
verdadeiramente eterna. Muitas vezes choram; estanques as Lágrimas, recolhem as
recordações do morto, outras tintas lágrimas cristalizadas em diamantes, contam os
títulos de dívida pública, estão certos; as sedas são ainda novas, todos os tapetes
vieram da Pérsia ou da Turquia. Se há palacete, dado em dia de anos, as paredes,
que viram o homem, passam a ver tão-somente a sombra do homem, fixada nos
ricos móveis do salão o do resto. Se não há palacete, há leiloeiros para vender a
mobília. Como levá-la à velha hospedaria de outras terras, Belgrado ou Veneza,
aonde a meia viúva se abriga para descansar do morto, e de onde sai, às vezes,
pelo braço de um marido, barão autêntico e mais autêntico mendigo?
Eis o que se dá no mundo da pirueta. O teu suicídio, porém, última
homenagem, e (perdoem-me a exageração) a mais eloqüente das milhares que
recebeu a memória do imperador, o teu suicídio é um mistério. Grande mistério, que
só o mundo eslavo é capaz de dar. Foi telegrama o que li? Foi alguma página de
Dostoiévski? A conclusão última é que amavas. Sacrificaste uma aposentadoria
grossa, a fama, a curiosidade pública, as memórias que podias escrever ou mandar
escrever, e, antes delas, as entrevistas para os jornais, os interrogatórios que te
fariam sobre os hábitos do imperador e os teus próprios hábitos, e quantos copos de
chá bebias diariamente, as cores mais do teu gosto, as roupas mais do teu uso,
quem foram teus pais, se tiveste algum tio, se esse tio era alto, se era coronel, se
era reformado, quando se reformou, quem foi o ministro que assinou a reforma, etc.,
um rosário de notícias interessantes para o público de ambos os mundos. Tudo
sacrificaste por um mistério.
Mistérios nunca nos aborreceram; a prova é que folgamos agora diante de
dous mistérios enormes, dous verdadeiros abismos (insondáveis). Sempre gostamos
do inextricável. Este país não detesta as questões simples, nem as soluções
transparentes, mas não se pode dizer que as adore. A razão não está só na
sedução do obscuro e do complexo, está ainda em que o obscuro e o complexo
abrem a porta à controvérsia. Ora, a controvérsia, se não nasceu conosco, foi pelo
fato inteiramente fortuito, de haver nascido antes; se não tem apressado em vir a
este mundo, era nossa irmã gêmea; se temos de a deixar neste mundo, é porque
ainda cá ficarão homens. Mas vamos aos nossos dous mistérios.
O primeiro deles anda já tão safado, que até me custa escrever o .nome; é o
câmbio. Está outra vez no "tapete da discussão". O segundo é recente, é novíssimo,
começa a entrar no debate; é o bacilo vírgula. Os mistérios da religião não nos
ascendem uns contra os outros; para crer neles basta a fé, e a fé não discute. Os do
encilhamento aturdiram por alguns dias ou semanas; mas desde que se descobriu
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que o dinheiro caía do céu, o mistério perdeu a razão de ser. Quem, naquele tempo,
pôs uma cesta, uma gamela, uma barrica, uma vasilha qualquer, no luar ou às
estrelas, e achou-se de manhã com cinco, dez, vinte mil contos, entendeu logo que
só por falsificação é que fazemos dinheiro cá embaixo. Ouro puro e copioso é que
cai do eterno azul.
Eu, quando era pequenino, achei ainda uma usança da noite de São João.
Era expor um copo cheio d'água ao sereno, e despeja dentro um ovo de galinha. De
manhã ia-se ver a forma do ovo; se era navio, a pessoa tinha de embarcar; se era
um casa, viria a ser proprietária, etc. Consultei uma vez o bom do santo; vi,
claramente visto — vi um navio; tinha de embarcar. Ainda não embarquei, mas
enquanto houver navios no mar, não perco a esperança. Por ocasião do
encilhamento, a maior parte das pessoas, não podendo sacudir fora as crenças da
meninice, não punham gamelas vazias ao sereno, mas um copo com água e ovo. De
manhã, viam navios, e ainda agora não vêem outra coisa. Por que não puseram
gamelas? Vivam as gamelas! Ou, se é lícito citar versos, digamos com o cantor d'Os
Timbiras.
........ Paz aos Gamelas
Renome e glória...
Há quem queira filiar o câmbio aos costumes do encilhamento. A pessoa que
me disse isto, provavelmente soube explicar-se; eu é que não soube entendê-la. É
uma complicação de dinheiro que se ganha ou se perde, sem saber como,
anonimamente, com resignação geral de baixistas e altistas. Um embrulho. Mas há
de ser ilusão, por força. Quem se lembra daqueles belos dias do encilhamento,
sente que eles acabaram, como os belos dias de Aranjuez. Onde está agora o
delírio? onde estão as imaginações? As estradas na lua, o anel de Saturno, a pele
de ursos polares, onde vão todos esses sonhos deslumbrantes, que nos fizeram
viver, pois que a vida es sueño, segundo o poeta?
Tais sonhos ainda são possíveis com o mistério do bacilo vírgula. Toda esta
semana andou agitado esse bicho da terra tão pequeno, para citar outro poeta, o
terceiro ou quarto que me vem ao bico da pena. Há dias assim; mas eu suponho que
hoje esta afluência de lembranças poéticas é porque a poesia é também um
mistério, e todos os mistérios são mais ou menos parentes uns dos outros. Suponho,
não afirmo; depois do que tenho lido sobre o famoso bacilo, não afirmo nada;
também não nego. Autoridades respeitáveis dizem que o bacilo mata, pelo modo
asiático; outras também respeitáveis juram que o bacilo não mata.
Hippocrate dit oui, et Gallien dit non.
[151]
[23 dezembro]
A Semana acabou fresca, tendo começado e continuado horrivelmente cálida.
Até quinta-feira à noite ninguém podia respirar. Sexta-feira trouxe mudança de
tempo e baixa de temperatura. O fenômeno explicar-se-ia naturalmente, em
qualquer ocasião, mas houve uma coincidência que me leva a atribuí-lo a causas
transcendentais. Se cuidas que aludo ao encerramento do Congresso Nacional,
enganaste. O calor do Congresso tinha-se ido, há muito, com a Câmara dos
Deputados. O Senado, apesar da troca de regímen e do mínimo da idade, há de ser
sempre a antiga Sibéria, pelo próprio caráter da instituição. Não, a causa foi outra.
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A causa foi o banquete que o ministro da Suécia e Noruega deu aos
comandantes e oficiais da corveta e da canhoneira ancoradas no nosso porto,
banquete a que assistiram os cônsules da Holanda e da Dinamarca. Homens do
Norte, amassados com gelo, curtidos com ventos ásperos, uma vez reunidos à volta
da mesa, comunicaram uns aos outros as sensações antigas, e, por sugestão,
transportaram para aqui algumas braçadas daqueles climas remotos. Estando em
dezembro, evocaram o seu inverno deles, que não é o nosso moço lépido de S.
João, mas um velho pesado do Natal. Já antes da sopa, deviam tremer de frio. Eu
próprio, ao ler-lhes os nomes, levantei a cola do fraque. Os bigodes pingavam neve.
As rajadas de vento levavam os guardanapos.
Tendo sido na noite de quarta-feira o banquete escandinavo, o nosso céu
ainda resistiu durante a quinta-feira, e com tal desespero que parecia queimar tudo;
mas na sexta-feira já não pôde, e não teve remédio senão chover e ventar. Não
choveu, nem ventou muito, não chegou a nevar, mas fez-nos respirar, e basta. O
que talvez não baste é a explicação. Espíritos rasteiros não podem aceitar razões de
certa elevação, mas com esses não se teima. Faz-se o que fiz sexta-feira ao meu
criado, quando ele me entrou no gabinete para anunciar que não havia carne. Trazia
os cabelos em pé, os olhos esbugalhados, a boca aberta, e só falou depois que a
minha frieza, totalmente escandinava, não correspondendo a tanto assombro,
acendeu nele o desejo de me dar a grande novidade. Eu, cada vez mais
escandinavo, respondia-lhe que, se havia carne, havia outras cousas. Não contestou
a sabedoria da resposta. mas confessou que a razão do espanto e consternação em
que vinha, era o receio de não haver mais carne neste mundo.
— Não entendo de leis, concluiu José Rodrigues, cuidei que era alguma lei
nova que mandava acabar com a carne ...
Este José Rodrigues é bom, é diligente, respeitoso, mas coxeia do intelecto,
não que seja doudo, mas é estúpido. Não digo burro: burro com fala seria mais
inteligente que ele. Ontem, depois do almoço, veio ter comigo, trazendo uma folha
na mão:
— Patrão, leio aqui estes dous anúncios: "Para tosses rebeldes, xarope de
jaramacaru". — "Para intendente municipal, Calixto José de Paiva". Qual destes
dous remédios é melhor? E que moléstia é essa que nunca vi?
— Tu és tolo, José Rodrigues.
— Com perdão da palavra, sim, senhor.
— Pois se as moléstias são duas, como é que me perguntas qual dos
remédios é melhor? É claro que ambos são bons, um para tosses rebeldes, outro
para intendente municipal.
— E esta moléstia é como a neurastenia, que o patrão me ensinou a dizer, e
ainda não sei se digo direito, — a tal moléstia nova, que é bem antiga, é a que
chamávamos espinhela caída. Ou intendente será assim cousa de dentes? ... O
patrão desculpe; eu não andei por escolas; não aprendi leis nem medicina...
— José Rodrigues, há cousas que, não se entendendo logo, nunca mais se
entendem. Onde andas tu que não sabes o que é intendente? Sabes o que é
vereador?
— Vereador, sei; é o homem que o povo põe na Câmara para ver as cousas
da cidade, a limpeza, a água, as lampiões.
— Pois é a mesma cousa.
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— A mesma cousa? Entendo; é como a espinhela caída, que hoje se chama
anatomia ou neurastenia. Pois, sim, senhor. Intendente o mesmo que vereador.
Cura-se então com o Paiva do anúncio? Mas se o Paiva é remédio, conforme diz o
patrão, não entendo que se aplique a neurastenia ou intendente ...
— Tu não estás bom, José Rodrigues; vai-te embora.
— Para dizer a minha verdade, bom, bom, não estou; amanheci com uma dor
do lado, que não posso respirar, e é por isso que vim perguntar ao patrão se era
melhor o xarope, se o Paiva. Talvez Paiva seja mais barato que o xarope. Isto de
remédios, não é o serem mais caros ... As vezes os mais caros não prestam para
nada, e um de pouco preço cura que faz gosto. Mas, enfim, não faço questão de
preço. A saúde merece tudo: Vou ao Paiva... isto é, o jornal fala também de um
Canedo, para a mesma moléstia ... Não é Canedo que se diz? Talvez o Canedo seja
ainda mais barato que o Paiva.
— Isto é cousa que só à vista das contas do boticário. Toma o que puderes;
mas, antes disso, faz-me um favor. Vai ver se estou no Largo da Carioca.
— Sim, senhor... Se não estiver, volto?
— Espera primeiro até às cinco horas; se até às cinco horas não me achares,
é que eu não estou, e então volta para casa.
— Muito bem; mas se o patrão lá estiver, que quer que lhe faça?
— Puxa-me o nariz.
— Ah! isso não! Confianças dessas não são comigo. Gracejar, gracejo e o
patrão faz-me o favor de rir; mas não se puxa o nariz a um homem ...
— Bem, dá-me então as boas tardes e vem-te embora para casa.
— Perfeitamente.
Enquanto ele ia ao Largo da Carioca, fui-me eu às notas da semana, e não
achei mais nada que valesse a pena, salvo o planeta que se descobriu entre Marte e
Mercúrio. Mas isso mesmo, para quem não é astrônomo, vale pouco ou nada; não
que as grandezas do céu estejam trancadas aos olhos ignaros, francas, estão, e o
ínfimo dos homens pode admirá-las. Não é isto; é que um astrônomo diria sobre este
novo planeta cousas importantes. Que direi eu? Nada ou algum absurdo. Buscaria
achar alguma relação entre os planetas que aparecem e as cidades que ameaçam
desaparecer com terremotos. A Calábria padeceu mais com eles que com os
salteadores; pouco é o chão seguro debaixo dos pés das belas italianas ou do
fortíssimo Crispi. Na Hungria houve um tremor há dous dias; outras partes do mundo
têm sido abaladas.
Andará a terra com dores de parto, e alguma cousa vai sair dela, que
ninguém espera nem sonha? Tudo é possível! Quem sabe se o planeta novo não foi
o filho que ela deu à luz por ocasião dos tremores italianos? Assim, podemos fazer
uma astronomia nova; todos os planetas são filhos do consórcio da terra e do sol,
cuja primogênita é a lua, anêmica e solteirona. Os demais planetas nasceram
pequenos, cresceram com os anos, casaram e povoaram o céu com estrelas. Aí
está uma astronomia que Júlio Verne podia meter em romances, e Flammarion em
décimas.
Também se pode tirar daqui uma política internacional. Quando a África e o
que resta por ocupar e civilizar, estiver, ocupado e civilizado, os planetas que
aparecerem, ficarão pertencendo aos países cujas entranhas houverem sido
abaladas na ocasião com terremotos; são propriamente seus filhos. Restará
conquistá-los; mas o tetraneto de Édson terá resolvido este problema, colocando os
planetas ao alcance dos homens, por meio de um parafuso elétrico e quase infinito.
97
[152]
[30 dezembro]
A sorte é tudo. Os acontecimentos tecem-se como as peças de teatro, e
representam-se da mesma maneira. A única diferença é que não há ensaios; nem o
autor nem os atores precisam deles. Levantado o pano, começa a representação, e
todos sabem os papéis sem os terem lido. A sorte é o ponto.
Esse pequeno exórdio é a melhor explicação que posso dar do drama da
Praça da República, e a mais viva condenação da teimosia com que alguns jornais
pediram a demolição dos pavilhões e arcos das festas uruguaias. Ainda bem que
não pediram também a eliminação de três grinaldas de folhas, secas, já sem cara de
folhas, que ainda pendem dos arcos de gás na Rua de S. José. Oh! não me tirem
essas pobres grinaldas! Não fazem mal a ninguém, não tolhem a vista, não
escondem e são verdadeiras máximas. Quando desço por ali, com a memória cheia
de algumas folhas verdes que vieram comigo, no bond, acontece-me quase sempre
parar diante delas. E elas dizem-me cousas infinitas sobre a caducidade das folhas
verdes, e o prazer com que as ouço não tem nome na terra nem provavelmente no
céu. Ergo bibamus! E aí me vou contente ao trabalho. Não é novo o que elas dizem,
nem serão as últimas que o dirão. A banalidade repele-se de século a século, e irá
até à consumação dos séculos; não é folha que perca o viço.
Vindo ao pavilhão da Praça da República, o acontecimento de quinta-feira
provou que ele era necessário, porque a sorte, que rege este mundo, já estava com
o drama nas mãos para apontá-lo aos atores! E os atores foram cabais no
desempenho. O gatuno que resistiu ao ataque de alguns homens de boa vontade
dava um magnífico bandido. Um simples gatuno, não defende com tanto ardor a
liberdade, posto que a liberdade seja um grande benefício. As armas do gatuno são
as pernas. Ele foge ao clamor público, à espada da polícia, à cadeia; pode dar um
cascudo, um empurrão; matar, não mata. É certo que o tal Puga não podia fugir;
mas os Pugas de lenços e outras miudezas, em casos tais, não tendo por onde fugir,
entregam-se; preferem a prisão simples aos complicados remorsos. A própria casa,
apólices, terrenos e outros bens, havidos capciosamente, não tiram o sono. O
sangue, sim, o sangue perturba as noites.
Daí veio a suspeita de ser este Puga doudo — e parece confirmá-la a
declaração que ele fez de chamar-se Jesus Cristo. A declaração não basta, e podia
ser um estratagema; mas há tal circunstância que me faz crer que ele é deveras
alienado: é ser espanhol. Os bandidos espanhóis, embora salteiem e despojem a
gente, não deixam de respeitar a religião. Dizem que levam bentinhos consigo,
ouvem missas, quase que confessam os seus pecados.
A tragédia, se deveras é doudo, foi assim mais trágica. Essa luta em um
desvão, entre um louco e alguns homens valentes, um dos quais morreu e os outros
saíram feridos, deve ter sido extraordinariamente lúgubre. Tal espetáculo, é claro,
estava determinado. Era preciso que fosse em lugar que pudesse conter o milhar de
espectadores que teve; logo, a Praça da República; devia ser o alto de edifício vazio
e livre, para onde só se pudesse ir por uma escada de mão; logo, o pavilhão das
festas. Tudo vinha assim disposto, era só cumpri-lo à risca.
Os espectadores, que também fizeram parte do espetáculo, desempenharam
bem o seu papel, mas parece que o haviam aprendido em Shakespeare. Assim é
que, simultaneamente, aplaudiram os corajosos que subiam a escada de mão, e
apupavam os que iam só a meio caminho e desciam amedrontados. Aclamações e
assobios, de mistura, enchiam os ares, até a cena final, quando o Puga, subjugado,
98
desceu ferido também. Aí Shakespeare cedeu o passo a Lynch, outro trágico, sem
igual gênio, mas com a mesma inconsciência do gênio, cujo único defeito é não ter
feito mais que uma tragédia em sua vida. A polícia interveio para se não representar
outra peça, e, se salvou a vida ao Puga, praticou um ato muito menos liberal, que foi
restaurar a censura dramática.
Ao enterramento do soldado que acabou a vida naquela luta, creio que
acompanhou menos gente, os que pegaram no caixão, e alguns amigos particulares,
se é que os tinha. O cocheiro acompanhou porque ia guiando os burros.
Concluamos que o homem ama a luta e respeita a morte; entusiasta diante do herói,
fica naturalmente triste e solitário diante do cadáver, e deixa-o ir para onde todos
havemos de ir, mais tarde ou mais cedo.
Resumindo, direi ainda mais uma vez que a sorte é tudo, e não são os livros
que têm os seus fados. Também os têm os arcos e os pavilhões. Que digo?
Também os têm as próprias palavras. Há dias, o Sr. General Roberto Ferreira,
referindo-se a uma notícia, encabeçou o seu artigo com estas palavras: Consta, não;
é exato. E todos discutiram o artigo, afirmando uns que constava, outros que era
exato. A reflexão que tirei daí foi longa e profunda, não por causa da matéria em si
mesma, não é comigo, mas por outra cousa que vou dizer, não tendo segredos para
os meus leitores.
Conheço desde muito o velho Constar, era eu bem menino; lembra-me
remotamente que foi um carioca, Antônio de Morais Silva, que o apresentou em
nossa casa. Velho, disse eu! Na idade, era-o; mas na pessoa era um dos mais
robustos homens que tenho visto. Alto, forte, pulso grosso, espáduas longas; dir-seia
um Atlas. O moral correspondia ao físico. Era afirmativo, autoritário, dogmático.
Quando referia um caso, havia de crer-se por força. As próprias histórias da carocha,
que contava para divertir-nos, deviam ser aceitas como fatos autênticos. O carioca
Morais, que tenho grande fé nele, dizia que era assim mesmo, e ninguém podia
descrer de um, que era arriscar-se a levar um peteleco de ambos.
Poucos anos depois, tornando a vê-lo, caiu-me a alma aos pós a alma e o
chapéu, porque ia justamente cumprimentá-lo, quando lhe ouvi dizer com a voz
trêmula e abafada: "Suponho ... ouvi que ... dar-se-á que seja? ... Tudo é possível".
Não me conhecia! Respondi-lhe que era eu mesmo, em carne e osso, e indaguei da
saúde dele. Algum tempo deixou vagar os olhos em derredor, cochilou do esquerdo,
depois do direito, e com um grande suspiro, redargüiu que ouvira dizer que ia bem,
mas não podia afirmá-lo; era matéria incerta. "Macacoa", disse-lhe eu rindo para
animá-lo. "Também não, isto é, creio que não", respondeu o homem. Dei-lhe o
braço, e convidei-o a ir tomar café ou sorvete. Hesitou, mas acabou aceitando.
Conversamos cerca de meia hora. Deus de misericórdia! Não era já o
dogmático de outro tempo, cujas afirmações, como espadas, cortavam toda
discussão. Era um velho tonto, vago, dubitativo, incerto do que via, do que ouvia, do
que bebia. Tomou um sorvete, crendo que era café e achou o café extremamente
gelado. Há sorvetes de café, disse eu, para ver se o traria à afirmação antiga;
concordou que sim, embora pudesse ser que não. Um cético! um triste cético!
Que é isto senão a sorte? A sorte, e só ela, tirou ao velho Constar o gosto das
idéias definitivas e dos fatos averiguados. A sorte, e só ela, decidirá da eleição do
dia 6 de janeiro. Podem contar, somar e multiplicar os votos; a eleição há de ser o
que ela quiser. A peça está pronta. Não nos espantemos do que virmos; preparemonos
para analisar as cenas, os lances, o diálogo, porque a peça está feita.
A sorte acaba de golpear-me cruamente. Sempre cuidei que o meu silêncio
modesto e expressivo indicasse ao Sr. Presidente da República onde estava a
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pessoa mais apta (posso agora dizê-lo sem modéstia). para o cargo de prefeito. S.
Ex.a não me viu. Outrageons Fortune! Tu és a causa desta prescrição. Sem ti, o
prefeito era eu, e eu te pagaria, sorte afrontosa, elevando-te um templo no mesmo
lugar onde está o pavilhão das festas uruguaias.
1895
[153]
[6 janeiro]
Se a pedra de Sísifo não andasse já tão gasta, era boa ocasião de dar com
ela na cabeça dos leitores, a propósito do ano que começa. Mas tanto tem rolado
esta pedra, que não vale um dos paralelepípedos das nossas ruas. Melhor é dizer
simplesmente que aí chegou um ano, que veio render o outro, montando guarda às
nossas esperanças, à espera que venha rendê-lo outro ano, o de 1896, depois o de
1897, em seguida o de 1898, logo o de 1899, enfim o de 1900...
Que inveja que tenho ao cronista que houver de saudar desta mesma coluna
o sol do século XX! Que belas cousas que ele há de dizer, erguendo-se na ponta
dos pés, para crescer com o assunto, todo auroras e folhas, pampeiros e terremotos,
anarquia e despotismo, cousas que não trará consigo o século XX, um século que
se respeitará, que amará os homens, dando-lhes a paz, antes de tudo, e a ciência,
que é ofício de pacíficos.
A doutrina microbiana, vencedora na patologia, será aplicada à política, e os
povos curar-se-ão das revoluções e maus governos, dando-se-lhes um mau governo
atenuado e logo depois uma injeção revolucionária. Terão assim uma pequena
febre, suarão um tudo nada de sangue e no fim de três dias estarão curados para
sempre. Chamfort, no século XVII, deu-nos a célebre definição da sociedade, que se
compõe de duas classes, dizia ele, uma que tem mais apetite que jantares, outra
que tem mais jantares que apetite.
Pois o século XX trará a equivalência dos jantares e dos apetites, em tal
perfeição que a sociedade, para fugir à monotonia e dar mais sabor à comida,
adotará um sistema de jejuns voluntários. Depois da fome, o amor. O amor deixará
de ser esta cousa corrupta e supersticiosa; reduzido à função pública e obrigatória,
ficará com todas as vantagens, sem nenhum dos ônus. O Estado alimentará as
mulheres e educará os filhos, oriundos daquela sineta dos jesuítas do Paraguai, que
o Senador Zacarias fez soar um dia no Senado, com grave escândalo dos anciãos
colegas. Grave é um modo de dizer, o escândalo é outro. Não houve nada, a não
ser o escuto explosivo da citação, caindo da boca de homem não menos austero
que eminente.
Mas não roubemos o cronista do mês de janeiro de 1900. Ele, se lhe der na
cabeça, que diga alguma palavra dos seus antecessores, boa ou má, que é também
um modo de louvar ou descompor o século extinto. Venhamos ao presente.
O presente é a chuva que cai menos que em Petrópolis, onde parece que o
dilúvio arrasou tudo, ou quase tudo, se devo crer nas notícias; mas eu creio em
poucas cousas, leitor amigo. Creio em ti, e ainda assim é por um dever de cortesia,
não sabendo quem sejas, nem se mereces algum crédito. Suponhamos que sim.
Creio em teu avô, uma vez que és seu neto, e se já é morto; creio ainda mais nele
que em ti. Vivam os mortos! Os mortos não nos levam os relógios. Ao contrário,
deixam os relógios, e são os vivos que os levam, se não há cuidado com eles.
Morram os vivos!
100
Podeis concluir daí a disposição em que estou. Francamente, se esta chuva
que vai refrescando o verão, fosse, não digo um dilúvio universal, mas uma
calamidade semelhante à de Petrópolis, eu aplaudiria d'alma, contanto que me
ficasse o gosto do poeta, e pudesse ver da minha janela o naufrágio dos outros.
Hoje há aqui, na capital da União, grandes naufrágios de alguns salvamentos.
Falo por metáfora, aludo às eleições. Recompõe-se a intendência, e os primeiros
naufrágios estão já decretados, são os intendentes antigos. Com todo o respeito
devido à lei, não entendi bem a razão que determinou a incompatibilidade dos
intendentes que acabaram. Só se foi política, matéria estranha às minhas
cogitações; mas indo só pelo juízo ordinário, não alcanço a incompatibilidade dos
antigos intendentes. Se eram bons, e fossem eleitos, continuávamos a gozar das
doçuras de uma boa legislatura municipal. Se não prestavam para nada, não seriam
refeitos; mas supondo que o fossem, quem pode impedir que o povo queira ser mal
governado? É um direito anterior e superior a todas as leis. Assim se perde a
liberdade. Hoje impedem-me de meter um pulha na intendência, amanhã proíbemme
andar com o meu colete de ramagens, depois de amanhã decreta-se o figurino
municipal.
Entretanto (vede as inconseqüências de um espírito reto!), entretanto, foi bom
que se incompatibilizassem os intendentes; não incompatibilizados, era quase certo
que seriam eleitos, um por um, ou todos ao mesmo tempo, e eu não teria o gosto de
ver na intendência dous amigos particulares, um amigo velho, e um amigo moço, um
pelo 2º distrito, outro pelo 3º, e não digo mais para não parecer que os
recomendo. São do primeiro turno.
Mas deixemos a política e voltemo-nos para o acontecimento literário da
semana, que foi a Revista Brasileira. É a terceira que com este título se inicia. O
primeiro número agradou a toda gente que ama este gênero de publicações, e a
aptidão especial do Sr. J. Veríssimo, diretor da Revista, é boa garantia dos que se
lhe seguirem. Citando os nomes de Araripe Júnior, Afonso Arinos, Sílvio Romero,
Medeiros e Albuquerque, Said Ali e Parlagreco, que assinam os trabalhos deste
número, terei dito quanto baste para avaliá-lo. Oxalá que o meio corresponda à obra.
Franceses, ingleses e alemães apoiam as suas publicações desta ordem, e, se
quisermos ficar na América, é suficiente saber que, não hoje, mas há meio século,
em 1840, uma revista para a qual entrou Poe, tinha apenas cinco mil assinantes, os
quais subiram a cinqüenta e cinco mil, ao fim de dous anos. Não paguem o talento,
se querem; mas dêem os cinco mil assinantes à Revista Brasileira. É ainda um dos
melhores modos de imitar New York.
[154]
[10 março]
A autoridade recolheu esta semana à detenção duas feiticeiras e uma
cartomante, levando as ferramentas de ambos os ofícios. Achando-se estes
incluídos no código como delitos, não fez mais que a sua obrigação, ainda que
incompletamente.
A minha questão é outra. As feiticeiras tinham consigo uma cesta de
bugigangas, aves mortas, moedas de dez e vinte réis, uma perna de ceroula velha,
saquinhos contendo feijão, arroz, farinha, sal, açúcar, canjica, penas e cabeças de
frangos. Uma delas, porém, chamada Umbelina, trazia no bolso não menos de
quatrocentos e treze mil-réis. Eis o ponto. Peço a atenção das pessoas cultas.
101
Nestes tempos em que o pão é caro e pequeno, e tudo o mais vai pelo
mesmo fio, um ofício que dá quatrocentos e treze mil-réis pode ser considerado
delito? Parece que não. Gente que precisa comer, e tem que pagar muito pelo
pouco que come, podia roubar ou furtar, infringindo os mandamentos da lei de Deus.
Tais mandamentos não falam de feitiçaria, mas de furto. A feitiçaria, por isso mesmo
que não está entre o homicídio e a impiedade, é delito inventado pelos homens, e os
homens erram. Quando acertam, é preciso examinar a sua afirmação, comparar o
ato ao rendimento, e concluir.
Não se diga que a feitiçaria é ilusão das pessoas crédulas. Sou indigno de
criticar um código, mas deixem-me perguntar ao autor do nosso: Que sabeis disso?
Que é ilusão? Conheceis Poe? Não é jurisconsulto, posto desse um bom juiz
formador da culpa. Ora, Poe escreveu a respeito do povo: "O nariz do povo é a sua
imaginação; por ele é que a gente pode levá-lo, em qualquer tempo, aonde quiser".
O que chamais ilusão é a imaginação do povo, isto é, o seu próprio nariz. Como
fazeis crime a feitiçaria de o puxar até o fim da rua, se nós podemos puxá-lo até o
fim da paróquia, do distrito ou até do mundo?
No nosso ano terrível, vimos esse nariz chegar mais que no fim do mundo,
chegar ao céu. Ninguém fez disso crime, alguns fizeram virtude, e ainda os há
virtuosos e credores. Realmente, prometer com um palmo de papel um palácio de
mármore é o mesmo que dar um verdadeiro amor com dous pés de galinha. A
feiticeira fecha o corpo às moléstias com uma das suas bugigangas, talvez a ceroula
velha e há facultativo (não digo competente) que faz a mesma cousa, levando a
ceroula nova. Que razão há para fazer de um ato malefício, e benefício de outro?
O código, como não crê na feitiçaria, faz dela um crime, mas quem diz ao
código que a feiticeira não é sincera, não crê realmente nas drogas que aplica e nos
bens que espalha? A psicologia do código é curiosa. Para ele, os homens só crêem
aquilo que ele mesmo crê; fora dele, não havendo verdade, não há quem creia
outras verdades — como se a verdade fosse uma só e tivesse trocos miúdos para a
circulação moral dos homens.
Tudo isto, porém, me levaria longe; limitemo-nos ao que fica; e não falemos
da cartomante, em quem se não achou dinheiro, provavelmente porque o tem na
caixa econômica. Relativamente às cartomantes, confesso que não as considero
como as feiticeiras. A cartomante nasceu com a civilização, isto é, com a corrupção,
pela doutrina de Rousseau. A feitiçaria é natural do homem; vede as tribos
primitivas. Que também o é da mulher, confessá-lo-á o leitor. Se não for pessoa
extremamente grave, já há de ter chamado feiticeira a alguma moça. Vão meter na
cadeia uma senhora só porque fecha o corpo alheio com os seus olhos, que valem
mais ainda que cabeças de frangos ou pés de galinha. Ou pés de galinha!
Podia dizer de muitas outras feitiçarias, mas seria necessário indagar o ponto
de semelhança, e não estou de alma inclinada à demonstração. Nem à simples
narração, Deus dos enfermos! Isto vai saindo ao sabor da pena e tinta. E por estar
doente, e com grandes desejos de acudir à feitiçaria, é que me dói (sempre o
interesse pessoal!) a prisão das duas mulheres. Talvez a moeda de dez réis me
desse saúde, não digo uma só moeda, mas um milhão delas.
Sim, eu creio na feitiçaria, como creio nos bichos de Vila Isabel, outra
feitiçaria, sem sacos de feijão. São sistemas. Cada sistema tem os seus meios
curativos e os seus emblemas particulares. Os bichos de Vila Isabel, mansos ou
bravios, fazem ganhar dinheiro depressa, e sem trabalho, tanto como fazem perdê-
lo, igualmente depressa e sem trabalho, tudo sem trabalho, não contando a viagem
de bond, que é longa, vária e alegre. Ganha-se mais do que se perde, e tal é o
102
segredo que esses bons animais trouxeram da natureza, que os homens, com toda
a civilização antiga e moderna, ainda não alcançaram. Não sei se a feitiçaria dos
bichos dá mais dos quatrocentos e treze mil-réis da Umbelina; talvez dê mais, o que
prova que é melhor.
Além dessas, temos muitas outras feitiçarias; mas já disse, não vou adiante. A
pena cai-me. Não trato sequer da política, aliás assunto que dá saúde. Há quem
creia que ela é uma bela feitiçaria, e não falta quem acrescente que nesta, como na
outra, o povo não pode nem anda desnarigado; é horrendo e incômodo.
Também não cito o júri, instituição feiticeira, dizem muitos. Ser-me-ia preciso
examinar este ponto longamente, profundamente, independentemente, e não há em
mim agora profundeza. nem independência, nem me sobra tempo para tais estudos.
Eu aprecio esta instituição que exprime a grande idéia do julgamento pelos pares;
examina-se o fato sem prevenção de magistrados, nem câmara própria de ofício,
sem nenhuma atenção à pena. O crime existe? Existe; eis tudo. Não existe; eis
ainda mais. Depois, é para mim instituição velha, e eu gosto particularmente dos
meus velhos sapatos; os novos apertam os pés, enquanto que um bom par de
sapatos folgados é como os dos próprios anjos guerreiros, Miguel, etc., etc., etc.
[155]
[24 março]
Divino equinócio, nunca me hei de esquecer que te devo a idéia que vou
comunicar aos meus concidadãos. Antes de ti, nos três primeiros dias hórridos da
semana, não é possível que tal idéia me brotasse do cérebro. Depois, também não.
Conheço-me, leitor. Há quem pense, transpirando; eu, quando transpiro, não penso.
Deixo essa função ao meu criado, que, do princípio ao fim do ano pensa sempre,
embora seja o contrário do que me é agradável; por exemplo, escova-me o chapéu
às avessas. Naturalmente, ralho.
— Mas, patrão, eu pensava...
— José Rodrigues, brado-lhe exasperado; deixa de pensar alguma vez na
vida.
— Há de perdoar, mas o pensamento é influência que vem dos astros;
ninguém pode ir contra eles.
— Ouço, calo-me e vou andando. Nos dias que correm, ter um criado que
pense barato, é tão rara fruta, que não vale a pena discutir com ele a origem das
idéias. Antes mudar de chapéu que de ordenado.
A idéia que tive quinta-feira, em parte se pode comparar ao chapéu escovado
de encontro ao pêlo; mas será culpa da escova ou do chapéu? Cuido que do
chapéu. O dia correu fresco, a noite fresquíssima. As estrelas fulguravam
extraordinariamente, e se o meu criado tem razão, foram elas que me influíram o
pensamento. Saí para a rua. Havia próximo umas bodas. A casa iluminada chamava
a atenção pública, muita gente fora, moças principalmente, que não perdem festas
daquelas, e correm à igreja, às portas, à rua, para ver um noivado. Qualquer pessoa
de mediano espírito cuidará que era este assunto que me preocupava. Não, não era;
cogitava eleitoralmente, ao passo que rompia os grupos, perguntava a mim mesmo:
Por que não faremos uma reforma constitucional?
Fala-se muito em eleições violentas e corruptas, a bico de pena, a bacamarte,
a faca e a pau. Nenhuma dessas palavras é nova aos meus ouvidos. Conheço-as
103
desde a infância. Crespas são deveras; na entrada do próximo século é força mudar
de método ou de nomenclatura. Ou o mesmo sistema com outros nomes, ou estes
nomes com diversa aplicação. Como em todas as cousas, há uma parte verdadeira
na acusação, e outra falsa, mas eu não sei onde uma acaba, nem onde outra
começa. Pelo que respeita à fraude, sem negar os seus méritos e proveitos, acho
que algumas vezes podem dar canseiras inúteis. Quanto à violência, sou da família
de Stendhal, que escrevia com o coração nas mãos: Mon seul défaut est de ne pas
aimer le sang.
Não amando o sangue, temendo as incertezas da fraude, e julgando as
eleições necessárias, como achar um modo de as fazer sem nenhum desses riscos?
Formulei então um plano comparável ao gesto do meu criado, quando escova o
chapéu às avessas. Suprimo as eleições. Mas como farei as eleições, suprimindoas?
Faço-as conservando-as. A idéia não é clara; lede-me devagar.
Sabeis muito bem o que eram os pelouros antigamente. Eram umas bolas de
cera, onde se guardavam, escritos em papel, os nomes dos candidatos à vereação;
abriam-se as bolas no fim do prazo da lei, e os nomes que saíam, eram os
escolhidos para a magistratura municipal. Pois este processo do antigo regímen é o
que me parece capaz de substituir o atual mecanismo, desenvolvido, adequado ao
número de eleitos. Um grave tribunal ficará incumbido de escrever os nomes, não de
todos os cidadãos que tiverem condições de elegibilidade, mas só daqueles que,
três ou seis meses antes, se declararem candidatos. Outro tribunal terá a seu cargo
os pelouros, ler os nomes, escrevê-los, atestá-los, proclamá-los e publicá-los. Esta é
a metade da minha idéia.
A outra metade é o seu natural complemento. Com efeito, restaurar os
pelouros, sem mais nada, seria desinteressar o cidadão da escolha dos magistrados
e universalizar a abstenção. Quem quereria sair de casa para assistir à estéril
cerimônia da leitura de nomes? Poucos, decerto, pouquíssimos. Acrescentai a
gravidade o tribunal e teremos um espetáculo próprio para fazer dormir. Não tardaria
que um partido se organizasse pedindo o antigo processo, com todos os seus riscos
e perigos, far-se-ia provavelmente uma revolução, correria muito sangue, e este
aparelho, restaurado para eliminar o bacamarte, acabaria ao som do bacamarte.
Eis o complemento. O meneio das palavras será nem mais nem menos o dos
bichos do Jardim Zoológico. O cidadão, em vez de votar, aposta. Em vez de apostar
no gato ou no leão, aposta no Alves ou no Azambuja. O Azambuja dá, o Alves não
dá, distribuem-se os dividendos aos devotos do Azambuja. Para o ano dará o Alves,
se não der o Meireles.
Nem há razão para não amiudar as eleições, fazê-las algumas vezes
semestrais, bimestrais, mensais, quinzenais, e, tal seja a pouquidade do cargo,
semanais. O espírito público ficará deslocado; a opinião será regulada pelos lucros,
e dir-se-á que os princípios de um partido nos últimos dous anos têm sido mais
favorecidos pela Fortuna que os princípios adversos. Que mal há nisso? Os antigos
não se regeram pela Fortuna? Gregos e romanos, homens que valeram alguma
cousa, confiavam a essa deusa o governo da República. Um deles (não sei qual)
dizia que três poderes governam este mundo: Prudência, Força e Fortuna. Não
podendo eliminar esta, regulemo-la.
O interesse público será enorme. Haverá palpites, pedir-se-ão palpites; far-se-
á até, se for preciso, uma legião de adivinhos, incumbidos de segredar aos cidadãos
os nomes prováveis ou certos. Haverá folhas especiais, bonds especiais, botequins
especiais, onde o cidadão receba um refresco e um palpite, deixando dous ou três
mil-réis. Esta quantia parece ser mais, e é menos que os mil e duzentos homens que
104
acabam de morrer nas ruas de Lima. Sendo as pequenas revoluções, em
substância, uma questão eleitoral, segue-se que o meu plano zoológico é preferível
ao sistema de suspender a matança de tanta gente, por intervenção diplomática. A
zoologia exclui a diplomacia e não mata ninguém. Mon seul défaut, etc.
[156]
[31 março]
CONTO-DO-VIGÁRIO
De quando em quando aparece-nos o conto-do-vigário. Tivemo-lo esta
semana, bem contado, bem ouvido, bem vendido, porque os autores da composição
puderam receber integralmente os lucros do editor.
O conto-do-vigário é o mais antigo gênero de ficção que se conhece. A rigor,
pode crer-se que o discurso da serpente, induzindo Eva a comer o fruto proibido, foi
o texto primitivo do conto. Mas, se há dúvida sobre isso, não a pode haver quanto ao
caso de Jacó e seu sogro. Sabe-se que Jacó propôs a Labão que lhe desse todos
os filhos das cabras que nascessem malhados. Labão concordou certo de que
muitos trariam uma só cor; mas Jacó, que tinha plano feito, pegou de umas varas de
plátano, raspou-as em parte, deixando-as assim brancas e verdes a um tempo, e,
havendo-as posto nos tanques, as cabras concebiam com os olhos nas varas, e os
filhos saíam malhados. A boa fé de Labão foi assim embaçada pela finura do genro;
mas não sei que há na alma humana que Labão é que faz sorrir, ao passo que Jacó
passa por um varão arguto e hábil.
O nosso Labão desta semana foi um honesto fazendeiro do Chiaque, estando
em uma rua desta cidade, viu aparecer um homem, que lhe perguntou por outra rua.
Nem o fazendeiro, nem o outro desconhecido que ali apareceu também, tinha notícia
da rua indicada.
Grande aflição do primeiro homem recentemente chegado da Bahia com vinte
contos de réis de um tio dele, já falecido, que deixar dezesseis para os náufragos da
Terceira e quatro para a pessoa que se encarregasse da entrega.
Quem é que, nestes ou em quaisquer tempos, perderia tão boa ocasião de
ganhar depressa e sem cansaço quatro contos de réis? eu não, nem o leitor, nem o
fazendeiro do Chiador, que se ofereceu ao desconhecido para ir com ele depositar
na Casa Leitão, Largo de Santa Rita, os dezesseis contos, ficando-lhe os quatro de
remuneração.
— Não é preciso que o acompanhe, respondeu o desconhecido; basta que o
senhor leve o dinheiro, mas primeiro é melhor juntar a este o que traz aí consigo.
— Sim, senhor, anuiu o fazendeiro. Sacou do bolso o dinheiro que tinha (um
conto e tanto), entregou-o ao desconhecido, e viu perfeitamente que este o juntou ao
maço dos vinte; ação análoga à das varas de Jacó. O fazendeiro pegou do maço
todo, despediu-se e guiou para o Largo de Santa Rita. Um homem de má fé teria
ficado com o dinheiro, sem curar dos náufragos da Terceira, nem da palavra dada.
Em vez disso, que seria mais que deslealdade, o portador chegou à Casa do Leitão,
e tratou de dar os dezesseis contos, ficando com os quatro de recompensa. Foi
então que viu que todas as cabras eram malhadas. O seu próprio dinheiro, que era
de uma só cor, como as ovelhas de Labão, tinha a pele variegada dos jornais velhos
do costume.
105
A prova de que o primeiro movimento não é bom, é que o fazendeiro do
Chiador correu logo à polícia; é o que fazem todos ... Mas a polícia, não podendo ir à
cata de uma sombra, nem adivinhar a cara e o nome de pessoas hábeis em fugir,
como os heróis dos melodramas, não fez mais que distribuir o segundo milheiro do
conto-do-vigário, mandando a notícia aos jornais. Eu, se algum dia os contistas me
pegassem, trataria antes de recolher os exemplares da primeira edição.
Aos sapientes e pacientes recomendo a bela monografia que podem escrever
estudando o conto-do-vigário pelos séculos atrás, as suas modificações segundo o
tempo, a raça e o clima. A obra, para ser completa, deve ser imensa. É seguramente
maior o número das tragédias, tanta é a gente que se tem estripado, esfaqueado,
degolado, queimado, enforcado, debaixo deste belo sol, desde as batalhas de Josué
até aos combates das ruas de Lima, onde as autoridades sanitárias, segundo
telegramas de ontem, esforçam-se grandemente por sanear a cidade "empestada
pelos cadáveres que ficam apodrecidos ao ar livre". Lembrai-vos que eram mais de
mil, e imaginai que o detestável fedor de gente morta não custa a vitória de um
princípio. O conto é menos numeroso, e, seguramente, menos sublime; mas ainda
assim ocupa lugar eminente nas obras de ficção. Nem é o tamanho que dá primazia
à obra, é a feitura dela. O conto-do-vigário não é propriamente o de Voltaire,
Boccaccio ou Andersen, mas é conto, um conto especial, tão célebre como os
outros, e mais lucrativo que nenhum.
[157]
[14 abril]
Nada há pior que oscilar entre dous assuntos. A semana santa chama-me
para as cousas sagradas, mas uma idéia que me veio do Amazonas chama-me para
as profanas, e eu fico sem saber para onde me volte primeiro. Estou entre Jerusalém
e Manaus; posso começar pela cidade mais remota, e ir depois à mais próxima;
posso também fazer o contrário.
Havia um meio de combiná-las: era meter-me em uma das montarias ou
igarités do Amazonas, com o meu amigo José Veríssimo, e deixar-me ir com ele, rio
abaixo ou acima, ou pelos confluentes, à pesca do pirarucu, do peixe-boi, da
tartaruga ou da infinidade de peixes que há no grande rio e na costa marítima. Não
podia ter melhor companheiro; pitoresco e exato, erudito e imaginoso, dá-nos na
monografia que acaba de publicar, sob o título A Pesca na Amazônia, um excelente
livro para consulta e deleite. Como se trata do pescado amazônico e acabamos a
semana santa, iria eu assim a Jerusalém e a Manaus, sem sair do meu gabinete.
Mas o bom cristão acharia que não basta pescar, como S. Pedro, para ser bom
cristão, e os amigos de idéias novas diriam que não há idéia nem novidade em
moquear o peixe à maneira dos habitantes de Óbidos ou Rio Branco. Força é ir a
Manaus e a Jerusalém.
Já que estou no Amazonas, começo por Manaus. As folhas chegadas ontem
referem que naquela capital a Câmara dos Deputados dividiu-se em duas. Essa
dualidade de câmaras de deputados e de senados tende a repetir-se, a multiplicarse,
a fixar-se nos vários Estados deste país. Não são fenômenos passageiros; são
situações novas, idênticas, perduráveis. Os olhos de pouca vista alcançam nisto um
defeito e um mal, e não falta quem peça o conserto de um e a extirpação de outro.
Não será consertar unia lei natural, isto é, violá-la? Não será extirpar uma vegetação
espontânea, isto é, abrir caminho a outra?
106
Geralmente, as oposições não gostam dos governos. Partido vencido
contesta a eleição do vencedor, e partido vencedor é simultaneamente vencido, e
vice-versa. Tentam-se acordos, dividindo os deputados; mas ninguém aceita
minorias. No antigo regímen iniciou-se uma representação de minorias, para dar nas
câmaras um recanto ao partido que estava de baixo. Não pegou bem — ou porque a
porcentagem era pequena — ou porque a planta não tinha força bastante. Continuou
praticamente o sistema da lavra única.
Os fatos recentes vão revelando que estamos em vésperas de um direito
novo. Sim, leitor atento, é certo que a luta nasce das rivalidades, as rivalidades da
posse e a posse da unidade de governo e de representação. Se, em vez de uma
câmara, tivermos duas, dous senados em vez de um, tudo coroado por duas
administrações, ambos os partidos trabalharão para o benefício geral. Não me digam
que tal governo não existe nos livros, nem em parte alguma. Sócrates — para não
citar Taine e consertes — aconselhava ao legislador que, quando houvesse de
legislar tivesse em vista a terra e os homens. Ora, os homens aqui amam o governo
e a tribuna, gostam de propor, votar, discutir, atacar, defender e os demais verbos, e
o partido que não folheia a gramática política acha naturalmente que já não há
sintaxe; ao contrário, o que tem a gramática na mão julga a linguagem alheia
obsoleta ou corrupta. O que estamos vendo é a impressão em dous exemplares da
mesma gramática. Virão breve os tempos messiânicos — melhores ainda que os de
Israel, porque lá os lobos deviam dormir com os cordeiros, mas aqui os cordeiros
dormirão com os cordeiros, à falta de lobos.
Enquanto não vêm esses tempos messiânicos, vamo-nos contentando com
os da Escritura, e com a semana santa que passou. Assim passo eu de Manaus a
Jerusalém.
Há meia dúzia de assuntos que não envelhecem nunca; mas há um só em
que se pode ser banal, sem parecê-lo: é a tragédia do Gólgota. Tão divina é ela que
a simples repetição é novidade. Essa cousa eterna e sublime não cansa de ser
sublime e eterna. Os séculos passam sem esgotá-la, as línguas sem confundi-la, os
homens sem corrompê-la. "O Evangelho fala ao meu coração" escrevia Rousseau; é
bom que cada homem sinta este pedaço de Rousseau em si mesmo...
Entretanto, se eu adoro o belo Sermão da Montanha, as parábolas de Jesus,
os duros lances da semana divina, desde a entrada em Jerusalém até à morte no
Calvário, e as mulheres que se abraçaram à cruz, e cuja distinção foi tão finamente
feita por Lulu Sênior, quinta-feira, se tudo isso me faz sentir e pasmar, ainda me fica
espaço na alma para ver e pasmar de outras cousas. Perdoe-me a grandeza do
assunto uma reminiscência, aliás incompleta, pois não me lembra o nome do
moralista, mas foi um moralista que disse ser a fidelidade dos namorados uma
espécie de infidelidade relativa, que vai dos olhos aos cabelos, dos cabelos à boca,
da boca aos braços, e assim passeia por todas as belezas da pessoa amada.
Espiritualizemos a observação, e apliquemo-la ao Evangelho.
Assim é que, no meio das sublimidades do livro santo, há lances que me
prendem a alma e despertam a atenção dos meus olhos terrenos. Não é amá-lo
menos; é amá-lo em certas páginas. Grande é a morte de Jesus, divina é a sua
paciência, infinito é o seu perdão. A fraqueza de Pilatos é enorme, a ferocidade dos
algozes inexcedível...
Mas, não sendo primoroso o último ato dos discípulos, não deixa de ser
instrutivo. Um, por trinta dinheiros, vendeu o Mestre; os outros, no momento da
prisão, desapareceram, ninguém mais os viu. Um só deles, sem se declarar, meteuse
entre a multidão, e penetrou no pretório entre os soldados. Três vezes lhe
107
perguntaram se também não andava com os discípulos de Cristo; respondeu que
não, que nem o conhecia, e, à terceira vez, cantando o galo, lembrou-se da profecia
de Cristo, e chorou. São Mateus, contando o ato deste discípulo, diz que ele entrara
no pretório, com os soldados, "a ver em que parava o caso". Hoje diríamos, se o
Evangelho fosse de hoje, "a ver em que paravam as modas". Tal é a mudança das
línguas e dos tempos!
Este versículo do evangelista não vale o Sermão da Montanha, mas, usando
da teoria do moralista a que há pouco aludi, esta é a pontinha da orelha do
Evangelho.
[158]
[2 junho]
Quando me deram notícia da morte de Saldanha Marinho, veio-me à
lembrança aquele dia de julho de 1868, em que a Câmara liberal viu entrar pela
porta o Partido Conservador. Há vinte e sete anos; mas os acontecimentos foram
tais e tantos, depois disso, que parece muito mais.
Os liberais voltaram mais tarde, tornaram a cair e a voltar, até que se foram
de vez, como os conservadores, e com uns e outros o Império.
Jovem leitor, não sei se acabavas de nascer ou se andavas ainda na escola.
Dado que sim, ouvirás falar daquele dia de julho, como os rapazes de então ouviam
falar da Maioridade ou do fim da república de Piratinim, que, foi a pacificação do Sul,
há meio século.
Certo não ignoras o que eram as recepções de ministérios ou de partidos,
viste muitas delas, e a última há seis anos. Hás de lembrar-te que a Câmara enchiase
de gente, galerias, tribunas, recinto. Na última recepção, em 1889, ouvi que
alguns espectadores, cansados de estar em pé, sentaram-se nas próprias cadeiras
dos deputados. Creio que antigamente não vinha muita gente ao recinto, mas a
população da cidade era muito menor. A estatística é a chave dos costumes.
Demais, não esqueças a ternura do nosso coração, a cultura da amizade, o gosto de
servir, a necessidade de mostrar alguma influência, e por fim a indignação, que leva
um grande número de pessoas a entrar com os ombros. Compreende-se, aliás, a
curiosidade pública. O acontecimento em si mesmo era sempre interessante; depois,
a certeza de que se não ia ouvir falar de impostos, dava ânimo de penetrar no
recinto sagrado. Acrescentai que nós amamos a esgrima da palavra, e aplaudimos
com prazer os golpes certos e bonitos.
Também houve aplausos em 1868, como em 1889, como nas demais
sessões interessantes, ainda que fossem de simples interpelações aos ministros.
"As galerias não podem dar sinais de aprovação ou reprovação", diziam
sonolentamente os presidentes da Câmara. A primeira vez que ouvi esta
advertência, fiquei um pouco admirado; supunha que o presidente presidia, e que o
mais era uma questão de polícia interior; mas explicaram-me que a mesa é que era
a comissão de polícia. Compreendi então, e notei uma virtude da galeria, é que
aplaudia sempre e não pateava nunca.
Ouço ainda os aplausos de 1868, estrepitosos, sinceros e unânimes. Os
ministros entraram, com Itaboraí à frente, e foram ocupar as cadeiras onde dias
antes estavam os ministros 1iberais. Um destes ergueu-se, e em poucas palavras
explicou a saída do gabinete. Não me esqueceu ainda a impressão que deixou em
todos a famosa declaração de que a escolha de Torres Homem não era acertada.
Zacarias acabava de repeti-la no Senado. Geralmente, as dissoluções dos gabinetes
108
eram explicadas por frases vagas, e porventura nem sempre verídicas. Daquela vez
conheceu-se que a explicação era verdadeira. Disse-se então que a palavra fora
buscada para dar ao gabinete as honras da saída. Alguém ouviu por esse tempo, ao
próprio Zacarias, naquela grande chácara de Catumbi, que "desde a quaresma
sentia que a queda era inevitável". Grande atleta, quis cair com graça.
ltaboraí levantou-se e pediu os orçamentos. Foi então que desabou uma
tempestade de vozes duras e vibrantes. Posto soubesse que se despedia a si
mesma, a Câmara votou uma moção de despedida ao ministério conservador. Um
só espírito supôs que a moção podia desfazer o que estava feito: não me lembra o
nome, talvez não soubesse ler em política, e daí essa credulidade natural, que se
manifestou por um aparte cheio de esperanças.
Uma das vozes duras e vibrantes foi a de Saldanha Marinho. Escolhido
senador pelo Ceará, nessa ocasião, bastava-lhe pouco para entrar no Senado —
para esperá-lo, ao menos. O silêncio era o conselho do sábio. Diz um provérbio
árabe que "da árvore do silêncio pende o seu fruto, a tranqüilidade". Diz mal ou diz
pouco este provérbio, porque a prosperidade é também um fruto do silêncio.
Saldanha Marinho podia calar-se e votar — votar contra o ministério, incluir o nome
entre os que o recebiam na ponta da lança, e até menos. Crises dessas alcançam as
pessoas. Também se brilha pela ausência. O senador escolhido deitou fora até a
esperança.. Ergueu-se, e com poucas palavras atacou o ministério e a própria coroa;
lembrou 1848, a que chamou estelionato, e deixou-se cair com os amigos. O Senado
anulou a eleição, e Saldanha Marinho não tornou na lista tríplice.
Caiu com os amigos. A ação foi digna e pode dizer-se rara. Para ir ao
Senado, não faltavam seges, nem animais seguros. Saldanha ficou a pé. Não lhe
custava nada ser firme; desde que, em 1860, tornara à política pelo jornalismo,
nunca soube ser outra cousa, 1860! Quem se não lembra da célebre eleição desse
ano, em que Otaviano, Saldanha e Otôni derribaram as portas da Câmara dos
Deputados à força de pena e de palavra? O lencinho branco de Otôni era a bandeira
dessa rebelião, que pôs na linha dos suplentes de eleitores os mais ilustres chefes
conservadores ... Ó tempos idos! Vencidos e vencedores vão todos entrando na
história. Alguns restam ainda, encalvecidos ou encanecidos pelo tempo, e dous ou
três cingidos de honras merecidas. O que ora se foi, separara-se há muito dos
companheiros, sem perder-lhes a estima e a consideração. Mudara de campo, se é
que se não restituiu ao que era por natureza.
[159]
[16 junho]
O AUTOR DE SI MESMO
Guimarães chama-se ele; ela Cristina. Tinham um filho, a quem puseram o
nome de Abílio. Cansados de lhe dar maus tratos, pegaram do filho, meteram-no
dentro de um caixão e foram pô-lo em uma estrebaria, onde o pequeno passou três
dias, sem comer nem beber, coberto de chagas, recebendo bicadas de galinhas, até
que veio a falecer. Contava dous anos de idade. Sucedeu este caso em Porto
Alegre, segundo as últimas folhas, que acrescentam terem sido os pais recolhidos à
cadeia, e aberto o inquérito. A dor do pequeno foi naturalmente grandíssima, não só
pela tenra idade, como porque bicada de galinha dói muito, mormente em cima de
chaga aberta. Tudo isto, com fome e sede, fê-lo passar "um mau quarto de hora",
como dizem os franceses, mas um quarto de hora de três dias; donde se pode inferir
109
que o organismo do menino Abílio era apropriado aos tormentos. Se chegasse a
homem, dava um lutador resistente; mas a prova de que não iria até lá, é que
morreu.
Se não fosse Schopenhauer, é provável que eu não tratasse deste caso
diminuto, simples notícia de gazetilha. Mas há na principal das obras daquele filósofo
um capítulo destinado a explicar as causas transcendentes do amor. Ele, que não
era modesto, afirma que esse estudo é uma pérola. A explicação é que dous
namorados não se escolhem um ao outro pelas causas individuais que presumem,
mas porque um ser, que só pode vir deles, os incita e conjuga. Apliquemos esta
teoria ao caso Abílio.
Um dia Guimarães viu Cristina, e Cristina viu Guimarães. Os olhos de um e de
outro trocaram-se, e o coração de ambos bateu fortemente. Guimarães achou em
Cristina uma graça particular, alguma cousa que nenhuma outra mulher possuía.
Cristina gostou da figura de Guimarães, reconhecendo que entre todos os homens
era um homem único. E cada um disse consigo: "Bom consorte para mim!" O resto
foi o namoro mais ou menos longo, o pedido da mão da moça, as formalidades, as
bodas. Se havia sol ou chuva, quando eles casaram, não sei; mas, suponho um céu
escuro e o vento minuano, valeram tanto como a mais fresca das brisas debaixo de
um céu claro. Bem-aventurados os que se possuem, porque eles possuirão a terra.
Assim pensaram eles. Mas o autor de tudo, segundo o nosso filósofo, foi unicamente
Abílio. O menino, que ainda não era menino nem nada, disse consigo, logo que os
dous se encontraram: "Guimarães há de ser meu pai e Cristina há de ser minha
mãe; é preciso que nasça deles, levando comigo, em resumo, as qualidades que
estão separadas nos dous". As entrevistas dos namorados era o futuro Abílio que as
preparava; se eram difíceis, ele dava coragem a Guimarães para afrontar os riscos,
e paciência a Cristina para esperá-lo. As cartas eram ditadas por ele. Abílio andava
no pensamento de ambos, mascarado com o rosto dela, quando estava no dele, e
com o dele, se era no pensamento dela. E fazia isso a um tempo, como pessoa que,
não tendo figura própria, não sendo mais que uma idéia específica, podia viver
inteiro em dous lugares, sem quebra da identidade nem da integridade. Falava nos
sonhos de Cristina com a voz de Guimarães, e nos de Guimarães com a de Cristina,
e ambos sentiam que nenhuma outra voz era tão doce, tão pura, tão deleitosa.
Enfim, nasceu Abílio. Não contam as folhas cousa alguma acerca dos
primeiros dias daquele menino. Podiam ser bons. Há dias bons debaixo do sol.
Também não se sabe quando começaram os castigos, — refiro-me aos castigos
duros, os que abriram as primeiras chagas, não as pancadinhas do princípio, visto
que todas as cousas têm um princípio, e muito provável é que nos primeiros tempos
da criança os golpes fossem aplicados diminutivamente. Se chorava, é porque a
lágrima é o suco da dor. Demais, é livre — mais livre ainda nas crianças que
mamam, que nos homens que não mamam.
Chagado, encaixotado, foi levado à estrebaria, onde, por um desconcerto das
cousas humanas, em vez de cavalos, havia galinhas. Sabeis já que estas,
mariscando, comiam ou arrancavam somente pedaços da carne de Abílio. Aí,
nesses três dias, podemos imaginar que Abílio, inclinado aos monólogos, recitasse
este outro de sua invenção: "Quem mandou aqueles dous casarem-se para me
trazerem a este mundo? Estava tão sossegado, tão fora dele, que bem podiam
fazer-me o pequeno favor de me deixarem lá. Que mal lhes fiz eu antes, se não era
nascido? Que banquete é este em que o convidado é que é comido?".
Nesse ponto do discurso é que o filósofo de Dantzig, se fosse vivo e estivesse
em Porto Alegre, bradaria com a sua velha irritação: "Cala a boca, Abílio. Tu não só
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ignoras a verdade, mas até esqueces o passado. Que culpa podem ter essas duas
criaturas humanas, se tu mesmo é que os ligaste? Não te lembras que, quando
Guimarães passava e olhava para Cristina, e Cristina para ele cada um cuidando de
si, tu é que os fizeste atraídos e namorados? Foi a tua ânsia de vir a este mundo
que os ligou sob a forma de paixão e de escolha pessoal. Eles cuidaram fazer o seu
negócio, e fizeram o teu. Se te saiu mal o negócio, a culpa não é deles, mas tua, e
não sei se tua somente ... Sobre isto, é melhor que aproveites o tempo que ainda te
sobrar das galinhas, para ler o trecho da minha grande obra, em que explico as
cousas pelo miúdo. É uma pérola. Está no tomo II, livro IV, capítulo XLIV... Anda,
Abílio, a verdade é verdade — ainda à hora da morte. Não creias nos professores de
filosofia, nem na peste de Hegel ...
E Abílio, entre duas bicadas:
— Será verdade o que dizes, Artur; mas é também verdade que, antes de cá
vir, não me doía nada, e se eu soubesse que teria de acabar assim, às mãos dos
meus próprios autores, não teria vindo cá. Ui! Ai!
[160]
[23 junho]
Não vou ao extremo de atribuir à Fênix Dramática qualquer intenção filosófica
ou simplesmente histórica. Não; a Fênix, como todos os teatros, publicou um
anúncio. Mas o que é que não há dentro de um anúncio! Durante muitos anos
acreditei que as "moças distintas, de boa educação" que pedem pelos jornais "a
proteção de um senhor viúvo", eram vítimas de ódios de família ou da fatalidade,
que buscavam um resto de sentimento medieval neste século de guarda-chuvas.
Como supor que eram damas nobremente desocupadas que procuravam emprego
honesto? Um anúncio é um mundo de mistério!
O que a Fênix mandou inserir nos jornais não traz mistérios. É a lista do
espetáculo composto de várias partes, das quais duas especialmente fazem assunto
desta meditação. A primeiro é uma comédia: Artur ou Dezesseis Anos Depois.
Quando li este título tive um sobressalto; depois, não sei que fada pegou em mim,
pelos cabelos, e levou-me através dos anos até aos meus tempos de menino. Caí
em cheio entre os primeiros bonecos que vi na minha vida: eram de pau e tinham
graça. Santos bonecos, o bonecos do meu coração, éreis sublimes, faláveis com
eloqüência e sintaxe, conquanto fosse eu que falasse por vós; mas criança tem o
mau vezo de crer que tudo o que diz é perfeito. Éreis sinceros; não conheceis isto
que os Franceses chamam fumisterie, e que, pela nossa língua poderíamos dizer
(aproximadamente) debique. Não, bonecos da minha infância, vós não me
debicáveis; nem com a sintaxe, nem sem ela.
Nesse tempo não tinha visto a comédia, que era pelo seu verdadeiro gênero,
um vaudeville. Também não a vi depois, nem agora. Sei que antigamente se
representou no Teatro de S. Pedro de Alcântara e no de S. Francisco. A data da
composição está no próprio subtítulo, moda que se perdeu, e na denominação dos
atos: 1º O Batismo do Barco; 2º O Amor de Mãe. Ignoro os nomes dos
artistas que a representavam. Podia ser a Jesuína Montani, que se fizera célebre na
Graça de Deus, ou a Leonor Orsat, afamada na Vendedora de Perus, títulos que
trazem a mesma data. e o mesmo esquecimento. Em volta da peça agora
anunciada, vi aparecer uma infinidade de sombras, como D. João via surgir as das
111
mulheres que o tinham amado e perdido. As velhas reminiscências têm a
particularidade de trazerem a frescura antiga; eu fiquei calado e cabisbaixo.
Pedro Luís, o epigramático forrado de poeta, contou-me um dia que, estando
em Roma, certa noite, ouviu tocar um realejo e não pôde suster as lágrimas. Que os
manés de meu amigo me perdoem esta revelação!! Aquele espírito fino e sarcástico
chorou ao som de um banal instrumento. Certo, ele não estava ao pé das ruínas da
antiga Roma, pois que tais ruínas pediam antes a música do silêncio. Havia de ser
em alguma rua ou hospedaria; mas demos que fossem ruínas. A linguagem natural
delas é a da caducidade das cousas; nada mais fácil, em dado caso, que achar
nelas um pouco de nós mesmos. Revia ele os dias da meninice, as festas da roça e
da cidade? Foi então que algum tocador perdido na noite entrou a moer a música do
seu realejo; era a própria voz dos tempos que dava alma às reminiscências antigas;
daí algumas lágrimas.
Eu, não por ser mais forte, mas talvez por não estar em Roma, não chorei
quando li o título de Artur ou Dezesseis Anos Depois. Nem foi porque este outro
realejo me trouxesse lembranças perdidas ou que eu julgava tais. Também eu vi, na
infância, tocadores que paravam na rua, moíam a música e estendiam o chapéu
para receberem os dous vinténs de espórtula. Cuido que ainda hoje fazem o mesmo;
os meninos é que são outros, e os dous vinténs subiram a tostão. Deus meu! eu
bem sei que um trecho de música de realejo não vale os Huguenotes como aquela
comédia pacata e sentimental não valia o Filho de Giboyer nem o Pai Pródigo, que
nós íamos ver, tempos depois, no Ginásio Dramático — o teatro que há pouco
chamei S. Francisco, e hoje é, se me não engano, uma loja de fazendas.
Agora a segunda parte do anúncio da Fênix, que parece dar ao todo um ar de
paralelo e compensação. A segunda parte é uma cançoneta, com este título
sugestivo: Ora Toma, Mariquinhas! Não posso julgar da cançoneta, porque não a
ouvi nunca; mas, se, como dizia Garret, há títulos que dispensam livros, este
dispensa as coplas; basta-lhe ser o que é para se lhe adivinhar um texto picante,
brejeiro, em fraldas de camisa. Não são dezesseis anos como na comédia, mas
trinta anos ou mais, que decorrem daquele Artur a esta Mariquinhas. Há uma história
entre as duas datas, história gaiata, ou não, segundo a idade e os temperamentos.
Daí a significação do anúncio e a sua inconsciente filosofia.
Os que tiverem ido ao teatro, levados uns pela velha comédia, outros pela
cançoneta nova, saíram de lá satisfeitos, a seu modo. Também pode suceder — e
isto será a glória do anúncio — que os da cançoneta não achassem inteiramente
insípido o sabor da peça velha, e que os da peça velha sentissem o vinho das
coplas subir-lhes à cabeça. Esses foram pela rua abaixo, de braço dado; enquanto o
moço gargareja com a ingenuidade de Artur a rouquidão da cantiga nova, o velho
recompõe um pouco da vida exausta com dous trinados da cançoneta.
A cançoneta, como gênero, nasceu no antigo Alcazar. A princípio as cantoras
levantavam uma pontinha de nada do vestido, isso mesmo com gesto encolhido e
delicado. Anos depois, nos grandes cancãs, mandavam a ponta do pé aos narizes
dos cantores. O gesto era feio, mas haviam-se com tal arte que não se
descompunham, posto se lhes vissem as saias e as meias — meias lavadas. Enfin
Malherbe vint...
[161]
[7 julho]
112
Os mortos não vão tão depressa, como quer o adágio; mas que eles a
governam os vivos, é cousa dita, sabida e certa. Não me cabe narrar o que esta
cidade viu ontem, por ocasião de ser conduzido ao cemitério o cadáver de Floriano
Peixoto, nem o que vira antes, ao ser ele transportado para a Cruz dos Militares.
Quando, há sete dias, falei de Saldanha da Gama e dos funerais de Coriolano que
lhe deram, estava longe de supor que poucas horas depois, teríamos a notícia do
óbito do marechal. O destino pôs assim, à curta distância, uma de outra, a morte de
um dos chefes da rebelião de 6 de setembro e a do chefe de Estado que
tenazmente a combateu e debelou.
A história é isto. Todos somos os fios do tecido que a mão do tecelão vai
compondo, para servir aos olhos vindouros, com os seus vários aspectos morais e
políticos. Assim como os há sólidos e brilhantes, assim também os há frouxos e
desmaiados, não contando a multidão deles que se perde nas cores de que é feito o
fundo do quadro. O marechal Floriano era dos fortes. Um de seus mais ilustres
amigos e companheiros, Quintino Bocaiúva, definiu na tribuna do Senado, com a
eloqüência que lhe é própria, a natureza, a situação e o papel do finado vicepresidente.
Bocaiúva. que tanta parte teve nos sucessos de 15 de novembro, é um
dos remanescentes daquele grupo de homens, alguns dos quais a morte levou,
outros se acham disperses pela política, restando os que ainda une o mesmo
pensamento de iniciação. A verdade é que temos vivido muito nestes seis anos,
mais que rios que decorreram do combate de Aquidabã à revolução de 15 de
novembro, vida agitada e rápida, tão depressa quão cheia de sucessos.
Mas, como digo, os mortos não vão tão depressa que se percam todos de nossa
vista. Ontem era um ex-chefe de Estado que a população conduzia ou via conduzir
ao último jazigo. Hoje comemora-se o centenário de um poeta. Digo mal. Nem se
comemora, nem é ainda o centenário. Este é no fim do mês; o que se faz hoje,
segundo li nas folhas, é convidar os homens de letras para tratarem dos meios de
celebrar o primeiro centenário da morte de José Basílio da Gama. Não conheço o
pio brasileiro que tomou a si essa iniciativa. Não se vive só de política. As musas
também nutrem a alma nacional. Foi o nosso Gonzaga que escreveu com grande
acerto que as pirâmides e os obeliscos arrasam-se, mas que as Ilíadas e as Eneidas
ficam.
José Basílio não escreveu Eneidas nem Ilíadas, mas o Uruguai é obra de um
grande e doce poeta, precursor de Gonçalves Dias. Os quatro cantos dos Timbiras,
escapos ao naufrágio, são da mesma família daqueles cinco cantos do poema de
José Basílio. Não tem este a popularidade da Marília de Dirceu, sendo-lhe, a certos
respeitos, superior, por mais incompleto e menos limado que o ache Garrett; mas o
próprio Garrett escreveu em 1826 que os brasileiros têm no poema de José Basílio
da Gama "a melhor coroa da sua poesia, que nele é verdadeiramente nacional e
legítima americana".
Neste tempo em que o uso do verso solto se perdeu inteiramente, tanto no
Brasil como em Portugal, Gonzaga tem essa superioridade sobre o seu patrício
mineiro. As rimas daquele cantam de si mesmas, quando não baste a perfeição dos
seus versos, ao passo que o verso solto de José Basílio tem aquela harmonia,
seguramente mais difícil, a que é preciso chegar pela só inspiração e beleza do
metro. Não serão sempre perfeitos. O meu bom amigo Muzzio, companheiro de
outrora, crítico de bom gosto, achava detestáveis aqueles dous famosos versos do
Uruguai:
Tropel confuso de cavalaria,
113
Que combate desordenadamente.
— Isto nunca será onomatopéia, dizia ele; são dous maus versos.
Concordava que não eram melodiosos, mas defendia a intenção do poeta,
capaz de os fazer com a tônica usual. Um dia, achei em Filinto Elísio uma imitação
daqueles versos de José Basílio da Gama, por sinal que ruim, mas o lírico português
confessava a imitação e a origem. Não quero dizer que isto tornasse mais belos os
do poeta mineiro; mas é força lembrar o que valia no seu tempo Filinto Elísio, tão
acatado, que meia dúzia de versos seus, elogiando Bocage, bastaram a inspirar a
este o célebre grito de orgulho e de glória: — Zoilos, tremei! Posteridade, és minha!
A reunião de hoje pode ser prejudicada pela grande comoção de ontem.
Outro dia seria melhor. Se alguns homens de letras se juntarem para isto, façam
obra original, como original foi o poeta no nosso mundo americano. Antes de tudo,
seja-me dado pedir alguma cousa: excluam a poliantéia. Oh! a poliantéia! um dia
apareceu aqui uma poliantéia; daí em diante tudo ou quase tudo se fez por essa
forma. A cousa, desde que lhe não presida o gosto e a escolha, descai naturalmente
até a vulgaridade; o nome, porém, fá-la-á sempre odiosa, tão usado e gasto se acha.
Não lhe ponham tal designação; qualquer outra, ou nenhuma, é preferível, para
coligir as homenagens da nossa geração.
No meu tempo de rapaz, era certo fazer-se uma reunião literária, onde se
recitassem versos e prosas adequadas ao objeto. Não aconselho este alvitre; além
de ser costume perdido, e bem perdido, seria grandemente arriscado revivê-lo. Não
se podem impor programas, nem se há de tapar a boca aos que a abrirem para dizer
alguma cousa fora do ajuste. Uma daquelas reuniões foi notável pela leitura que
alguém fez de um relatório, não sei sobre que, mas era um relatório comprido e mal
recitado. Um dos convidados era oficial do exército, estava fardado, e passeava na
sala contígua, obrigando um chocarreiro a dizer que a diretoria da festa mandara
buscar o oficial para prender o leitor do relatório, apenas acabada a leitura; mas a
leitura, a falar verdade, creio que ainda não acabou.
Não; há vários modos de comemorar o poeta de Lindóia, dignos do assunto e
do tempo. Não busquem grandeza nem rumor; falta ao poeta a popularidade
necessária para uma festa que toque a todos. Uma simples festa literária é bastante,
desde que tenha gosto e arte. Oficialmente se poderá fazer alguma cousa, o nome
do poeta, por exemplo, dado pelo Conselho Municipal a uma das novas ruas. Devo
aqui notar que Minas Gerais, que tem o gosto de mudar os nomes às cidades, não
deu ainda a nenhuma delas o nome de Gonzaga, e bem podia dar agora a alguma o
nome de Lindóia, se o do cantor desta lhe parece extenso em demasia; qualquer
ato, enfim, que mostre o apreço devido à musa deliciosa de José Basílio, o mesmo
que, condenado a desterro, pôde com versos alcançar a absolvição e um lugar de
oficial de secretaria.
Eu não verei passar teus doze anos,
Alma de amor e de piedade cheia,
Esperam-me os desertos africanos,
Áspera, inculta, monstruosa areia,
Ah! tu fazes cessar os tristes danos ...
Assim falou ele à filha do Marquês de Pombal, como sabeis, e dos versos lhe
veio a boa fortuna. A má fortuna veio-lhe do caráter, que se conservou fiel ao
marquês, ainda depois de caído, e perdeu com isso o emprego.
114
Para acabar com poetas. Valentim Magalhães tornou da Europa. Viu muito
em pouco tempo e soube ver bem. Parece-me que teremos um livro dele contando
as viagens. Com o espírito de observação que possui, e a fantasia original e viva,
dar-nos-á um volume digno do assunto e de si. O que se pode saber já, é que, indo
a Paris, não se perdeu por lá; viu Burgos e Salamanca, viu Roma e Veneza —
Veneza que eu nunca verei, talvez, se a morte me levar antes, como diria M. de La
Palisse — Veneza, a única, como escrevia há pouco um autor americano.
[162]
[14 julho]
Carne e Paz foram as doações principais da semana. A carne é municipal, a
paz é federal, mas nem por isso são menos aprazíveis ao homem e ao cidadão, uma
vez que a carne seja barata e a paz eterna. Eterna! Que paz há eterna neste
mundo? A mesma paz dos túmulos é uma frase. Lá há guerra — guerra no próprio
homem, luta pela vida. Nem é raro ir cá de fora buscar o morto ao jazigo derradeiro
para isto ou para aquilo, como o célebre príncipe D. Pedro, que, unia vez rei, fez
coroar o cadáver de D. Inês de Castro. O nosso João Caetano, quando queria dar
alguma solenidade às representações da Nova Castro, anunciava que a tragédia
acabaria com a cena da coroação. Obtinha com isto mais uma ou duas centenas de
mil-réis. Não ficava mais bela a tragédia; mas o espectador gostava tanto de
prolongar a sua própria ilusão!
Paz e carne. Faz lembrar os jantares de S. Bartolomeu dos Mártires: vaca e
riso. Se com estas duas cousas o arcebispo não deixou de ser canonizado,
esperemos que nos canonizem também. Nem creio que haja melhor caminho para o
céu. Não nego as belezas do jejum, mas o céu fica tão longe, que um homem fraco
pode cair na estrada, se não tiver alguma cousa no estômago. Que essa seja barata,
é o que presumo sair do ato da intendência; e basta isso para ter feito uma sessão
útil.
Um dos intendentes pensa o contrário; acha que só se fizeram torneios
oratórias. Foi o Sr. Honório Gurgel. Ao que retorquiu o Sr. Vieira Fazenda:
"Começando pelos de V. Ex.ª. " Replicou o Sr. Honório Gurgel: "Verdadeiros
jogos florais, onde o Sr. Fazenda, como sempre, brilhou pela sua facúndia". E o Sr.
Vieira Fazenda: "V. Ex.& ordf; está continuando a tornar tempo ao Conselho com
longos discursos". É difícil crer que haja paz depois de tais remoques; mas se há leis
que explicam tudo, alguma explicará este fenômeno. Pouco visto em legislação,
prefiro crer que, se algum sangue correu depois daquilo, foi somente o da vaca
aprovada e contratada.
Vaca e riso. Agora é o riso que se anuncia, por meio da pacificação do Sul. A
guerra é boa, e, dado que seja exato, como pensa um filósofo, que ela é a mãe de
todas as cousas, preciso é que haja guerras, como há casamentos. A leitura de
batalhas é agradável ao espírito. As proclamações napoleônicas, as descrições
homéricas, as oitavas camoneanas, lidas no gabinete, dão idéia do que será o
próprio espetáculo no campo. A mais de um combatente ouvi contar as belezas
trágicas da luta entre homens armados, e tenho acompanhado muita vez o jovem
Fabrício del Dongo na batalha de Waterloo, levados ambos nós pela mão de
Stendhal. O destino trouxe-me a este campo quieto do gabinete, com saída para a
Rua do Ouvidor, de maneira que, se adoeci de um olho, não o perdi em combate,
como sucedeu a Camões. Talvez por isso não componha iguais versos. Homero,
que os perdeu ambos, deixou um grande modelo de arte.
115
Entre parêntesis, uma patrícia nossa que não perdeu nenhum dos seus belos
olhos de vinte e um anos, mostrou agora mesmo que se podem compor versos, sem
quebra da beleza pessoal. Não é a primeira, decerto. A Marquesa de Alorna já tinha
provado a mesma cousa. A Sevigné, se não compôs versos, fez cousas que os
merecem, e era bonita e mãe. Não cito outras, nem George Sand, que era bela, nem
George Eliot, que era feia. Francisca Júlia da Silva, a patrícia nossa, se é certo o que
nos conta João Ribeiro, no excelente prefácio dos Mármores, já escrevia versos aos
quatorze anos. Bem podia dizer, pelo estilo de Bernardim: "Menina e moça me
levaram da casa de meus pais para longes terras" ... Essas terras são as da pura
mitologia, as de Vênus talhada em mármore, as terras dos castelos medievais, para
cantar diante deles e delas impassivamente. "Musa Impassível", que é o título do
último soneto do livro, melhor que tudo pinta esta moça insensível e fria. Essa
impassibilidade será a própria natureza da poetisa, ou uma impressão literária? Eis o
que nos dirá aos vinte e cinco anos ou aos trinta. Não nos sairá jamais uma das
choramingas de outro tempo; mas aquele soneto da p. 74, em que "a alma vive e a
dor exulta, ambas unidas", mostra que há nela uma corda de simpatia e outra de
filosofia.
Outro parêntesis. A Gazeta noticiou que alguns habitantes da estação de
Lima Duarte pediram ao presidente da Companhia Leopoldina a mudança do nome
da localidade para o de Lindóia, agora que é o centenário de Basílio da Gama. Pela
carta que me deram a ler, vejo que põem assim em andamento a idéia que me
ocorreu há sete dias. Eu falei ao governo de Minas Gerais; mas os habitantes de
Lima Duarte deram-se pressa em pedir para si a designação, e é de crer que sejam
servidos. Ao que suponho, o presidente da Companhia é o Sr. conselheiro Paulino
de Sousa, lido em cousas pátrias, que não negará tão pequeno favor a tão grande
brasileiro. Demais, a história tem encontros: o filho do Visconde de Uruguai honrará
assim o cantor do Uruguai. É quase honrar-se a si próprio. Provemos sue o lemos:
Serás lido, Uruguai. Cubra os meus olhos
Embora um dia a escura noite, eterna,
Tu, vive e goza a luz serena e pura;
Vai aos bosques...
Fechados ambos os parêntesis, tornemos à paz anunciada. Também ela é
útil, como a guerra, e tem a sua hora. O mundo romano dormia em paz algumas
vezes. Venha a paz, unia vez que seja honrada e útil. Não falo por interesse
pessoal. Como eu não saio a campo a combater, deixo-me nesta situação que o
povo chama: "ver touros de palanque". O poeta Lucrécio, mais profundamente, dizia
que era doce, estando em terra, ver naufragar, etc. O resto é sabido. Carne e paz: é
muito para uma semana única. Vaca e riso: não é preciso mais para uma vida inteira
— salvo o que mais vale e não cabe na crônica.
[163]
[4 agosto]
Antes de escrever o nome de Basílio da Gama, é força escrever o do Dr.
Teotônio de Magalhães. A este moço se deve principalmente a evocação que se fez
esta semana do poeta do Uruguai. Pessoas que educaram os ouvidos de rapaz com
versos de José Basílio, não tinham na memória o centenário da morte do poeta. Não
as crimino por isso, seria criminar-me com elas. Também não ralho dos últimos ano
deste século, tão exaustivos para nós, tão cheios de sucesso, terra marique. Não há
116
lugar para todos, para os vivos e para os mortos principalmente os grandes mortos.
Mas como alguém se lembrou do poeta, esse faiou pôr todos, e muitos seguiram a
bandeira do jovem piedoso e modesto, que mostrou possuir o sentimento da glória e
da pátria.
Não se fez demais para quem muito merecia; mas fez-se bem e com alma.
Que os nossos patrícios de 1995, chegado o dia 20 de julho, recordem-se
igualmente que a língua, que a poesia da sua terra, adornam-se dessas flores raras
e vividas. Se a vida pública ainda impedir que os nomes representativos do nosso
gênio nacional andem na boca e memória do povo, alguém haverá que se lembre
dele, como agora, e o segundo centenário de Basílio da Gama será celebrado, e
assim os ulteriores. Que esse modo de viver na posteridade seja ainda urna
consolação! Quando a pá do arqueólogo descobre uma estátua divina e truncada, o
mundo abala-se, e a maravilha é recolhida aonde possa ficar por todos os tempos;
mas a estátua será uma só. Ao poeta ressuscitado em cada a aniversário restará a
vantagem de ser uma nova e rara maravilha.
Tal foi uma das festas da semana, que teve ainda outras. Há tempo de se
afligir e tempo de saltar de gosto, diz o Eclesiastes; donde se pode concluir, sem
truísmo, que há semanas festivas e semanas aborrecidas. No Eclesiastes há tudo
para todos. A pacificação do Sul lá está: "Há tempo de guerra e tempo de paz".
Muita gente entende que este é que é o tempo de paz; muita outra julga, pelo
contrário, que é ainda o tempo da guerra, e de cada lado se ouvem razões caras e
fortes. O Eclesiastes, que tem respostas para tudo, alguma dará a ambas as
opiniões; se não fosse a urgência do trabalho, iria buscá-la ao próprio livro, não
podendo fazê-lo, contento-me em supor que ele dirá aquilo que tem dito a todos, em
todas as línguas, principalmente no latim, a que o trasladaram: "Vaidade das
vaidades, e tudo é vaidade".
Napoleão emendou um dia essas palavras do santo livro. Foi justamente em
dia de vitória. Quis ver os cadáveres dos velhos imperadores austríacos, foi aonde
eles estavam depositados, e gastou largo tempo em contemplação, ele, imperador
também, até que murmurou, como no livro: "Vaidade das vaidades, tudo é vaidade".
Mas, logo depois, para corrigir o texto e a si, acrescentou: "Exceto talvez a força".
Seja ou não exata a anedota, a palavra é verdadeira. Podeis emendá-la ao corso
ambicioso, se quiserdes, como ele fez ao desconsolado de Israel, mas há de ser em
outro dia. Os minutos correm: agora é falar da semana e das suas festas alegres.
Uma dessas festas foi o regresso do Sr. Rui Barbosa. Coincidiu com o de
Basílio da Gama; mas aquele veio de Londres, este da sepultura, e por mais
definitiva que soja a sepultura, força é confessar que o autor do Uruguai não veio de
mais longe que o ilustre ministro do governo provisório. Talvez de mais perto. A
sepultura é a mesma em toda a parte, qualquer que seja o mármore e o talento do
escultor, ou a simples pedra sem nome ou com ele, posta em cima da cova. A morte
é universal. Londres é Londres, tanto para os que a admiram, como para os que a
detestam. Um membro da comuna de Paris, visitando a Inglaterra há anos, escreveu
que era um país profundamente insular, tanto no sentido moral, como no geográfico.
Os que leram as cartas do Sr. Rui Barbosa no Jornal do Comércio terão sentido que
ele, um dos grandes admiradores do gênio britânico reconhece aquilo mesmo na
nação, e particularmente na capital da Inglaterra.
A recepção do Sr. Rui Barbosa foi mais entusiástica e ruidosa que de Basílio
da Gama; diferença natural, não por causa dos talentos que são incomparáveis
entre si, mas porque a vida fala mais ao ânimo dos homens, porque o Sr. Rui
Barbosa teve grande parte na história dos últimos anos, finalmente porque é alguém
117
que vem dizer ou fazer alguma cousa. Como essa cousa, se a houver, é certamente
política, troco de caminho e torno-me às letras, ainda que aí mesmo ache o culto
espírito do Sr. Rui Barbosa, que também as prática e com intimidade. Não importa,
aqui, o que houver de dizer ou fazer, será bem-vindo a todos.
Outra festa, não propriamente a primeira em data ou lustre, mas em interesse
cá da casa, foi o aniversário da Gazeta de Notícias. Completou os seus vinte anos.
Vinte anos é alguma cousa na vida de um jornal qualquer, mas na da Gazeta é uma
longa página da história do Jornalismo. O Jornal do Comércio lembrou ontem que
ela fez uma transformação na imprensa. Em verdade, quando a Gazeta apareceu, a
dous vinténs, pequena, feita de notícias, de anedotas, de ditos picantes, apregoada
pelas ruas, houve no público o sentimento de alguma cousa nova, adequada ao
espírito da cidade. Há vinte anos. As moças desta idade não se lembraram de fazer
agora um gracioso mimo à Gazeta, bordando por suas mãos uma bandeira, ou, em
seda o número de 2 de agosto de 1875. São duas boas idéias que em 1896 podem
realizar as moças de vinte e um anos, e depressa, depressa antes que a Gazeta
chegue aos trinta. Aos trinta, por mais amor que haja a esta folha, não é fácil que as
senhoras da mesma idade lhe façam mimos. Se lessem Balzac, fá-los-iam grandes,
e achariam mãos amigas que os recebessem; mas as moças deixaram Balzac, pai
das mulheres de trinta anos.
[164]
[11 agosto]
Que pouco se leia nesta terra é o que muita gente afirma, há longos anos; é o
que acaba de dizer um bibliômano na Revista Brasileira. Este, porém, confirmando a
observação, dá como uma das causas do desamor à leitura o ruim aspecto dos
livros, a forma desigual das edições, o mau gosto, em suma. Creio que assim seja,
contanto que essa causa entre com outras de igual força. Uma destas é a falta de
estantes. As nossas grandes marcenarias estão cheias de móveis ricos, vários de
gosto; não há só cadeiras, mesas, camas, mas toda a sorte de trastes de adorno
fielmente copiados dos modelos franceses, alguns com o nome original, o bijou de
salon, por exemplo, outros em língua híbrida, como o porte-bibelots Entra-se nos
grandes depósitos, fica-se deslumbrado pela perfeição da obra, pela riqueza da
matéria, pela beleza da forma. Também se acham lá estantes, é verdade, mas são
estantes de músicas para piano e canto, bem acabadas, vário tamanho e muita
maneira.
Ora, ninguém pode comprar o que não há. Mormente os noivos nem tudo
acode. A prova é que, se querem comprar cristais, metais louça, vão a outras casas,
assim também roupa branca, tapeçaria etc.; mas não é nelas que acharão estantes.
Nem é natural que um mancebo, prestes a contrair matrimônio, se lembre de ir a
lojas de ferro ou de madeira; quando se lembrasse, refletiria certamente que a
mobília perderia a unidade. Só as grandes fábricas poderiam dar boas estantes, com
ornamentações, e até sem elas.
A Revista Brasileira é um exemplo de que há livros com excelente aspecto.
Creio que se vende, se não se vendesse, não seria por falta de matéria e valiosa.
Mudemos de caminho, que este cheira a anúncio. Falemos antes da impressão que
este último número me trouxe. Refiro-me às primeiras páginas de um longo livro,
uma biografia de Nabuco, escrita por Nabuco, filho de Nabuco. É o capítulo da
infância do finado estadista a e jurisconsulto . As vidas dos homens que serviram
noutro tempo, e são os seus melhores representantes, hão de interessar sempre às
118
gerações que vierem vindo. O interesse, porém, será maior, quando o autor juntar o
talento e a piedade filial, como na presente caso. Dizem que na sepultura de
Chatham se pôs este letreiro: "O pai do Sr. Pitt". A revolução de 1889 tirou, talvez,
ao filho de Nabuco uma consagração análoga. Que ele nos dê com a pena o que
nos daria com a palavra e a ação parlamentares, e outro fosse o regimen, ou se ele
adotasse a constituição republicana. Há muitos modos de servir a terra de seus pais.
A impressão de que fale;. vem de anos longos. Desde muito morrera Paraná
e já se aproximava a queda dos conservadores, por intermédio de Olinda, precursor
da ascensão de Zacarias. Ainda agora vejo Nabuco, já senador, no fim da bancada
da direita, ao pé da janela, no lugar correspondente ao em que ficava, do outro lado,
o Marquês de Itanhaém, um molho de ossos e peles, trôpego, sem dentes nem valor
político. Zacarias, quando entrou para o Senado foi sentar-se na bancada inferior à
da Nabuco. Eis aqui Eusébio de Queirós, chefe dos conservadores, respeitado pela
capacidade política, admirado pelos dotes oratórios, invejado talvez pelos seus
célebres amores. Uma grande beleza do tempo andava desde muito ligada ao seu
nome. Perdoe-me esta menção. Era uma senhora alta, outoniça... São migalhas da
história, mas as migalhas devem ser recolhidas. Ainda agora leio que, entre as
relíquias de Nelson, coligidas em Londres, figuram alguns mimos da formosa
Hamilton. Nem por se ganharem batalhas navais ou políticas se deixa de ter
coração. Jequitinhonha acaba de chegar da Europa, com os seus bigodes pouco
senatoriais. Lá estavam Rio Branco, simples Paranhos, no centro esquerdo,
bancada inferior, abaixo de um senador do Rio Grande do Sul, como se chamava?—
Ribeiro, um que tinha ao pé da cadeira. no chão atapetado o dicionário de Morais
consultava a miúdo, para verificar se tais palavras de um orador eram ou não
legítimas; era um varão instruído e lhano. Quem especificar mais, São Vicente,
Caxias, Abrantes, Maranguape, Cotegipe, Uruguai, ltaboraí, Otôni, e tantos, tantos,
uns no fim da vida, outros para lá do meio dela, e todo presididos pelo Abaeté, com
os seus compridos cabelos brancos.
Eis aí o que fizeram brotar as primeiras páginas de Um Estadista do Império.
Ouço ainda a voz eloqüente do velho Nabuco, do mesmo modo que ele devia trazer
na lembrança as de Vasconcelos, Ledo Paula Sousa, Lino Coutinho, que ia ouvir,
em rapaz, na galeria da Câmara, segundo nos conta o filho. Que este faça reviver
aqueles e outros tempos, contribuindo para a história do século XIX, quando algum
sábio de 1950 vier contar as nossas evoluções políticas.
Como não se há de só escrever história política, aqui está Coelho Neto,
romancista, que podemos chamar historiador, no sentido de contar a vida das almas
e dos costumes dos nossos primeiros romancistas, e, geralmente falando, dos
nossos primeiros escritores mas é como autor de obras de ficção que ora vos trago
aqui, com o seu recente livro Miragem. Coelho Neto tem o dom da invenção, da
composição, da descrição e da vida, que coroa tudo. Não vos poderia narrar a última
obra, sem lhe cercear o interesse. Parte dela está na vista imediata das cousas,
cenas e cenários. Não há transportar para aqui os aspectos rústicos, as vistas do
céu e do mar, as noites dos soldados a vida da roça, os destroços de Humaitá, a
marcha das tropas, em 15 de novembro, nem ainda as últimas cenas do livro, tristes
e verdadeiras. O derradeiro encontro de Tadeu e da mãe é patético. Os
personagens vivem, interessam e comovem. A própria terra vive. A miragem, que dá
o título ao livro, é a vista ilusória de Tadeu, relativamente ao futuro trabalhado por
ele, e o desmentido que o tempo lhe traz, como ao que anda no deserto.
Não posso dizer mais; chegaria a dizer tudo. A arte dos caracteres mereceria
ser aqui indicada com algumas citações: os episódios, como os amores de Tadeu
119
em Corumbá, a impiedade de Luísa acerca dos desregramentos da mãe, a bondade
do ferreiro Nasário, e outros que mostram em Coelho Neto um observador de pulso.
[165]
[25 agosto]
Pombos-Correios, vulgarmente chamados telegramas, vieram anteontem do
Sul para comunicar que a paz está feita. Tanto bastou para que a cidade se
alegrasse, se embandeirasse e iluminasse. Grandes foram as manifestações por
essa obra generosa, muita gente correu ao palácio de Itamarati, onde aclamou e
cobriu de flores o presidente da República. Natural é que razões políticas e
patrióticas determinassem esse ato, para mim bastava que fossem humanas. Homo
sum, et nihil humanum, etc. Bem sei que a guerra também é humana, por mais
desumana que nos pareça; nem nós estamos aqui só para cortar, entre amigos, o
pão da cordialidade. Para isso, não era preciso sair do Éden. Não percamos de vista
que dos dous primeiros irmãos um matou o outro, e tinham todo este mundo por seu.
Se algum dia a paz governar universalmente este mundo, começará então a guerra
dos mundos entre si, e o infinito ficará juncado de planetas mortos. Vingará por
último o sol, até que o Senhor apague essa última vela para melhor se agasalhar e
dormir. Sonhará Ele conosco?
Felizmente, são sucessos remotos, e muita gente dormirá debaixo da terra,
antes que comece a derradeira lliada, sem Homero. Contentemo-nos com a paz que
nos sorri agora, e alegremo-nos de ver irmãos alegres e unidos. Eu, como as letras
são essencialmente artes de paz, é natural que a saúde com particular amor. O
tumulto das armas nem sempre é favorável à poesia.
De resto, a semana começou bem para letras e artes. O Sr. Senador Ramiro
Barcelos achou, entre os seus cuidados políticos, um momento para pedir que
entrasse na ordem do dia o projeto dos direitos autorais. O Sr. presidente do
Senado, de pronto acordo, incluiu o projeto na ordem do dia. Resta que o Senado,
correspondendo à iniciativa de um e à boa vontade de outro, vote e conclua a lei.
Não lhe peço que discuta. Discussões levam tempo, sem adiantar nada. O
artigo 6.° da Constituição está sendo discutido com animação e competência,
sem que aliás nenhum orador persuada os adversários. Cada um votará como já
pensa. Talvez se pudesse fazer um ensaio de parlamento calado, em que só se
falasse por gestos. como queria um personagem de não sei que peça de Sardou,
achando-se só com uma senhora. Sardou? Não afirmo que fosse ele, podia ser
Barrière ou outro: foi uma peça que vi há muitos anos no extinto Teatro de S.
Januário, crismado depois em Ateneu Dramático, também extinto, ou no Ginásio
Dramático tão extinto como os outros. Tudo extinto; não me ficaram mais que
algumas recordações da mocidade, brevemente extinta.
Recordações da mocidade! Não sei se mande compor estas palavras em
redondo, se em itálico. Vá de ambas as formas. Recordações da mocidade. Na peça
deste nome, já no fim, quando os rapazes dos primeiros atos têm família e posição
social, alguém lembra um ritornello, ou é a própria orquestra que o toca à surdina; os
personagens fazem um gesto para dançar, como outrora, mas o sentimento da
gravidade presente os reprime e todos mergulham outra vez nas suas gravatas
brancas. E o que te sucede, qüinquagenário que ora lês os livros de todos esses
rapazes que trabalham, escrevem e publicam. É o ritornello das gerações novas; eilo
que te recordo o ardor agora tépido, os risos da primavera fugidia, os ares da
120
manhã passada. Bela é a tarde, e noites há belíssimas; mas a frescura da manhã
não tem parelha na galeria do tempo.
Eis aqui um Magalhães de Azeredo, que a diplomacia veio buscar no meio
dos livros que fazia. Dante, sendo embaixador, deu exemplo aos governos de que
um homem pode escrever protocolos e poemas, e fazer tão bem os poemas, que
ainda saíam melhores que os protocolos. O nosso Domingos de Magalhães foi
diplomata e poeta. Não conheço as suas notas, mas li os seus versos, e regalei-me
em criança com o Antônio José, representado por João Caetano, para não falar no
Waterloo, que mamávamos no berço, com a "Canção do Exílio" de Gonçalves Dias.
"Destruindo afinal, as teias que o embaraçavam, o Presidente da República
achou-se, logo, cercado de louros e fores. Nem todas as aranhas fugiram... A mais
perigosa ficou"
Este outro Magalhães—Magalhães de Azeredo—é dos que nasceram para as
letras, governando Deodoro; pertence à geração que, mal chegou à maioridade,
toda se desfaz em versos e contos. Compõe-se destes o livro que acaba de publicar
com o título de Alma Primitiva. Não te enganes; não suponhas que é um estudo—
por meio de histórias imaginadas—da alma humana em flor. Nem serás tão
esquecido que te não lembre a novela aqui publicada; história de amor, de ciúme e
de vingança, um quadro da roça, o contraste da alma de um professor com a de um
tropeiro. Tal é o primeiro conto; o último, "Uma Escrava", é também um quadro da
roça, e a meu ver, ainda melhor que o primeiro. É menos um quadro da roça que da
escravidão. Aquela D. Belarmina, que manda vergalhar até sangrar uma mucama de
estimação, por ciúmes do marido, cujo Filho a escrava trazia nas entranhas, deve
ser neta daquela outra mulher que, pelo mesmo motivo, castigava as escravas, com
tições acesos pessoalmente aplicados. Di-lo não sei que cronista nosso, frade
naturalmente; mais recatado que o frade, fiquemos aqui. São horrores, que a
bondade de muitas haverá compensado; mas um povo forte pinta e narra tudo.
Não é o conto único da roça e da escravidão, nem só dele se compõe este
livro variado. Creio que a melhor página de todas é a do "Ahasvero", quadro terrível
de um navio levando o cólera-mórbus, pelo oceano fora, rejeitado dos portos,
rejeitado da vida. É daqueles em que o estilo é mais condensado e vibrante.
Não cuides, porém, que todas as páginas deste livro são cheias de sangue e
de morte. Outras são estudos tranqüilos de um sentimento ou de um estado'
quadros de costumes ou desenvolvimento de uma idéia. De Além-Túmulo tem o
elemento fantástico, tratado com fina significação e sem abuso. O que podes notar
em quase todos os seus contos é um ar de família, uma feição mesclada de
ingenuidade e melancolia. A melancolia corrige a ingenuidade dando-lhe a intuição
do mal mundano; a ingenuidade tempera a melancolia, tirando-lhe o que possa
haver nela triste ou pesado. Não é só fisicamente que o Dr. Magalhães de Azeredo é
simpático, moralmente atrai. A educação mental que lhe deram auxiliou uma
natureza dócil. Os seus hábitos de trabalho são, como suponho, austeros e
pacientes. Duvidará algumas vezes de si? O trabalho dar-lhe-á a mesma fé que
tenho no seu futuro.
[166]
[1 setembro]
Aquilo o que Lulu Sênior disse anteontem a respeito do professor inglês que
enforcaram na Guiné trouxe naturalmente a cor alegre que ele empresta a todos os
assuntos. As pessoas que não lêem telegramas não viram a notícia; ele, que os lê,
121
fez da execução do inglês e dos autores do ato uma bonita caçoada. Nada há,
entretanto, mais temeroso nem mais lúgubre.
Não falo do enforcamento, ordenado pelas autoridades indígenas. Eu, se
fosse autoridade de Guiné, também condenaria o professor inglês, não por ser
inglês, mas por ser professor. Enforcaram o homem, e não há de ser a simples
notícia de um enforcado que faça perder o sono nem o apetite. A descrição do ato
faria arrepiar as carnes, mas os telegramas não descrevem nada, e o professor foi
pendurado fora da nossa vista. Nem mais teremos aqui tal espetáculo o desuso e
por fim a lei acabaram com a forca para sempre, salvo se a lei de Lynch entrar nos
nossos costumes; mas não me parece que entre.
Quanto ao crime que levou o professor inglês ao cadafalso africano, não é
ainda o que mais me entristece e abate. Dizem que comeu algumas crianças.
Compreendo que o matassem por isso. É um crime hediondo, naturalmente; mas há
outros crimes tão hediondos, que ainda afligindo a minha alma, não me deixam
prostrado e quase sem vida. Demais, pode ser que o professor quisesse explicar aos
ouvintes o que era canibalismo, cientificamente falando. Pegou de um pequeno e
comeu-o. Os ouvintes, sem saber onde ficava a diferença entre o canibalismo
científico e o vulgar, pediram explicações; o professor comeu outro pequeno. Não
sendo provável que os espíritos da Guiné tenham a compreensão fácil de um
Aristóteles, continuaram a não entender, e o professor continuou a devorar meninos.
Foi o que em pedagogia se chama "lição das cousas".
Se assim fosse, deveríamos antes lastimar o sacrifício que fez tal homem,
comendo o semelhante, para o fim de ensinar e civilizar gentes incultas. Mas seria
isso? Foi o amor ao ensino, a dedicação à ciência, a nobre missão do progresso e
da cultura? Ou estaremos vendo os primeiros sinais de um terrível e próximo
retrocesso? Vou explicar-me.
Em 1890, foi descoberto e processado em Minas Gerais um antropófago. Um
só já era demais; mas o processo revelou outros, sendo o major de todos o réu
Clemente, apresentado ao juiz municipal de Grão Gogol, Dr. Belisário da Cunha e
Melo, ao qual estava sujeito o termo de Salinas, onde se deu o cave.
Não era este Clemente nenhum vadio, que preferisse comer um homem a
pedir-lhe dez tostões pare comer outra cousa. Era lavrador tinha vinte e dois anos de
idade. Confessou perante o subdelegado haver matado e comido seis pessoas, dois
homens, duas mulheres e duas crianças. Não tenham pena de todos, os comidos.
Um deles, a moça Francisca, antes de ser comida por ele, com quem vivia
maritalmente, ajudou-o a matar e a comer outra moça, de nome Maria. Outro
comido, um tal Basílio, foi com ele à casa de Fuão Simplício, onde pernoitaram,
estando o dono a dormir, os dois hóspedes com uma mão-de-pilão o mataram,
assaram e comeram. Mas tempos depois, um sábado, 29 de novembro de 1890,
levado de saudades, matou o companheiro Basílio e estava a comer-lhe as coxas,
tendo já dado cabo da parte superior do corpo, quando foi preso. Os dois meninos
comidos antes, chamavam-se Vicente e Elesbão e eram irmãos de Francisca, filhos
de Manuela. Por que escapou Manuela? Talvez por não ser moça. Oh! mocidade!
Oh! flor das flores! A mesma antropofagia te prefere e busca. Aos velhos basta que
os desgostos os comam.
Importa notar que o inventor da antropofagia, no termo de Salinas não foi
Clemente, mas um tal Leandro, filho de Sabininha, e mais a mulher por nome
Emiliana. Propriamente foram estes os que mataram um menino, e o levaram para
casa, e o esfolaram e assaram; mas, quando se tratou de comê-lo, convidaram
amigos, entre eles Clemente, que confessou ter recebido uma parte do defunto. A
122
informação consta do interrogatório. Não tive outras notícias nem sei como acabou o
processo. Hão de lembrar-se que esse foi o ano terrível (1890-91) em que se perdeu
e ganhou tanto dinheiro que não pude ler mais nada. Comiam-se aqui também uns
aos outros sem ofensa do código—ao menos no capítulo do assassinato.
A conclusão que tiro do caso de Salinas e do caso da Guiné é que estamos
talvez prestes a tornar atrás, cumprindo assim o que diz um filósofo—não sei se
Montaigne—que nós não fazemos mais que andar à roda. Há de custar a crer, mas
eu quisera que me explicassem os dois casos, a não ser dizendo que tal costume de
comer gente é repugnante e bárbaro, além de contrário à religião; palavra de
civilizado, que outro civilizado desmentiu agora mesmo na Guiné. Não esqueçam a
proposta de Swift , para tornar as crianças irlandesas , que são infinitas, úteis ao
bem público. "Afirmou-me um americano disse ele, meu conhecido de Londres e
pessoa capaz, que uma criança de boa saúde e bem nutrida, tendo um ano de
idade, é um alimento delicioso, nutritivo e são, quer cozido, quer assado, de forno ou
de fogão". É escusado replicar-me que Swift quis ser apenas irônico. Os ingleses é
que atribuíram essa intenção ao escrito pelo sentimento de repulsa; mas os próprios
ingleses acabaram de provar na África a veracidade e (com as restrições devidas à
humanidade e à religião) o patriotismo de Swift.
Talvez o deão e o americano se hajam enganado em limitar às crianças de
um ano as qualidades de sabor e nutrição. Se tornarmos à antropofagia, é evidente
que o uso irá das crianças aos adultos, e pode já fixar-se a idade em que a gente
ainda deva ser comida: quarenta a quarenta e cinco anos. Acima desta idade, não
creio que as qualidades primitivas se conservem. Como é provável que a atual
civilização subsista em grande parte, é naturalíssimo que se façam instituições
próprias de criação humana, ou por conta do Estado, ou de acordo com a lei das
sociedades anônimas. Penso também que acabará o crime de homicídio, pois que o
modo certo de defesa do criminoso será, logo que estripe o seu inimigo ou rival, ceá-
lo com pessoas de polícia.
Horrível, concordo, mas nós não fazemos mais que andar à roda, como dizia
o outro... Que me não posso lembrar se foi realmente Montaigne, pois iria daqui
pesquisar o livro, para dar o texto na própria e deliciosa língua dele! Os franceses
têm um estribilho que se poderá aplicar à vida humana, dado que o seu filósofo
tenha razão:
Si cette histoire vous embête,
Nous allons la recommencer.
Os portugueses têm esta outra, para facilitar a marcha, quando são dois ou
mais que vão andando:
Um, dous, três;
Acerta o passo, Inês,
Outra vez!
Estribilhos são muletas que a gente forte deve dispensar. Quando voltar o costume
da antropofagia, não há mais que trocar o "amai-vos uns aos outros", do Evangelho,
por esta doutrina: "Comei-vos uns aos outros". Bem pensado são os dois estribilhos
da civilização.
[167]
123
[18 setembro]
Não me falem de anistias, nem de chuvas, nem de frios, nem do naufrágio do
Britânia, nem do eclipse da semana. Há pessoas que trazem de cor os eclipses.
Também eu fui assim, graças aos almanaques. Um dia, porém, vendo que o sol e a
lua, posto que primitivos, eram ainda os melhores almanaques deste mundo, acabei
com os outros. A economia é sensível; mas nem por isso ando com os olhos no céu.
Tendo tropeçado tanta vez, como o sábio antigo, sigo o conselho da velha e não tiro
os olhos do chão: é o mais seguro gesto para não cair no poço.
Vós, que me ledes há três anos ou mais, duvidareis um pouco desta
afirmação. Sim, é possível que me tenhais visto com os olhos no firmamento, à cata
de alguma estrela perdida ou sonhada. Não o vejo, mas não tenho tempo de me
reler, nem já agora rasgo o que aí fica, para dizer outra coisa. Farei de conta que isto
é uma retificação, à maneira dos escrivães e outros oficiais, como esta que leio no
último número do Arquivo Municipal: "Proveu mais o dito ouvidor-geral que dos
primeiros efeitos desta Câmara se faça um tinteiro de prata, na forma do outro que
acabou, digo, na forma do outro que serve". Com um simples digo se põe o
contrário.
Esse Arquivo não traz só velhos documentos, mas também lições e boas
regras. No dito auto de correição, que se fez ali pelos fins do primeiro terço do
século passado, emendou-se muita lacuna e cortou-se muita demasia.
Proveu mais o ouvidor, que por quanto há grandes queixas do mal que se
cobram os foros dos bens do Conselho, por serem dados alguns a pessoas
poderosas, e outros a pessoas eclesiásticas, mandou que daqui em diante se não
dêem mais a semelhantes pessoas, senão dando fiadores chãos e abonadores ...
Os próprios governadores não escaparam a este terrível ouvidor-geral, que
também mandou que por nenhum cave de hoje em diante se dê mais a nenhum
governador desta praça ajuda de custo pare cases nem pare outros efeitos alguns,
das rendas da Câmara com pena de os pagarem os oficiais da Câmara e de não
entrarem mais no governo desta República.
Enfim, até mandou que se contratasse um letrado, o licenciado Bento Homem
de Oliveira, com o ordenado de trinta e dous mil-réis por ano.
Trinta e dous mil-réis por ano! Bom tempo, ah! bom tempo! Apesar da
nobreza da terra, não vivia ainda nem morria a Marquesa de Três Rios, que só com
médicos despendeu (dizem as notícias de São Paulo) cerca de quinhentos contos.
Bom tempo, ah! bom tempo, em que se taxava o preço a tudo, e o regimento dos
alfaiates marcava para um colete, uma véstia e um calção (um terno diríamos hoje) a
quantia de quatro mil-réis. O torneiro de chifre (ofício extinto) tinha no seu regimento
que um tinteiro grande de escrivão com tampa custasse quatrocentos réis, e um dito
grande com sua poeira, quatrocentos e oitenta réis. Que era sua poeira? Talvez a
areia que ainda achei, em criança, antes que o mata-borrão servisse também para
enxugar as letras. Usos, costumes, regras e preços que se foram com os anos.
Com os séculos foram ainda outras cousas, e não só desta terra como de
alheios—o Egito, para não ir mais longe. Há dous Egitos o atual, que, não sendo
propriamente ilha, é uma espécie de ilha britânica—e o antigo, que se perde na noite
dos tempos. Este é o que o nosso Coelho Neto põe no Rei Fantasma. Não conheço
um nem outro; não posso comparar nem dizer nada da ocupação inglesa nem da
restauração Coelho Neto. Tenho que a restauração sempre há de ter sido mais difícil
que a ocupação, mas fio que o nosso patrício haverá estudado conscienciosamente
a matéria.
124
É certo que o autor, no prólogo do livro, afirma que este é tradução de um
velho papyrus, trazido do Cairo por um estrangeiro que ali viveu em companhia de
Mariette. O estrangeiro veio para aqui em 1888, e com medo das febres meteu-se
pelo sertão levando o papyrus, os anubis, mapas e cachimbos. Aí o conheceu, aí
trabalharam juntos; morto o estrangeiro, Coelho Neto cedeu a rogos e deu ao prelo o
livro.
Conhecemos todos essas fábulas. São inventos que adornam a obra ou dão
maior liberdade ao autor. Aqui, nada tiram nem trocam ao estilo de Coelho Neto,
nem afrouxam a viveza da sua imaginação. A imaginação é necessária nesta casta
de obras. A de Flaubert deu realce e vida a Salam6o, sem desarmar o grande
escritor da erudição precisa para defender-se, no dia em que o acusaram de haver
falseado Carthago. Quando o autor é essencialmente erudito, como Ebers,
preocupa-se antes de textos e indicações; pegai na Filha de Um Rei do Egito, contai
as notas, chegareis a 525. Ebers nada esqueceu; conta-nos, por exemplo, que o
mais velho de dous homens que vão na barca pelo Nilo "passa a mão pela barba
grisalha, que lhe cerca o queixo e as faces, mas não os lábios", e manda-nos para
as notas, onde nos explica que os espartanos não usavam bigodes. Não sei se
Coelho Neto iria a todas as particularidades antigas mas aqui está uma de todos os
tempos, que lhe não esqueceu, e trata-se de barca também, uma que chega à
margem para receber o rei: "os remos arvorados gotejavam"... Não tenho com que
analise ou interrogue o autor do Rei Fantasma acerca dos elementos do livro. Sei
que este interessa, que as descrições são vivas, que as paixões ajudam a natureza
exterior e a estranheza dos costumes. Há quadros terríveis; a cena de Amanci e da
concubina tem grande movimento, e o suplício desta dói ao ler, tão viva é a pintura
da moça, agarradaa os ferros e fugindo aos leões. O mercado de Peh'n e a
panegíria de Isis são páginas fortes e brilhantes.
[168]
[22 setembro]
A semana acabou com um tristíssimo desastre. Sabeis que foi a morte do
Conselheiro Tomás Coelho, um dos brasileiros mais ilustres da última geração do
Império. Não é mister lembrar os cargos que exerceu naquele regímen, deputado,
senador, duas vezes ministro, na pasta da guerra e da agricultura. Se o Império não
tem caído, teria sido chefe de governo, talhado para esse cargo pela austeridade,
talento, habilidade e influência pessoal.
Os que o viram de perto poderão atestar o afinco dos seus estudos e a
tenacidade dos seus trabalhos. Unia a gravidade e a afabilidade naquela perfeita
harmonia que exprime um caráter sério e bom. No mundo econômico exerceu
análoga influência que tinha no mundo político. A ambos, e a toda a sociedade deixa
verdadeira e grande mágoa. Nem são poucos os que devem sentir palpitar o
coração lembrado e grato.
A morte de Tomás Coelho, em qualquer circunstancia, seria dolorosa; mas o
repentino dela tornou o golpe maior. As 5 horas da tarde de sexta-feira subiu a Rua
do Ouvidor, tranqüilo e conversando; mais de um amigo o cortejou, satisfeito de o
ver assim. Nenhum imaginava que quatro horas depois seria cadáver.
Outro óbito, não do homem político, mas que faz lembrar um varão
igualmente ilustre, começou enlutando a semana. Há alguns anos que se despediu
deste mundo um dos seus atenienses: Otaviano. Aquele culto e fino espírito, que o
jornal, que a palestra, e alguma vez a tribuna, viram sempre juvenil, recolhera-se nos
125
últimos dias, flagelado por terrível enfermidade. Não perdera o riso, nem o gosto,
tinha apenas a natural melancolia dos velhos. Amigos iam passar com ele algumas
horas, para ouvi-lo somente, ou para recordar também. Os rapazes que só tinham
vinte anos não conheceram esse homem que foi o mais elegante jornalista do seu
tempo, entre os Rochas, e Amarais, quando apenas estreava "este outro que a
todos sobreviveu com as mesmas louçanias de outrora: Bocaiúva."
A casa era no Cosme Velho. As horas da noite eram ali passadas, entre os
seus livros, falando de cousas do espírito, poesia, filosofia, história, ou da vida da
nossa terra, anedotas políticas, e recordações pessoais. Na mesma sala estava a
esposa, ainda elegante, a despeito dos anos, espartilhada e toucada, não sem
esmero, mas com a singeleza própria da matrona. Tinha também que recordar os
tempos da mocidade vitoriosa quando os salões a contavam entre as mais belas. O
sorriso com que ouvia não era constante nem largo, mas a expressão do rosto não
precisava dele para atrair a D. Eponina as simpatias de todos.
Um dia Otaviano morreu. Como as aves que Chateaubriand viu irem do
Ilissus, na emigração anual, despediu-se aquela, mas sozinha, não como os casais
de arribação. D. Eponina ficou, mas acaba de sair também deste mundo. Morreu e
enterrou-se quarta-feira. Quantas se foram já, quantas ajudam o tempo a esquecê-
las, até que a morte as venha buscar também! Assim vão umas e outras enquanto
este século se fecha e o outro se abre, e a juventude renasce e continua. Isso que ai
fica é vulgar, mas é daquele vulgar que há de sempre parecer novo como as belas
tardes e as claras noites. E a regra também das folhas que caem... Mas, talvez isto
vos pareça Millevoye em prosa; falemos de outro Millevoye sem prosa nem verso.
Refiro-me às árvores do mesmo bairro do Cosme Velho, que, segundo li, já
foram e têm de ser derrubadas pela Botanical Carden. A Gazeta por si, e o Jornal do
Comércio, por si e por alguém que lhe escreveu, chamaram a atenção da autoridade
municipal para a destruição de tais árvores, mas a Botanical Garden explicou que se
trata de levar o bond elétrico ao alto do bairro, não havendo mais que umas cinco
árvores destinadas à morte. Achei a explicação aceitável. Os bonds de que se trata
não passam até aqui do Largo do Machado. As viagens são mais longas do que
antes, é certo, mas não é por causa da eletricidade; são mais longas por causa dos
comboios de dous e três carros, que param com freqüência. A incapacidade de um
ou outro dos chamados motorneiros é absolutamente alheia à demora. Pode dar
lugar a algum desastre, mas a própria companhia já provou, com estatísticas, que os
bonds elétricos fazem morrer muito menos gente que o total dos outros carros.
Demais, é natural que nas terras onde a vegetação é pouca, haja mais
avareza com ela, e que em Paris se trate de salvar o Bois de Boulogne e outros
jardins. Nos países em que a vegetação é de sobra, como aqui, podem despir-se
dela as cidades. Uma simples viagem ao sertão leva-nos a ver o que nunca hão de
ver os parisienses. Assim respondo à Gazeta, não que seja acionista da companhia,
mas por ter um amigo que o é. Nem sempre os burros hão de dominar. Se os do
Ceará nos deram o exemplo de jornadear ao lado da estrada de ferro, concorrendo
com ela no transporte da carga, foi com o único fito de defender o carrancismo.
Burro é atrasado é teimoso; mas os do Ceará acabaram por ser vencidos. O mesmo
há de acontecer aos nossos. Agora, que a vitória da eletricidade no Cosme Velho e
nas Laranjeiras devesse ser alcançada poupando as árvores, é possível; mas sobre
este ponto não conversei com autoridade profissional.
Ao menos conto que não terão posto abaixo alguma das árvores da chácara
de D. Olimpia, naquele bairro — a mesma que o Sr. Aluizio Azevedo afirma ter
escrito o Livro de Uma Sogra, que ele acaba de publicar, e que vou acabar de ler.
126
[169]
[29 de setembro]
Quando a vida cá fora estiver tão agitada e aborrecida que se não possa viver
tranqüilo e satisfeito, há um asilo para a minha alma— e para o meu corpo,
naturalmente.
Não é o céu, como podeis supor. O céu é bom, mas eu imagino que a paz lá
em cima não estará totalmente consolidada. Já lá houve uma rebelião; pode haver
outras. As pessoas que vão deste mundo, anistiadas ou perdoadas por Deus,
podem ter saudades da terra e pegar em armas. Por pior que a achem, a terra há de
dar saudades, quando ficar tão longe que mal pareça um miserável pontinho preto
no fundo do abismo. Ó pontinho preto, que foste o meu infinito I (exclamarão os
bem-aventurados), quem me dera poder trocar esta chuva de maná pela fome do
deserto! O deserto não era inteiramente mau; morria-se nele, é verdade, mas viviase
também; e uma ou outra vez, como nos povoados, os homens quebravam a
cabeça uns I aos outros—sem saber por que, como nos povoados.
Não, devota amiga da minha alma, o asilo que buscarei, quando a vida for tão
agitada como a desta semana, não é o céu, é o Hospício dos Alienados. Não nego
que o dever comum é padecer comumente, e atacarem-se uns aos outros, para dar
razão ao bom Renan, que pôs esta sentença na boca de um latino: "O mundo não
anda senão pelo ódio de dous irmãos inimigos". Mas, se o mesmo Renan afirma,
pela boca do mesmo latino que "este mundo é feito para desconcertar o cérebro
humano", irei para onde se recolhem os desconcertados, antes que me
desconcertem a mim.
Que verei no hospício? O que vistes quarta-feira numa exposição de
trabalhos feitos pelos pobres doudos, com tal perfeição que é quase uma fortuna
terem perdido o juízo. Rendas, flores, obras de lã, carimbos de borracha, facas de
pau, uma infinidade de cousas mínimas, geralmente simples, para as quais não se
lhes pede mais que atenção e paciência. Não fazendo obras mentais e complicadas,
tratados de jurisprudência ou constituições políticas, nem filosofias nem
matemáticas, podem achar no trabalho um paliativo à loucura, e um pouco de
descanso à agitação interior. Bendito seja o que primeiro cuidou de encher-lhes o
tempo com serviço, e recompor-lhe em parte os fios arrebentados da razão.
Mas não verei só isso. Verei um começo de Epimênides, uma mulher que
entrou dormindo, em 14 de setembro do ano passado, e ainda não acordou. Já lá vai
um ano. Não se sabe quando acordará; creio que pode morrer de velha. como
outros que dormem apenas sete ou oito horas por dia, e ir-se-á para a cova, sem ter
visto mais nada. Para isso, não valerá a pena ter dormido tanto. Mas suponhamos
que acorde no fim deste século ou no começo do outro, não terá visto uma parte da
história, mas ouvirá contá-la, e melhor é ouvi-la que vivê-la. Com poucas horas de
leitura ou de outiva, receberá notícia do que se passou em oito ou dez anos, sem ter
sido nem atriz nem comparsa, nem público. É o que nos acontece com os séculos
passados. Também ela nos contará alguma cousa. Dizem que, desde que entrou
para o hospício, deu apenas um gemido, e põe algumas vezes a língua de fora. O
que não li é se, além de tal letargia, goza do benefício da loucura. Pode ser, a
natureza tem desses obséquios complicados.
Aí fica dito o que farei e verei para fugir ao tumulto da vida. Mas há ainda
outro recurso, se não puder alcançar aquele a tempo: um livro que nos interesse,
dez, quinze, vinte livros. Disse-vos no fim da outra semana que ia acabar de ler o
127
Livro de Uma Sogra. Acabei-o muito antes dos acontecimentos que abalaram o
espírito público.
As letras também precisam de anistia. A diferença é que, para obtê-la,
dispensam votação. É ato próprio; um homem pega em si, mete-se no cantinho do
gabinete, entre os seus livros, e elimina o resto. Não é egoísmo, nem indiferença;
muitos sabem em segredo o que lhes dói do mal político, mas, enfim, não é seu
ofício curá-lo. De todas as cousas humanas, dizia alguém com outro sentido por
diverso objeto,—a única que tem o seu fim em si mesma é a arte.
Sirva isto para dizer que a fortuna do livro do Sr. Aluízio Azevedo é que,
escrito para curar um mal, ou suposto mal, perde desde logo a intenção primeira,
para se converter em obra de arte simples. Dona Olímpia é um tipo novo de sogra,
uma sogra avant la lettre. Antes de saber com quem há de casar a filha, já pergunta
a si mesma (p. 112) de que maneira "poderá dispor do genro e governá-lo em sua
íntima vida conjugal". Quando lhe aparece o futuro genro, consente em dar-lhe a
filha, mas pede-lhe obediência, pede-lhe a palavra, e, para que esta se cumpra,
exige um papel em que Leandro avise à polícia que não acuse ninguém da sua
morte, pois que ele mesmo pôs termo a seus dias; papel que será renovado de três
em três meses. D. Olímpia declara-lhe, com franqueza, que é para salvar a sua
impunidade, caso haja de o mandar matar. Leandro aceita a condição; talvez tenha
a mesma impressão do leitor, isto é, que a alma de D. Olímpia não é tal que chegue
ao crime.
Cumpre-se, entretanto, o plano estranho e minucioso, que consiste em
regular as funções conjugais de Leandro e Palmira, como a famosa sineta dos
jesuítas do Paraguai. O marido vai para Botafogo, a mulher para as Laranjeiras.
Balzac estudou a questão do leito único, dos leis unidos, e dos quartos separados;
D. Olímpia inventa um novo sistema, o de duas casas, longe uma da outra. Palmira
concebe, D. Olímpia faz com que o genro embarque imediatamente para a Europa,
apesar das lágrimas dele e da filha. Quando a moça concebe a segunda vez, é o
próprio genro que se retira para os Estados Unidos. Enfim, D. Olímpia morre e deixa
o manuscrito que forma este livro, para que o genro e a filha obedeçam aos seus
preceitos.
Todo esse plano conjugal de D. Olímpia responde ao desejo de evitar que a
vida comum traga a extinção do amor no coração dos cônjuges. O casamento, a seu
ver, é imoral. A mancebia também é imoral. A rigor, parece-lhe que, nascido o
primeiro filho, devia dissolver-se o matrimônio, porque a mulher e o marido podem
acender em outra pessoa o desejo de conceber novo filho, para o qual já o primeiro
cônjuge está gasto; extinta a ilusão, é mister outra. D. Olímpia quer conservar essa
ilusão entre a filha e o genro. Posto que raciocine o seu plano, e procure dar-lhe um
tom especulativo, de mistura com particularidades fisiológicas, é certo que não
possui noção exata das cousas, nem dos homens.
Napoleão disse um dia, ante os redatores do código civil, que o casamento
(entenda-se monogamia) não derivava da natureza, e citou o contraste do ocidente
com o oriente. Balzac confessa que foram essas palavras que lhe deram a idéia da
Fisiologia. Mas o primeiro faria um código, e o segundo enchia um volume de
observações soltas e estudos analíticos. Diversa cousa é buscar constituir uma
família sobre uma combinação de atos irreconciliáveis, como remédio universal, e
algo perigoso D. Olímpia, querendo evitar que a filha perdesse o marido pelo
costume do matrimônio, arrisca-se a fazer-lho perder pela intervenção de um amor
novo e transatlântico.
128
Tal me parece o livro do Sr. Aluízio Azevedo. Como ficou dito, é antes um tipo
novo de sogra que solução de problema. Tem as qualidades habituais do autor, sem
os processos anteriores, que, aliás, a obra não comportaria. A narração, posto que
intercalada de longas reflexões e críticas, é cheia de interesse e movimento. O estilo
é animado e colorido. Há páginas de muito mérito, como o passeio à Tijuca, os
namorados adiante, O Dr. César e D. Olímpia atrás. A linguagem em que esta fala
da beleza da floresta e das saudades do seu tempo é das mais sentidas e apuradas
do livro.
[170]
[20 outubro]
Vamos ter, no ano próximo, uma visita de grande importância. Não é Leão
XIII, nem Bismarck, nem Crispi, nem a rainha de Madagascar, nem o imperador da
Alemanha, nem Verdi, nem o Marquês Ito, nem o Marechal Iamagata. Não é
terremoto nem peste. Não é golpe de Estado nem cambio a 27. Para que mais
delongas? 12 Luísa Michel.
Li que um empresário americano contratou a diva da anarquia pare fazer
conferências nos Estados Unidos e na América do Sul. Há idéias que só podem
nascer na cabeça de um norte-americano. Só a alma ianque é capaz de avaliar o
que lhe renderá uma viagem de discurso daquela famosa mulher, que Paris rejeita e
a quem Londres dá a hospedagem que distribui a todos, desde os Bourbons até os
Barbès. De momento, não posso afirmar que Barbès estivesse em Londres; mas
ponho-lhe aqui o nome, por se parecer com Bourbons e contrastar com eles nos
princípios sociais e políticos. Assim se explicam muitos erros de data e de biografia:
necessidades de estilo, equilíbrios de oração.
Desde que li a notícia da vinda de Luísa Michel ao Rio de Janeiro tenho
estado a pensar no efeito do acontecimento. A primeira cousa que Luísa Michel
verá, depois da nossa bela baía, é o cais Pharoux atulhado de gente curiosa, muda,
espantada. A multidão far-lhe-á alas, com dificuldade, porque todos quererão vê-la
de perto, a cor dos olhos, o modo de andar, a mala. Metida na cabeça com o
empresário e o intérprete, irá pare o Hotel dos Estrangeiros, onde terá aposentos
cômodos e vastos. Os outros hóspedes, em vez de fugirem à companhia, quererão
viver com ela, respirar o mesmo ar, ouvi-la falar de política, pedir-lhe notícias da
comuna e outras instituições.
Dez minutos depois de alojada, receberá ela um cartão de pessoa que lhe
deseja falar: é o nosso Luís de Castro que vai fazer a sue reportagem fluminense.
Luísa Michel ficará admirada da correção com que o representante da Gazeta de
Notícias fala francês. Perguntar-lhe-á se nasceu em França.
—Não, minha senhora, mas estive lá algum tempo; gosto de Paris. amo a
língua francesa. Venho da parte da Gazeta de Notícias pare ouvi-la sobre alguns
pontos; a entrevista sairá impressa amanhã, com o seu retrato. Pelo meu cartão,
terá visto que somos xarás: a senhora é Luísa, eu sou Luís. Vamos, porém, ao que
importa...
Acabada a entrevista, chegará um empresário de teatro, que vem oferecer a
Luísa Michel um camarote para a noite seguinte. Um poeta irá apresentar-lhe o
último livro de versos: Dilúvios Sociais. Três moças pedirão à diva o favor de lhe
declarar se vencerá o carneiro ou o leão.
129
— O carneiro, minhas senhoras; o carneiro é o povo, há de vencer, e o leão
será esmagado.
— Então não devemos comprar no leão?
— Não comprem nem vendam. Que é comprar? Que é vender? Tudo é de
todos. Oh! esqueçam essas locuções, que só exprimem idéias tirânicas.
Logo depois virá uma comissão do Instituto Histórico, dizendo-lhe
francamente que não aceita os princípios que ela defende, mas, desejando recolher
documentos e depoimentos para a história pátria precisa saber até que ponto o
anarquismo e o comunismo estão relacionados com esta parte da América. A diva
responderá que por ora, além do caso Amapá, não há nada que se possa dizer
verdadeiro comunismo aqui. Traz, porém, idéias destinadas a destruir e reconstituir a
sociedade, e espera que o povo as recolha para o grande dia. A comissão diz que
nada tem com a vitória futura, e retira-se.
É noite a diva quer jantar; está a cair de fome; mas anuncia-se outra
comissão, e por mais que o empresário lhe diga que fica para outro dia ou volte
depois de jantar, a comissão insiste em falar com Luísa Michel. Não vem só felicitá-
la, vem tratar de altos interesses da revolução; pede-lhe apenas quinze minutos.
Luísa Michel manda que a comissão entre.
— Madame, dirá um dos cinco membros, o principal motivo que nos traz aqui
é o mais grave para nós. Vimos pedir que V. Ex.a nos ampare e proteja com a
palavra que Deus lhe deu. Sabemos que V. Ex.a vem fazer a revolução, e nós a
queremos, nós a pedimos...
— Perdão, venho só pregar idéias.
— Idéias bastam. Desde que pregue as boas idéias revolucionárias podemos
considerar tudo feito. Madame, nós vimos pedir-lhe socorro contra os opressores
que nos governam, que nos logram, que nos dominam, que nos empobrecem: os
locatários. Somos representantes da União dos Proprietários. V. Exa. há de ter visto
algumas casas ainda que poucas, com uma placa em que está o nome da
associação que nos manda aqui.
Luisa Michel, com os olhos acesos, cheia de comoção, dirá que, tendo
chegado agora mesmo, não teve tempo de olhar para as casas; pede à comissão
que lhe conte tudo. Com que então os locatários?...
— São os senhores deste país, madame. Nós somos os servos; daí a nossa
União.
—Na Europa é o contrário, observa; os locatários, os proletários, os
refratários...
— Que diferença! Aqui somos nós que nos ligamos, e ainda assim poucos,
porque a maior parte tem medo e retrai-se. O inquilino é tudo. O menor defeito do
inquilino, madame, é não pagar em dia; há-os que não pagam nunca, outros que
mofam do dono da casa. Isto é novo, data de poucos anos. Nós vivemos há muito, e
não vimos cousa assim. Imagine V. Exa. — Então os locatários são tudo? — Tudo e
mais alguma cousa. Luisa Michel, dando um salto: —— Mas então a anarquia está
feita, o comunismo está feito justamente madame. É a anarquia...
—Santa anarquia, caballero, —interromperá a diva, dando este tratamento
espanhol ao chefe da comissão,—santa, três vezes santa anarquia! Que me vindes
130
pedir. vós outros, proprietários? que vos defenda os aluguéis? Mas que são
aluguéis? Uma convenção precária, um instrumento de opressão, um abuso da
força. Tolerado como a tortura, a fogueira e as prisões, os aluguéis têm de acabar
como os demais suplícios. Vós estais quase no fim. Se vos ligais contra os
locatários, é que a vossa perda é certa. O governo é dos inquilinos. Não são já os
aristocratas que têm de ser enforcados: sereis vós:
Çà ira, çà ira, çà i'a,
Les propriétaiies à la lanterne!
Não entendendo mais que a última palavra, a comissão nem espera que o intérprete
traduza todos os conceitos da grande anarquista; e, sem suspeitar que faz
impudicamente um trocadilho ou cousa que o valha, jura que é falso, que os
proprietários não põem lanternas nas casas, mas encanamentos de gás. Se o gás
está caro, não é culpa deles, mas das contas belgas ou do gasto excessivo dos
inquilinos. Há de ser engraçado se, além de perderem os aluguéis, tiverem de pagar
o gás. E as penas d'água? as décimas? os consertos?
Luísa Michel aproveita uma pausa da comissão para soltar três vivas à
anarquia e declarar ao empresário americano que embarcará no dia seguinte para ir
pregar a outra parte. Não há que propagar neste país, onde os proprietários se
acham cm tão miserável e justa condição que já se unem contra os inquilinos; a obra
aqui não precisava discursos. O empresário, indignado, saca do bolso o contrato e
mostra-lho. Luísa Michel fuzila impropérios. Que são contratos? pergunta. O mesmo
que aluguéis,—uma espoliação. Irrita-se o empresário e ameaça. A comissão
procura aquietá-lo com palavras inglesas: Time is money, five o'clock... O intérprete
perde-se nas traduções. Eu, mais feliz que todos, acabo a semana.
[171]
[27 outubro]
Conversávamos alguns amigos, à volta de uma mesa, eram 5 horas da tarde,
bebendo chá. Cito a hora e o chá para que se compreenda bem a elegância dos
costumes e das pessoas. Suponho que os inglese é que inventaram esse uso de
beber chá às 5 horas. Os franceses imitaram os ingleses, nós estávamos vendo se,
imitando os franceses há de haver alguém que nos imite. Os russos, esses bebem
chá E todas as horas; o samovar está sempre pronto. Os chineses também e podem
crer-se os homens mais finamente educados do mundo, se E nota da educação é
beber chá em pequeno, como diz um adágio desta terra de café. Creio que chegam
à perfeição de mamá-lo.
Bebíamos chá e falávamos de cousas e lousas. Foi na quarta-feira desta
semana. Abriu-se um capitulo de mistérios, de fenômenos obscuros, e
concordávamos todos com Hamlet, relativamente à miséria da filosofia. O próprio
espiritismo teve alguns minutos de atenção. Saí de lá envolvido em sombras. Um
amigo que me acompanhou pôde distrair-me, falando do plano que tem (aliás
secreto) de ir ler feócrito, debaixo de alguma árvore da Elélade. Imaginem que é
moço, como a antiguidade, ingênuo e bom, ama e vai casar. Pois com tudo isso, não
pôde mais que distrair-me, apenas me deixou, as sombras envolveram-me outra
vez.
Então, lembrei-me do caso daquela Inês, moradora à Rua dos Arcos n.°
18, que achou a morte, assistindo a uma sessão da Associação Espírita, Rua do
Conde d'Eu. Pode muito bem ser que já te não lembres de Inês, nem da morte, nem
131
do resto. Eu mesmo, a não ser o chá das 5, é provável que houvesse esquecido
tudo. Os acontecimentos desta cidade duram três dias. — O bastante para que um
hóspede cheire mal, segundo outro adágio. A primeira notícia abala a gente toda, é
a conversação do dia; a segunda já acha os espíritos cansados; a terceira enfastia.
Cessam as notícias, e o acontecimento desaparece, como uns simples autos e
outras feituras humanas.
Inês, assistindo à prática do Sr. Abalo, que é o presidente da associação, teve
um ataque nervoso que, segundo os depoimentos, se transformou em
sonambulismo. Transferida pelos fundos da casa n.° 146 para a casa n.°
144, ali morreu às 5 horas da manhã. Paulina, que é o médium da associação,
depôs que Inês nunca antes assistira a tais sessões, e que já ali chegara, meio
adoentada. Outras pessoas foram ouvidas, entre elas o presidente Abalo, que fez
declarações interessantes. Insistia em que as práticas ali são meramente
evangélicas, e entrou em minudências que reputo escusadas ao meu fim.
O meu fim é mais alto. Não quero saber se Inês faleceu do ataque, nem se
este foi produzido pela prática evangélica do presidente, que aliás declarou na
ocasião ser cousa desacertada levar àquele lugar pessoas sujeitas a tais crises.
Também não quero saber se todas as moléstias, como diz o médium, são curáveis
com um pouco d'água e um padre-nosso (medicina muito mais cristã que a do Padre
Kneipp, que exclui a oração) ou se basta este mesmo padre-nosso e a palavra do
presidente; ambas as afirmações se combinam, se atendermos a que a melhor água
do mundo é a palavra da verdade. Outrossim, não indago se o presidente Abalo,
como inculca teria "um poder incomparável, caso chegasse a escrever o que fala". É
ponto que entende com a própria doutrina espírita.
A questão substancial, e posso dizer única, é a liberdade. O presidente Abalo
e o médium Paulina confessaram já ter sido processados, com outros membros da
associação, por praticarem o espiritismo. O primeiro acrescentou que, se bem
conheça o art. 157 do Código Penal, exerce o espiritismo de acordo com a
disposição do art. 72 da Constituição.
Os entendidos terão resposta fácil; eu, simples leigo, não acho nenhuma.
Deixo-me estar entre o Código e a Constituição, pego de um artigo, pego de outro,
leio, releio e tresleio. Realmente, a Constituição, mãe do Código, acaba com a
religião do Estado, e não lhe importa que cada um tenha a que quiser. Desde que a
porta fica assim aberta a todos, em que me hei de fundar para meter na cadeia o
espiritismo? Responder-me-ás que é uma burla; mas onde está o critério para
distinguir entre o Evangelho lido pelo presidente Abalo, e o do meu vigário é mais
velho, mas uma religião não é obrigada a ter cabelos brancos. Há religiões moças e
robustas. Curar com água? Mas o já citado Padre Kneipp não faz outra cousa, e o
Código, se ele cá vier, deixá-lo-á curar em paz. Quando o médium Paulina declara
que recebe os espíritos, e transmite os seus pensamentos aos membros da
associação, eu se fosse código, diria ao médium Paulina: Uma vez que a
Constituição te dá o direito de receber os espíritos e os corpos, à escolha, fico sem
razão para autuar-te como mereces, minha finória, mas não te exponhas a tirar
algum relógio aos associados, que isso é comigo.
O espiritismo é uma religião, não sei se falsa ou verdadeira; ele diz que
verdadeira e única. Presunção e água benta cada um toma a que quer, segundo
outro adágio. Hoje tudo vai por adágios. Verdadeiros ou não, escrevem-se e
publicam-se inúmeros livros, folhetos, revistas e jornais espíritas. Aqui na cidade há
uma folha espírita ou duas. Não se gasta tanto papel, em tantas línguas, senão
crendo que a palavra que se está escrevendo é a própria verdade. Admito que haja
132
alguns charlatães; mas o charlatanismo, bem considerado, que outra cousa é senão
uma bela e forte religião, com os seus sacerdotes, o seu rito, os seus princípios e os
seus crédulos, que somos tu e eu?
Também há religiões literárias, e o Sr. Pedro Rabelo, no prólogo da Alma
Alheia, alude a algumas e condena-as, chamando-lhes igrejinhas. O Sr. Pedro
Rabelo, porém, não é código, é escritor, e se acrescentar que é escritor de futuro,
não será modesto, mas dirá a verdade. Digo-lha eu, que li as oito narrativas de que
se compõe a Alma Alheia, com prazer e cheio de esperanças. "A Barricada" e o
"Cão" são os mais conhecidos, e, para mim, os melhores da coleção. A "Curiosa" é
mais que curiosa: é uma predestinada. "Mana Minduca...", Mas, para que hei de citar
um por um todos os contos? Basta dizer que o Sr. Pedro Rabelo busca uma idéia,
uma situação, alguma cousa que dizer, para transferi-la ao papel. Tem-se notado
que o seu estilo é antes imitativo e cita-se um autor, cuja maneira o jovem contista
procura assimilar. Pode ser exato em relação a alguns contos; ele próprio acha que
há diversidade no estilo desta (disparidade é o seu termo), e explica-a pela natureza
das composições. Bocage escreveu que com a idéia convém casar o estilo, mas
defendia um verso banal criticado pelo Padre José Agostinho. A explicação do Sr.
Pedro Rabelo não explica o seu caso, nem é preciso. No verdor dos anos é natural
não acertar logo com a feição própria e definitiva, bem como seguir a um e ao outro,
conforme as simpatias intelectuais e a impressão recente. A feição há de vir, a
própria, única e definitiva, bem como seguir a um e a outro, conforme as simpatias
se pode confiar.
[l72]
[17 novembro]
Tal é o meu estado, que não sei se acabarei isto. A cabeça dói-me, os olhos
doem-me, todo este corpo dói-me. Sei que não tens nada com as minhas mazelas,
nem eu as conto aqui pare interessar-te; conto-as, porque há certo alívio em dizer a
gente o que padece. O interesse é meu, tu podes ir almoçar ou passear.
Vai passear, e observe o que são línguas. Se eu escrevesse em francês, terte-ia
feito tal injúria, que tu, se fosses brioso, e não és outra cousa, lavarias com
sangue. Como escrevo em português, dei-te apenas um conselho, uma sugestão;
irás passear deveras pare aproveitar a manhã. Reflete como os homens divergem,
como as línguas se opõem umas às outras, como este mundo é um campo de
batalha. Reflete, mas não deixes de ir passear; se não amanhecer chovendo, e a
neblina cobrir os morros e as torres, terás belo espetáculo, quando o sol romper de
todo e der ao terceiro dia das festas da República o necessário esplendor.
Não tendo podido ver as outras, vi todavia que estiveram magnificas; a
grande parada militar, os cumprimentos ao Sr. presidente da República, a abertura
da exposição, os espetáculos de gala, as evoluções da esquadra, foram cerimônias
bem escolhidas e bem dispostas pare celebrar o sexto aniversário do advento
republicano . Ainda bem que se organizam estas comemorações e se convida o
povo a divertir-se. Cada instituição precise honrar-se a si mesma e fazer-se querida,
e pare esta segunda parte não baste exercer pontualmente a justiça e a eqüidade. O
povo ama as cousas que o alegram.
Agora começam as festas. Deodoro estava perto do 15 de novembro, e
tratava-se de organizar a nova forma de governo. Era natural que as festas fossem
escassas e menos várias que as deste ano. Certamente, o chefe do Estado era
amigo das graças e da alegria. Não foi ainda esquecido o grande baile dado em
133
Itamarati pare festejar o aniversário natalício do marechal. Encheram-se os salões
de fardas, casacas e vestidos. Gambetta advertiu um dia que la République
manquait de femmes. Compreendia que, numa sociedade polida como a francesa,
as mulheres dão o tom ao governo. As de lá tinham-se retraído; depois apareceram
outras. suponho. Cá houve o mesmo retraimento; nomes distintos e belas elegantes
eliminaram-se inteiramente. Mas nem foram sodas, nem cá se vive tanto de salão.
De resto, como disse acima, Deodoro era amigo das oracas; acabaria por
chamar as senhoras em torno do governo. Um dia. por ocasião da promessa de
cumprir a Constituição, tive ocasião de observar uma ação que merece ser contada.
Foi a primeira e única vez que vi o palácio de S. Cristóvão transformado em
parlamento e mal transformado, porque os congressistas, acabada a constituinte.
mudaram-se pare as antigas cases da cidade. Pouca gente; mais nas tribunas que
no recinto, e no recinto mais cadeiras que ocupantes.
Anunciou-se que o presidente chegara, uma comissão foi recebê-lo à porta,
enquanto o presidente do Congresso,— atual presidente da República,—descia
gravemente os degraus do estrado em que estava a mesa pare recebe-lo. Assomou
Deodoro, cumprimentou em geral e guiou pare a mesa; em caminho, porém, viu na
tribuna das senhoras algumas que conheci a,—ou conhecia-as todas,—e , levando
os dedos à boca, fez um gesto cheio de galanteria, acentuado pelo sorriso que o
acompanhou. Comparai o gesto, a pessoa, a solenidade, o momento político, e
concluí.
Eu comparei tudo—e comparei ainda o presidente e o vice-presidente. Aquele
proferia as palavras do compromisso com a voz clara e vibrante, que reboou na
vasta sala. Desceu depois com o mesmo aprumo, e saiu. A entrada do vicepresidente
teve igual cerimonial, mas diferiu logo nas palmas das tribunas, que
foram cálidas e numerosas, ao contrário das que saudaram a chegada do primeiro
magistrado. O marechal Floriano caminhou pare a mesa, cabeça baixa passo curto e
vagaroso, e quando teve de proferir as palavras do compromisso, fê-lo em voz surda
e mal ouvida.
Tal era o contraste das duas naturezas. Quando o poder veio às mãos de
Floriano, pelas razões que todos vós sabeis melhor que eu, pois todos os políticos,
vieram os sucessos do princípio do ano, que se prolongaram e desdobraram até à
revolta de setembro e toda a mais guerra civil, que só agora achou termo, neste
primeiro ano do governo do Sr. Dr. Prudente de Morais.
O corpo diplomático acentuou anteontem esta circunstancia, por boca do Sr.
ministro dos Estados Unidos, no discurso com que apresentou ao honrado
presidente da República as sues felicitações e de seus colegas. O governo que
terminou há um ano, só pôde cuidar da guerra; o que então começou, devolvendo a
paz aos homens, pôde iniciar de vez as festas novembrinas... Novembrinas saiu-me
da pena, por imitação das festas maias dos argentinos, que a 25 de maio, data da
independência; mas não há mister nomes pare fazer festas brilhantes; a questão é
fazê-las nacionais e populares.
São obras de paz. Obra de paz é a exposição industrial que se inaugurou
sexta-feira, e vai ficar aberta por muitos dias, mostrando ao povo desta cidade o
resultado do esforço e do trabalho nacional desde o alfinete até à locomotiva.
Depressa esquecemos os males, ainda bem. Esto que pode ser um perigo em certos
caves, é um grande benefício quando se trata de restaurar a nação.
[173]
[1 dezembro]
134
Imagino o que se terá passado em Paris, quando Dumas Filho morreu. Uma
das quarenta... Não cuideis que falo das cadeiras da Academia. Este mundo não se
compõe só de cadeiras acadêmicas; também há nele interpelações parlamentares, e
dizem que o recente ministério tem já de responder a cerca de quarenta, ou
sessenta. Refiro-me justamente às interpelações. Uma delas verificou-se depois da
morte de Dumas Filho. O interpelante oprimiu naturalmente o ministério, o ministério
sacudiu o interpelante, tudo com o cerimonial de costume, apartes, gritos e
protestos; vieram os votos: o ministério teve a grande maioria deles. Nada disso tirou
à cidade esta idéia única: Dumas Filho morreu. Dumas Filho morreu. Homens,
mulheres, fidalgas e burguesas falaram deste óbito como do de um príncipe
qualquer. Não há já damas das camélias; ele mesmo disse que a mulher que lhe
serviu de modelo ao personagem de Margarida Gautier foi uma das últimas que
tiveram coração. Podia parecer paradoxo ou presunção de moço se ele não
escrevesse isto em 1867, vinte anos depois da morte de Margarida. Demais, se as
palavras dão idéia das cousas, a segunda metade deste século não chega a
conhecer a primeira. Cortesãs, ou o que quer que elas eram em 1847, acabaram
horizontais, nome que é, por Si, um programa inteiro, e é mais possível que já lhes
hajam dado outro nome mais exato e mais cru. Não faltarão, porém, mulheres nem
homens, tantas figuras vivas, criadas por ele, tiradas do mundo que passa, para a
cena que perpetua. Todos esses, e todos os demais falaram desta morte como de
um luto público.
A moda passará como passou a de Dumas pai, a de Lamartine, a de Musset,
a de Stendhal, a de tantos outros, para tornar mais tarde e definitivamente. Ás
vezes, o eclipse chega a ser esquecimento e ingratidão. Musset,—que Heine dizia
ser o primeiro poeta lírico da França,—pedia aos amigos, em belos versos, que lhe
plantassem um salgueiro ao pé da cova. Possuo umas lascas e folhas do salgueiro
que está plantado na sepultura do autor das Noites, e que Artur Azevedo me trouxe
em 1883; mas não foram amigos que o plantaram, não foram sequer franceses, foi
um inglês.
Parece que, indo fazer a visita aos mortos, doeu-lhe não ver ali o arbusto
pedido e cumprir-se o desejo do poeta. Donde se conclui que os ingleses nem
sempre ficam com a ilha da Trindade. Há deles que dão para amar os poetas e seus
suspiros. Também os há que, por amor das musas, fazem-se armar soldados. Um
deles quando os gregos bradaram pela independência, pegou em si para ir ajudá-los
e não chegou ao fim; morreu de doença em Missolonghi. Era par de Inglaterra;
chamava-se, creio, eu Georges Gordon Noel Byron. Tinha escrito muitos poemas e
versos soltos e feito alguns discursos.
A glória veio depois da moda, e pôs Dumas pai no lugar que lhe cabe neste
século, como fez aos outros seus rivais. Cada gênio recebeu a sua palma. Se a
moda fizer a Dumas filho o mesmo que aos outros, o tempo operará igual resgate, e
os dous Dumas encherão juntos o mesmo século. Rara vez se dará uma sucessão
destas, a glória engendrando a glória, o sangue transmitindo a imortalidade. Sabeis
muito bem que, nem por ser filho, o Dumas, que ora faleceu, deixou de ser outra
pessoa no teatro, grande e original. Entendeu o teatro de outra maneira, fez dele
uma tribuna, mas o pintor era assaz consciente e forte para não deixar ao pé ou de
envolta com a lição de moral ou filosofia uma cópia da sociedade e dos homens do
seu tempo. Dizem também que o filho pôs a vida natural em cena, mas disso já se
gabava o pai em 1833, e creio que ambos, cada qual no seu tempo, tinham razão.
135
Nem por ter saboreado a glória a largos sorvos, perdeu Dumas filho a
adoração que tinha ao pai. Ao velho chegaram a chamar por troça "o pai Dumas". O
filho, ao referi-lo, conta uma reminiscência dos sete anos. Era a noite da primeira
representação de Carlos VII. Não entendeu nem podia entender nada do que via e
ouvia. A peça caiu. O autor saiu do teatro, triste e calado, com o pequeno Alexandre
pela mão, este amiudando os passinhos para poder acompanhar as grandes
pernadas do pai. Mais tarde, sempre que saía da representação das próprias peças,
coberto de aplausos, não podia esquecer, ao tornar para casa, aquela noite de 1831,
e dizia consigo: "Pode ser, mas eu preferia ter escrito Carlos VII, que caiu."
Conheceis todo o resto desse prefácio do Filho Natural, não esquecestes a famosa e
célebre página em que o autor da Dama das Camélias faia ao autor de Antony:
"Então começastes esse trabalho ciclópico que dura há quarenta anos..."
Também o dele durou quarenta anos. A mais de um espantou agora a notícia
dos seus 71 de idade; e ainda anteontem, em casa de um amigo, dizia este com
graça: "então lá se foi o velho Dumas." Todos tínhamos o sentimento de um Dumas
moço, tão moço como a Darna das Camélias. A verdade é que um e outro
guardaram o segredo da eterna juventude.
Lá se foi toda a crônica. Relevai-me de não tratar de outros assuntos; este
prende ainda com o tempo da nossa adolescência, a minha e a de outros.
Naquela quadra cada peça nova de Dumas Filho ou de Augier, para só falar
de dous mestres, vinha logo impressa no primeiro paquete, os rapazes corriam a lê-
la, a traduzi-la, a levá-la ao teatro, onde os atores a estudavam e a representavam
ante um público atento e entusiasta, que a ouvia dez, vinte, trinta vezes. E adverti
que não era, como agora, teatros de verão, com jardim, mesas, cerveja e mulheres
com um edifício de madeira ao fundo. Eram teatros fechados, alguns tinham as
célebres e incômodas travessas, que aumentavam na platéia o número dos
assentos. Noites de festas; os rapazes corriam a ver a Dama das Camélias e o Filho
de Giboyer, como seus pais tinham corrido a ver o Kean e Lucrécia Bórgia. Bons
rapazes, onde vão eles? Uns seguiram o caminho dos autores mortos, outros
envelhecem, outros foram para a política, que é a velhice precoce, outros
conservam-se como este que morreu tão moço.
[174]
[8 dezembro]
Daí-me boa política e eu vos darei boas finanças. Quando o Barão S. Louis
não for mais nada na memória dos homens, este aforismo ainda há de ser citado,
não tanto por ser verdadeiro, como por tapar o buraco de uma idéia. Talvez um dia,
algum orador equivocadamente troque os termos e diga: Dai-me boas finanças, e eu
vos darei boa política. O que lhe merecerá grandes aplausos e dará nova forma ao
aforismo. Assim fazem os alfaiates às roupas consertadas de um freguês.
Nada entendendo de política nem de finanças, não estou no caso de citar um
nem outro, o primitivo e o consertado. Esta semana tivemos os escritos do Sr.
senador Oiticica e do Sr. Afonso Pena, presidente do Banco da República. Entre uns
e outros não posso dizer nada. Explico-me. Há nas palavras uma significação
gramatical que, salvo o caso da pessoa escrever como fala e falar mal, entendesse
perfeitamente. O que não chego a compreender é a significação econômica e
financeira. Sei o que são lastros, não ignoro o que são emissões, mas o que do
consórcio dos dous vocábulos entre si e com outros deve sair, é justamente o que
me escapa. Podem arregimentar diante de mim os algarismos mais compridos,
136
somá-los, diminuí-los, multiplicá-los, reparti-los, e eu conheço se as quatro
operações estão certas, mas o que elas podem dizer, financeiramente falando, não
sei. Há pessoas que não confessam isto, por motivos que respeito; algumas chegam
a escrever estudos, compêndios, análises. Eu sou (com perdão da palavra)
nobremente franco.
Em matéria de dinheiro, sei que a história dele combina perfeitamente com a
do Paraíso terrestre. Há cinqüenta anos, diz uma folha rio-grandense de 21 do mês
passado:
A moeda-papel era cousa raríssima no Rio Grande; ouro e prata eram as
moedas que mais circulavam, inclusive as de cunho estrangeiro, como as onças e os
patacões, que a alfândega recebia, aquelas a 32$ e estes a 25.
Para mim, estas palavras são mais claras que todos os autores deste mundo.
Querem dizer que comprávamos tudo com outro e prata, não havendo papel senão
talvez para fazer coleções semelhantes às de selos, ocupação não sei se mais se
menos recreativa que o jogo da paciência. Hoje, a circulação, como Margarida
Gautier, mira-se ao espelho e suspira: Combien je suis changée! Hoje quer dizer há
muitos anos. E acrescenta como a heroína de Dumas Filho: Cependant, le docteur
m'a promis de me guérir. Que doutor? É o que se não sabe ao certo; devia dizer os
doutores, ou mais simplesmente a faculdade de Medicina. Realmente, os doutores
tinham boa vontade. Conheci dous, há muitos anos, que eram como a homeopatia e
a alopatia, dous sistemas opostos. Uma curava com muitos banhos, outro com um
banho só. Além de não chegarem a curar a nossa doente com um nem com muitos,
eles próprios morreram, e a doente vai vivendo com a sua tuberculose. Como a triste
Margarida, esta acrescenta no mesmo monólogo: l'aurai patience.
Provado que não entendo de finanças, espero que me não exijam igual prova
acerca da poética, posto que a política seja acessível aos mais ínfimos espíritos
deste mundo. A questão, porém, não é de graduação, é de criação.
Um operoso deputado, o Sr. Dr. Nilo Peçanha,—acaba de apresentar um
projeto de lei destinado a impedir a fraude e as violências nas eleições. Não pode
haver mais nobre intuito. Não há serviço mais relevante que este de restituir ao voto
popular a liberdade e a sinceridade. É o que eu diria na Câmara se fosse deputado;
e, quanto ao projeto, acrescentaria que é combinação mui própria para alcançar
aqueles fins tão úteis. Onde, à hora marcada, não houver funcionários, o eleitor vai a
um tabelião e registra o seu voto. Assim que, podem os capangas tolher a reunião
das mesas eleitorais, podem os mesários corruptos (é uma suposição) não se
reunirem de propósito: o eleitor abala para o tabelião e o voto está salvo.
Como tabelião, é que não sei se aprovaria a lei. O tabelião é um ente
modesto, amigo da obscuridade, metido consigo, com os seus escreventes, com as
suas escrituras, com o seu Manual. Trazê-lo ao tumulto dos partidos, à vista das
idéias (outra suposição) é trocar o papel desse serventuário, que por índole e
necessidade pública é e deve ser sempre imperturbável. O menos que veremos com
isto é a entrada do tabelião no telegrama. Havemos de ler que um tabelião, com
violência dos princípios e das leis, com afronta da verdade das classificações, sem
nenhuma espécie de pudor, aceitou os votos nulos de menores, de estrangeiros e
de mulheres. Outro será seqüestrado na véspera, e o telegrama dirá, ou que resistiu
nobremente à inscrição dos votos, ou que fugiu covardemente ao dever. Alguns
adoecerão no momento psicológico. Se algum, por ter parentes no partido teixeirista,
mandar espancar pelos escreventes os eleitores dominguistas, cometerá realmente
um crime, e incitará algum colega aparentado com o cabo dos dominguistas a
restituir aos teixeiristas as pancadas distribuídas em nome daqueles. Deixemos os
137
tabeliães onde eles devem ficar,—nos romances de Balzac, nas comédias de Scribe
e na Rua do Rosário.
Mas, que remédio dou então para fazer todas as eleições puras? Nenhum,
não entendo de política. Sou um homem que, por ler jornais e haver ido em criança
às galerias das câmaras, tem visto muita reforma, muito esforço sincero para
alcançar a verdade eleitoral, evitando a fraude e a violência, mas por não saber de
política, ficou sem conhecer as causas do malogro de tantas tentativas. Quando a lei
das minorias apareceu, refleti que talvez fosse melhor trocar de método, começando
por fazer uma lei da representação das maiores. Um chefe político, varão hábil,
pegou da pena e ensinou, por circular pública, o modo de cumprir e descumprir a lei,
ou, mais catolicamente, de ir para o céu comendo carne à sexta-feira. Questão de
algarismos. Vingou o plano; a lei desapareceu. Vi outras reformas; vi a eleição direta
servir aos dous partidos, conforme a situação deles. Vi... Que não tenho eu visto
com estes pobres olhos?
A última cousa que vi foi que a eleição é também outra Margarida Gautier.
Talvez não suspire, como as primeiras: Combien jesus changée! Mas com certeza
atribuirá ao doutor a promessa de a curar. e dirá como a irmão do teatro e a da
praça: J'aurai patience.
[175]
[115 dezembro]
Temo errar, mas creio que Lopes Neto foi o primeiro brasileiro que se deixou
queimar, por testamento, com todas as formalidades do estilo. As suas cinzas, no
discurso do oradores, foram verdadeiramente cinzas. Agora repousam no lugar
indicado pelo testador, e é mais um exemplo que dá a sociedade italiana da
incineração aos homens que vão morrer. Estou certo, porém, que o sentimento
produzido nos patrícios de Lopes Neto foi menos de admiração que de horror. Toda
gente que conheço repele a idéia de ser queimada. Ninguém abre mão de ir para
baixo da terra integralmente, deixando aos amigos póstumos do homem o ofício de
lhe comerem os últimos bocados.
São gostos, são costumes. De mim confesso que tal é o medo que tenho de
ser enterrado vivo, e morrer lá embaixo, que não recusaria ser queimado cá em
cima. Poeticamente, a incineração é mais bela. Vede os funerais de Heitor. Os
troianos gastam nove dias em carregar e amontoar as achas necessárias para uma
imensa fogueira. Quando a Aurora, sempre com aqueles seus dedos cor-de-rosa,
abre as portas ao décimo dia, o cadáver é posto no alto da fogueira, e esta arde um
dia todo. Na manhã seguinte, apagadas as brasas' com vinho, os lacrimosos irmãos
e amigos do magnânimo Heitor coligem os ossos do herói e os encerram na urna,
que metem na cova, sobre a qual erigem um túmulo. Daí vão para o esplêndido
banquete dos funerais no palácio do rei Príamo.
Bem sei que nem todas as incinerações podem ter esta feição épica raras
acabarão um livro de Homero, e a vulgaridade dará à cremação, como se lhe
chama, um ar chocho e administrativo. O Sr. Conde de Herzberg há de morrer um
dia (que seja tarde!) e será inumado, quando menos para ser coerente. Outros
condes virão, e se a prática do fogo houver já vencido, poderão celebrar contrato
com a Santa Casa para queimar os cadáveres nos seus próprios estabelecimentos.
Então é que havemos de abençoar a memória do atual conde! Naturalmente haverá
duas espécies de classes, a presente (coches, cavalos, etc.) e a da própria
incineração, que se distinguirá pelo esplendor, mediania ou miséria dos fornos,
138
vestuários dos incineradores, qualidade da madeira. Haverá o forno comum
substituindo a vala comum dos cemitérios.
Se isto que vou dizendo parecer demasiado lúgubre, a culpa não é minha,
mas daquele distinto brasileiro, que morreu duas vezes, a primeira surdamente, a
segunda com o estrondo que acabais de ouvir. Confesso que a morte de Lopes Neto
veio lembrar-me que ele não havia morrido. Os octogenários de cá, ou trabalham
como Otôni, no Senado, ou descansam das suas grandes fadigas militares, como
Tamandaré, que ainda ontem fez anos. Há dias vi Sinimbu, ereto como nos fortes
dias da maturidade. Vi também o mais estupendo de todos, Barbacena, jovem
nonagenário, que espera firme o princípio do século próximo, a fim de o comparar ao
deste, e verificar se traz mais ou menos esperanças que as que ele viu em menino.
Posso adivinhar que há de trazer as mesmas. Os séculos são como os anos que os
compõem.
Lopes Neto foi meter-se na Itália, para que esquecessem os seus provados
talentos e os serviços que prestou ao Brasil. Não faltam ali cidades nem vilas onde
um homem possa dormir as últimas noites ou andar os últimos dias entre um quadro
eterno e uma eterna ruína. A língua que ali se ouve imagino que repercutirá na alma
estrangeira como as estrofes dos poetas da terra. Por mais que o velho Crispi e o
seu inimigo Cavalloti estraguem o próprio idioma com os barbarismos que o
parlamento impõe, um homem de boa vontade pode ouvi-los, com o pensamento
nos tercetos de Dante, e se os repetir consigo, acaba crendo que os ouviu do próprio
poeta. Tudo é sugestivo neste mundo.
Suponho que o nosso finado patrício não ouviria exclusivamente os poetas. A
política deixa tal unhada no espírito, que é difícil esquecê-la de todo, mormente
aqueles a quem lhes nasceram os dentes nela. Se tem vivido um pouco, mais leria
os telegramas que levaram esta semana a toda a Itália, como ao resto do mundo, a
notícia do desastre de Eritréia. Talvez a idade ainda lhe consentisse irritar-se como
os patriotas italianos, e clamar com eles pela necessidade da desforra. Sentiria
igualmente a dor das mães e esposas que correram às secretarias para saber a
sorte dos filhos e maridos. Execraria naturalmente aquele negus e todos os seus
rases, que dispõem de tantos e inesperados recursos. Mas, pondo de lado a
grandeza da dor e o brio dos vencidos, se Lopes Neto tivesse a fortuna de haver
esquecido a política e as suas duras necessidades, acharia sempre algum retábulo
velho, algum trecho de mármore, alguma cantiga de rua, com que passar as manhãs
de azul e sol.
Umas das máximas que escaparam a mestre Calino é que nem tudo é guerra,
nem tudo é paz, e as cousas valem segundo o estado da alma de cada um. O estilo
é que não traria esses colarinhos altos e gomados, mas caídos à marinheira. Calino
tinha a virtude de falar claro, a sua tolice era transparente. O que eu quero dizer pela
linguagem deste grande descobridor de mel-de-pau é que nem toda a Itália é Cipião,
alguma parte há de ser Rafael e outros defuntos.
Lá ficou entre esses, incinerado como tantos antigos, o homem que deu
princípio a esta crônica, e já agora lhe dará fim. O céu italiano lhe terá feito lembrar o
brasileiro, e quero crer que a sua última palavra foi proferida na nossa língua; mas,
como a confusão das línguas veio do orgulho humano, é certo que é o céu, que é só
um, entende-as todas, como antes de Babel, e tanto faz uma como outra, para
merecer bem. A última ou penúltima vez que vi Lopes Neto estava com um jovem de
quinze anos, filho de Solano López, que apresentava a algumas pessoas, na Rua do
Ouvidor. O moço sorria sem convicção, eu pensava nas vicissitudes humanas. Se o
pai não tivesse feito a guerra, haveria morrido em Assunção, e talvez ainda
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estivesse vivo. O filho seria o seu natural sucessor, e o atual presidente do Paraguai
não estaria no poder. O fortuna! ó loteria! ó bichos!
[176]
[29 dezembro]
À beira de um A ocupará esta triste semana? Pode ser que nem tu, nem eu,
leitor amigo, vejamos a aurora do século próximo, nem talvez a do ano que vem.
Para acabar o ano faltam trinta e seis horas, e em tão pouco tempo morre-se com
facilidade, ainda sem estar enfermo. Tudo é que os dias estejam contados.
A questão do suicídio não vem agora à tela. Este velho tema renasce como
esse pobre Raul Pompéia, que deixou a vida inesperadamente, aos trinta e dous
anos de idade. Sobravam-lhe talentos, não lhe faltavam aplausos nem justiça aos
seus notáveis méritos. Estava na idade em que se pode e se trabalha muito. A
política, é certo, velo ao seu caminho para lhe dar aquele rijo abraço que faz do
descuidado transeunte ou do adventício namorado um amante perpétuo. A figura é
manca, não diz esta outra parte da verdade,— que Raul Pompéia não seguiu a
política por sedução de um partido, mas por força de uma situação. Como a situação
ia com o sentimento e o temperamento do homem, achou-se ele partidário exaltado
e sincero com as ilusões todas,—das quais se deve perder metade para fazer a
viagem mais leve,—com as ilusões e os nervos.
Tal morte fez grande impressão. Daqueles mesmos que não comungavam
com as suas idéias políticas, nenhum deixou de lhe fazer justiça à sinceridade. Eu
conheci-o ainda no tempo das puras letras. Não o vi nas lutas abolicionistas de S.
Paulo. Do Ateneu, que é o principal dos seus livros, ouvi alguns capítulos então
inéditos, por iniciativa de um amigo comum. Raul era todo letras, todo poesia todo
Goncourts. Estes dous irmãos famosos tinham qualidades que se ajustavam aos
talentos literários e psicológicos do nosso jovem patrício, que os adorava. Aquele
livro era num eco. do colégio, um feixe de reminiscências, que ele soubera evocar e
traduzir na língua que lhe era familiar, tão vibrante e colorida, língua em que compôs
os numerosos escritos da imprensa diária, nos quais o estilo responda aos
pensamentos.
A questão do suicídio não vem agora à tela. Este velho tema renasce sempre
que um homem dá cabo de si, mas é logo enterrado com ele, para renascer com
outro. Velha questão, velha dúvida. Não tornou agora à tela, porque o ato de Raul
Pompéia incutiu em todos uma extraordinária sensação de assombro. A piedade
veio realçar o ato, com aquela única lembrança do moribundo de dous minutos
pedindo à mãe que acudisse à irmã, vítima de uma crise nervosa. Que solução se
dará ao velho tema? A melhor é ainda a do jovem Hamlet: The rest is silence.
Mas deixemos a morte. A vida chama-nos. Um amigo meu foi ao cemitério,
trouxe de lá a sensação da tranquilidade, quase da atração do lugar, mas não como
lugar de mortos, senão de vivos. Naturalmente achou naquele ajuntamento de casas
brancas e sossegadas uma imagem de vila interior. A capital é o contrário. A vida
ruidosa chama-nos, leitor amigo. com os seus mil contos de réis da loteria que
correu ontem na Bahia.
A idéia da agência-geral, Casa Camões & C., de expor na véspera o cheque
dos mil contos de réis para ser entregue ao possuidor do bilhete a quem sair aquela
soma, foi quase genial. Não bastava dizer ou escrever que o prêmio é de mil contos
e que havia de sair a alguém. A maior parte dos incrédulos que ali passavam—falo
dos pobres — não acreditavam a possibilidade de que tais mil contos lhes saíssem a
140
eles. Eram para eles uma soma vaga, incoercível, abstrata, que lhes fugiria sempre.
A agência Camões & C. não esqueceu ainda os Lusíadas, decerto; Há de lembrar-se
da Ilha dos Amores, quando os fortes navegantes dão com as ninfas nuas, e deitam
a correr atrás delas. Sabe muito melhor que eu, que os rapazes, à força de correr,
dão com elas no chão. A vitória foi certa e igual e, sem que o poema traga a
estatística dos moços e das moças, é sabido que ninguém perdeu na luta, tal qual
sucede às loterias deste continente. Mas o pobre quando vê muita esmola,
desconfia. Os mil contos eram uma só ninfa, que corria por todas as outras, e que
ele não ousava crer que alcançasse, ainda recitando os afamados e doces versos
da agência Camões & C.:
Oh! não me fujas! Assim nunca o breve Tempo fuja da tua formosura!
Dizer versos é uma cousa, e receber mil contos de réis é outra. As vezes
excluem-se. Quando, porém, os mil contos se lhe põem diante dos olhos, sob a
forma de um cheque, uma ordem de pagamento, o mais incrédulo entra e compra
um bilhete; aos mais escrupulosos ficará até a sensação esquisita de estar
cometendo um furto, tão certo lhes parece que o cheque vai atrás do bilhete, e que
ele está ali, está na tesouraria do banco. A venda deve ter sido considerável.
De resto, quem é que, de um ou de outro modo, não expõe o seu cheque à
porta? O próprio espiritismo, que se ocupa de altos problemas, fez do Sr. Abalo um
cheque vivo, e ninguém ali entra sem a certeza de que verá a eternidade, ou
definitivamente pela morte, ou provisoriamente pela loucura. Os que não têm certeza
e ficam pasmados do prêmio que lhes cai nas mãos, imitam nisto os que compram
bilhetes de loteria para fugir à perseguição dos vendedores, que trepam aos bonds,
e os metem à cara da gente.
O inquérito aberto pela polícia, por ocasião de alguns prêmios saídos aos
fregueses, é duas vezes inconstitucional: 1.°, por atentar contra a liberdade
religiosa; 2.°, por ofender a liberdade profissional. Eu, irmão noviço, posso
morrer sem crime de ninguém; é um modo de ir conversar outros espíritos e
associar-me a algum que traga justamente a felicidade ao nosso país. Quanto a ti,
irmão professo, não é claro que tanto podes curar por um sistema como por outro?
Quem te impede de comerciar, ensinar piano, legislar, consertar pratos, defender ou
acusar em juízo? Se a polícia examina os casos recentes de loucura mais ou menos
varrida, produzidos pelas práticas do Sr. Abalo, não ataca só ao Sr. Abalo, mas ao
meu cozinheiro também. Acaso é este responsável pelas indigestões que saem dos
seus jantares? Que é a demência senão uma indigestão do cérebro?
E acabo "A Semana" sem dizer nada daquele cão que salvou o Sr. Estruc, na
Praia do Flamengo, às cinco horas da manhã. A rigor, tudo está dito, uma vez que
se sabe que os cães amam os donos, e o Sr. Estruc era dono deste. Nadava o dono
longe da praia, sentiu perder as forças e gritou por socorro. O cão, que estava em
terra e não tirava os olhos dele, percebeu a voz e o perigo, meteu-se no mar,
chegou ao dono, segurou-o com os dentes e restitui-o à terra e à vida. Toda a gente
ficou abalada com o ato do cão, que uma folha disse ser exemplo de nobreza", mas
que eu atribuo ao puro sentimento de gratidão e de humanidade. Ao ler a notícia
lembrei-me as muitas vezes que tenho visto donos de cães, metidos em bonds,
serem seguidos por eles na rua, desde o Largo da Carioca até o fim de Botafogo ou
das Laranjeiras, e disse comigo: Não haverá homem que, sabendo andar, acuda aos
pobres-diabos que vão botando a alma pela boca fora? Mas ocorreu-me que eles
são tão amigos dos senhores, que morderiam a mão dos que quisessem suspenderlhes
a carreira, acrescendo que os donos dos cães poderiam ver com maus olhos es
se ato de generosidade .
141
1896
[177]
[5 janeiro]
Quisera dizer alguma cousa a este ano de l896, mas não acho nada tão novo
como ele. Pode responder-nos a todos que não faremos mais que repetir os amores
contados aos que passaram, iguais esperanças e as mesmas cortesias. "Não me
iludis,—dirá 1896,—sei que me não amais desinteressadamente; egoístas eternos,
quereis que eu vos dê saúde e dinheiro, festas, amores, votos e o mais que não
cabe neste pequeno discurso. Direis mal de 1895, vós que o adulastes do mesmo
modo quando ele apareceu; direis o mesmo mal de mim, quando vier o meu
sucessor."
Para não ouvir tais injúrias, limito-me a dizer deste ano que ninguém sabe
como ele acabará, não porque traga em si algum sinal meigo ou terrível, mas porque
é assim com todos eles. Daí a inveja que tenho às palavras dos homens públicos.
Agora mesmo o presidente da República Francesa declarou, na recepção do AnoBom
que a política da França é pacífica; declaração que, segundo a Agencia Havas,
causou a mais agradável impressão e segurança a toda a Europa. Oh! por que não
nasci eu assaz político para entender que palavras dessas podem suster os
acontecimentos, ou que um país ainda que premedite uma guerra, venha denunciá-
la no primeiro dia do ano, avisando os adversários e assustando o comércio e os
neutros! Pela minha falta de entendimento, neste particular, declarações tais não me
comovem. menos ainda se saem da boca de um presidente como o da República
Francesa, que é um simples rei constitucional, sem direito de opinião.
Napoleão III tinha efetivamente a Europa pendente dos lábios no dia 1 de
janeiro; mas esse, pela Constituição imperial, era o único responsável do governo, e,
se prometia paz, todos cantavam a paz, sem deixar de espiar para os lados da
França, creio eu. Um dia, declarou ele que os tratados de 1815 tinham deixado de
existir, e tal foi o tumulto por aquele mundo todo, que ainda cá nos chegou o eco.
Um socialista, Proudhon, respondeu-lhe perguntando, em folheto, se os tratados de
1815 podiam deixar de existir, sem tirar à Europa o direito público. Nesse dia, tive
um vislumbre de política, porque entendi o rumor e as suas causas, sem negar,
entretanto, que os anos trazem, com o seu horário, o seu roteiro.
Não sabemos dos acontecimentos que este nos trará, mas já sabemos que
nos trouxe a lembrança de um, — o centenário do sino grande de S. Francisco de
Paula. Na véspera do dia 1 deste mês, ao passar pelo largo, dei com algumas
pessoas olhando para a torre da igreja. Não entendendo o que era, fui adiante; no
dia seguinte, li que se ia festejar o centenário do sino grande. Não me disseram o
sentido da celebração, se era arqueológico, se metalúrgico, se religioso, se
simplesmente atrativo da gente amiga de festejar alguma cousa. Cheguei a supor
que era uma loteria nova, tantas são as que surgem, todos os dias. Loterias há
impossíveis de entender pelo título, e nem por isso são menos afraguesadas, pois
nunca faltam Champollions aos hieróglifos da velha Fortuna.
Isto ou aquilo, o velho sino merece as simpatias públicas. Em primeiro lugar, é
sino, é não devemos esquecer o delicioso capítulo que sobre este instrumento da
igreja escreveu Chateaubriand. Em segundo lugar, deu bons espetáculos à gente
que ia ver cá de baixo o sineiro agarrado a ele. Um dia, é certo, o sineiro voou da
torre e veio morrer em pedaços nas pedras do largo; morreu no seu posto.
142
Aquela igreja tem uma história interessante. Vês ali na sacristia, entre os
retratos de corretores, um velho Siqueira, calção e meia, sapatos de fivela, cabeleira
postiça, e chapéu de três bicos na mão? Foi um dos maiores serviçais daquela casa.
Síndico durante trinta e um anos, morreu em 1811, merecendo que vá ao fim do
primeiro século e entre pelo segundo. O que mais me interessa nele, é a pia fraude
que empregava para recolher dinheiro e continuar as obras da igreja. Aos que
desanimavam, respondia que contassem com algum milagre do patriarca. De noite,
ia ele próprio ao adro da igreja, chegava-se à caixa das esmolas e metia-lhe todo o
dinheiro que levava, de maneira que, aos sábados, aberta a caixa, davam com ela
pejada do necessário para saldar as dívidas. As rondas seriam poucas, a iluminação
escassa, fazia-se o milagre e com ele a igreja. Não digo que os Siqueiras
morressem, mas, tendo crescido a polícia e paralelamente a virtude, o dinheiro é
dado diretamente às corporações, e dali a notícia às folhas públicas.
Não faltará quem pergunte como é que tal milagre, feito às escondidas, veio a
saber-se tão miudamente que anda em livros. Não sei responder, provavelmente
houve espiões, se é que o amor da contabilidade exata não levou o velho Siqueira a
inscrever em cadernos os donativos que fazia. Há outro costume dele que justifica
esta minha suposição. Siqueira possuía navios; simulava (sempre a simulação!) ter
neles um marinheiro chamado Francisco de Paula, e pagava à igreja o ordenado
correspondente. O donativo era assim ostensivo por amor da contabilidade.
A contabilidade podia trazer-me a cousas mais modernas, se me sobrasse
tempo; mas o tempo é quase nenhum. Resta-me o preciso para dizer que também
fez o seu aniversário, esta semana, a inauguração do Panorama do Rio de Janeiro,
na Praça Quinze de Novembro. Foi em 1891, há apenas cinco anos, mas os
centenários não são blocos inteiros, fazem-se de pedaços. As pirâmides tiveram o
mesmo processo. A arte não nasceu toda nem junta. O Panorama resistiu, notai
bem, às balas da revolta. Certa casa próxima, onde eu ia por obrigação, foi mais
uma vez marcada por elas, na própria sala em que me achei, caíram duas. Conservo
ainda, ao pé de algumas relíquias romanas, uma que lá caiu na segunda-feira 2 de
outubro de 1893. o Panorama do Rio de Janeiro não recebeu nenhuma, ou resistiulhes
por um prodígio só explicável à vista dos fins artísticos da construção. Que as
paixões políticas lutem entre si, mas respeitem as artes. anda nas suas aparências.
Adeus. O sol arde, as cigarras cantam, um cão late, passam um bond.
Consolemo-nos com a idéia de que um dia, de todos estes fenômenos, —nem o sol
existirá. É banal, mas o calor não dá idéias I novas. Adeus.
[178]
[19 janeiro]
Se não fosse o receio de cair no desagrado das senhoras, dava-lhes um
conselho. O conselho não é casto, não é sequer respeitoso, mas econômico, e por
estes tempos de mais necessidade que dinheiro a economia é a primeira das
virtudes.
Vá lá o conselho. Sempre haverá algumas que me perdoem. A poesia
brasileira, que os poetas andaram buscando na vida cabocla, não deixando mais
que os versos bons e maus, isto nos dai agora, senhoras minhas. Fora com obras de
modistas; mandai tecer a simples araçóia, feita de finas plumas, atai-a à cintura e
vinde passear cá fora. Podeis trazer um colar de cocos, um cocar de penas e mais
nada. Escusai leques, luvas, rendas, brincos, chapéus, tafularia inútil e custosíssima.
A dúvida única é o calçado. Não podeis ferir nem macular os pés acostumados à
143
meia e à botina, nem nós podemos calçar-vos, como João de Deus queria fazer à
descalça dos seus versos:
Ah! não ser eu o mármore em que pisas...
Calçava-te de beijos.
Não seria decente nem útil; para essa dificuldade creio que o remédio seria
inventar uma alpercata nacional, feita de alguma casca brasileira, flexível e sólida. E
estáveis prontas. Nos primeiros dias, o espanto seria grande, a vadiação maior e a
circulação impossível, mas, a tudo se acostuma o homem. Demais, o próprio homem
teria de mudar o vestuário. Um pedaço de couro de boi, em forma de tanga, sapatos
atamancados para durarem muito, um chapéu de pele eterna, sem bengala nem
guarda-chuva. O guarda-chuva não era só desnecessário, mas até pernicioso, visto
que a única medicina e a única farmácia baratas passam a ser (como eu dizia a uma
amiga minha) o Padre Kneipp e a água pura.
Em verdade, esse padre alemão, nascido para médico, descobriu a melhor
das medicações para um povo duramente fanado na saúde. Quem mais tomará as
pílulas de Vichi comprimidas , o vinho de Labarraque ou a simples magnésia de
Murray (estrangeiras ou nacionais, pois que o preço é o mesmo), quem mais as
tomará, digo, se basta passear na relva molhada, pés descalços, com dous minutos
de água fria no lombo, para não adoecer? Conheço alguns que vão trocar a alopatia
pela homeopatia, a ver se acham simultaneamente alívio à dor e às algibeiras. A
homeopatia é o protestantismo da medicina; o kneippismo é uma nova seita, que
ainda não tem comparação na história das religiões, mas que pode vir a triunfar pela
simplicidade. O homem nasceu simples, diz a Escritura; mas ele mesmo é que se
meteu em infinitas questões. Para que nos meteremos em infinitas beberagens,
patrícios da minha alma''
Dizem que a vida em São Paulo é muito cara. Mas São Paulo, se quiser, terá
a saúde barata; basta meter-se-lhe na cabeça ir adiante de todos como tem ido.
Inventará novos medicamentos e vendê-los-á por preço cômodo. Leste a circular do
presidente convidando os demais Estados produtores de café para uma conferência
e um acordo? ~ documento de iniciativa, ponderado e grave. Aproximando-se a crise
da produção excessiva, cuida de aparar-lhe os golpes antecipadamente. Mas nem
só de café vive o homem, caso em que se acha também a mulher. Assim que duas
paulistas ilustres tratam de abrir carreira às moças pobres para que disputem aos
homens alguns misteres, até agora exclusivos deles. Eis aí outro cuidado prático.
Estou que verão a flor e o fruto da árvore que plantarem. Quando à vida espiritual
das mulheres, basta citar as duas moças poetisas que ultimamente se revelaram,
uma das quais, D. Zalina Rolim, acaba de perder o pai. A outra, D. Júlia Francisca
da Silva, tema poesia doce e por vezes triste como a desta rival que cá temos e se
chama Júlia Cortmes; todas três publicaram há um ano os seus livros.
Falo em poetisas e em mulheres; é o mesmo que falar em João de Deus, que
deve estar a esta hora depositado no panthéon dos Jerônimos, segundo nos
anunciou o telégrafo. Não sei se ele adorou poetisas; mas que adorou mulheres, é
verdade, e não das que pisavam tapetes, mas pedras, ou faziam meia à porta da
casa, como aquela Maria, da Carta, que é a mais deliciosa de suas composições. Se
essa Maria foi a mais amada de todas, não podemos sabê-lo, nem ele próprio o
saberia talvez. Há uma longa composição sem título, de vário metro, em que há
lágrimas de tristeza; mas as tristezas podem ser grandes e as lágrimas passageiras
ou não, sem que daí se tire conclusão certa. A verdade é que todo ele e o livro são
mulheres, e todas as mulheres rosas e flores. A simpleza, a facilidade, a
144
espontaneidade de João de Deus são raras, a emoção verdadeira, o verso cheio de
harmonia quase sem arte, ou de arte natural que não dá tempo a recompô-la.
Um dos que verão passar o préstito de João de Deus será esse outro
esquecido, — como esquecido estava o autor das Flores do Ca''7po, patrício nosso
e poeta inspirado, Luis Guimarães. Não digo esquecido no passado, porque os seus
versos não esquecem aos companheiros nem aos admiradores, mas no presente.
Um de seus dignos rivais, Olavo Bilac, deu-nos há dias dous lindos sonetos do
poeta, que ainda nos promete um livro. A doença não o matou, a solidão não lhe
expeliu a musa, antes a conservou tão maviosa como antes. O que a outros bastaria
para descrer da vida e da arte, a este da força para empregar na arte os pedaços de
vida que lhe deixaram e que valerão por toda ela. O poeta ainda canta. Crê no que
sempre creu.
Há fenômenos contrários. Vede Zola. A notícia de sexta-feira traz um
telegrama contando o resumo da entrevista de um repórter com o célebre
romancista, acerca da chantagem que apareceu nos jornais franceses. Zola deu as
razões do mal e conclui que "há excesso de liberdade e falta de ideais cristãos,'.
Deus meu! e por que não uma cadeira na Academia francesa?
[179]
[8 março]
No tempo do Romantismo, quando o nosso Alvares de Azevedo cantava,
repleto de Byron e Musset:
A Itália! sempre a Itália delirante!
E os ardentes saraus e as noites belas!
A Itália era um composto de Estados minúsculos, convidando ao amor e à
poesia, sem embargo da prisão em que pudessem cair alguns liberais. Há livros que
se não escreveriam sem essa divisão política, a Chartreuse cie Parme, por exemplo;
mal se pode conceber aquele Conde Mosca senão sendo ministro de Ernesto IV de
Parma. O ministro Crispi não teria tempo nem gosto de ir namorar no Scala de Milão
a Duquesa de Sanseverina. Era assim parcelada que nós, os rapazes anteriores à
tríplice aliança e apenas contemporâneos de Cavour, imaginávamos a Itália e
passeávamos por ela.
Agora a Itália é um grande reino que já não fala a poetas, apesar do seu
Carducci, mas a políticos e economistas, e entra a ferro e fogo pela África, como as
demais potências européias. O grande desastre desta semana, se foi sentido por
todos os amigos da Itália, é também prova certa de que a civilização não é um
passeio, e para vencer o próximo imperador da Etiópia é necessário haver muita
constância e muita força. Os italianos mostraram essa mesma opinião dando com
Crispi em terra,—por quantos meses? Eis o que só nos pode dizer o cabo, em
alguma bela manhã, ou bela tarde, se a Noticia se antecipar às outras folhas.
Quanto à guerra, é certo que continuará e o mesmo ardor com que o povo derribou
Crispi saudará a vitória próxima e maiormente a definitiva. Cumpra-se o que dizia o
poeta naqueles versos com que Machiavelli fecha o seu livro mais célebre:
Che l'antico valore
Nell'italici cuor mon è ancor morto.
Nós cá não temos Menelick, mas temos o cambio, que, se não é abexim
como ele, é de raça pior. Inimigo sorrateiro e calado, já está em oito e tanto e
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ninguém sabe onde parará; é capaz de nem parar em zero e descer abaixo de]e uns
oito graus ou nove. Nesse dia, em vez de possuirmos trezentos réis em cada dez
tostões, passaremos a dever os ditos trezentos réis, desde que a desgraça nos
ponha dez tostões nas mãos. Donde se conclui que até a ladroeira acabará. Roubar
para quê?
O mal do cambio parece-se um pouco com o da febre amarela, mas, para a
febre amarela, a magnésia fluida de Murray. que até agora só curava dor de cabeça
e indigestões, é específico provado reste verão, segundo leio impresso em grande
placa de ferro. Que magnésia há contra o cambio? Que Murray já descobriu o modo
certo de acabar com a decadência progressiva do nosso triste dinheiro com as
fomes que aí vêm, e os meios luxos, os quartos de luxo, outra conseqüências
melancólicas deste mal?
Um economista apareceu esta semana lastimando a sucessiva queda de
cambio e acusando por ela o Ministro da Fazenda. Não lhe contesta a inteligência,
nem probidade, nem zelo, mas nega-lhe tino e, em prova disto, pergunta-lhe à
queima-roupa. Por que não vende a estrada Central do Brasil? A pergunta é tal que
nem dá tempo ao ministro para responder que tais matérias pendem de estudo, em
primeiro lugar, e, em segundo lugar, que ao Congresso Nacional cabe resolver por
último.
Felizmente, não é esse o único remédio lembrado pelo dito economista. Há
outro, e porventura mais certo: é auxiliar a venda da Leopoldina e suas estradas.
Desde que auxilie esta venda, o ministro mostrará que não lhe falta tino
administrativo. Infelizmente, porém, se o segundo remédio por consertar as finanças
federais, não faz a mesma causa às do Estado do Rio de Janeiro, tanto que este,
em vez de auxiliar a venda das estradas da Leopoldina, trata de as comprar para si.
Cumpre advertir que a eficácia deste outro remédio não está na riqueza da
Leopoldina, porquanto sobre esse ponto duas opiniões se manifestaram na
assembléia fluminense. Uns dizem que a companhia deve vinte e dous mil contos ao
Banco do Brasil e está em demanda com o Hipotecário, que Lhe pede seis mil.
Outros não dizem nada. Entre essas duas opiniões, a escolha é difícil. Não obstante,
vemos estes dous remédios contrários: no Estado do Rio a compra da Leopoldina é
necessária para que a administração tome conta das estradas, ao passo que a
venda da Central é também necessária para que o governo da União não a
administre. Verité au-deçà, erreur au-delà.
Neste conflito de remédios ao cambio e às finanças, invoquei a Deus,
pedindo-lhe que, como a Tobias, me abrisse os olhos. Deus ouviu-me, um anjo
baixou dos céus, tocou-me os olhos e vi claro. Não tinha asas, trazia a forma de
outro economista, que publicou anteontem uma exposição do negócio assaz
luminosa. Segundo este outro economista, a compra da Leopoldina deve ser feita
pelo Estado do Rio de Janeiro, porque tais têm sido os seus negócios precipitados e
ilegais (emprega ainda outros nomes feios, dos quais o menos feio é mixórdia) que
não haverá capitalistas que a tomem. Não havendo capitalistas que comprem a
Leopoldina, cabe ao Estado do Rio de Janeiro comprá-la, atender aos credores, e
não devendo administrar as estradas, "porque o Estado é péssimo administrador",
venderá depois a Leopoldina a particulares. Foi então que entendi que a verdade é
só um, au-deçà e au-delà, a diferença é transitória, é só o tempo de comprar e
vender, ainda com algum sacrifício, diz o economista! No intervalo mete-se uma
rolha na boca dos credores. Sabe-se onde é que os alfaiates põem a boca dos
credores. Talvez algum americanista, exaltado ou não, ainda se lembre da palavra
de Cleveland quando pela segunda vez assumiu o governo dos Estados Unidos. A
146
palavra é paternalismo e foi empregada para definir o sistema dos que querem fazer
do governo um pai. Cleveland condena fortemente esse sistema, mas ele nada pode
contra a natureza. O Estado não é mais que uma grande família, cujo chefe deve ser
pai de todos.
Aliviado como fiquei do conflito, abri novamente o último livro de Luís Murat e
pus-me a reler os versos do poeta. Deus meu, aqui não há estradas nem compras,
aqui ninguém deve um real a nenhum banco, a não ser o banco de Apolo: mas este
banco empresta para receber em rimas, e o poeta pagou-lhe capital e juros. Posto
que ainda moço, Luís Murat tem nome feito, nome e renome merecido. Os versos
deste segundo volume das Ondas já foi notado que desdizem do prefácio; mas não
é defeito dos versos, senão do prefácio. Os versos respiram vida íntima, amor e
melancolia, as próprias páginas da Tristeza do Caos, por mais que queiram, a
princípio, ficar na nota Impessoal, acabam no pessoal puro e na desesperança.
O poeta tem largo fôlego. Os versos são, às vezes menos castigados do que
cumpria, mas é essa mesma a índole do poeta, que Lhe não permite senão produzir
como a natureza: os passantes que colham as belas flores entre as ramagens que
não têm a mesma igualdade e correção. Luís Murat cultiva a antítese de Hugo como
Guerra Junqueiro; eu pedir-lhe-ia moderação, posto reconheça que a sabe empregar
com arte. Por fim, aqui Lhe deixo as minhas palavras; é o que pode fazer a crônica
destes dias.
[180]
[2 março]
Se todos quantos empunham uma pena, não estão a esta hora tomando
notas e coligindo documentos sobre a história desta cidade não sabem o que são
cinqüenta contos de réis. Uma lei municipal votada esta semana, destina "ao
historiador que escrever a história completa do Distrito Federal desde os tempos
coloniais até a presente época", aquela valiosa quantia. O prazo para compor a obra
é de cinco anos. O julgamento será confiado a pessoas competentes a juízo do
prefeito.
Não serei eu que maldiga de um ato que põe em relevo o amor da cidade e o
apreço das letras. Os historiadores não andam tão fartos, que desdenhem dos
proveitos que ora Lhes oferecem, nem os legisladores são tão generosos, que Lhes
dêem todos os dias um prêmio deste vulto. Se todas as capitais da República e
algumas cidades ricas concederem igual quantia a quem Lhes escrever as
memórias, e se o Congresso Federal fizer a mesma cousa em relação ao Brasil, mas
por preço naturalmente maior,—digamos quinhentos contos de réis, —a profissão de
historiador vai primar sobre muitas outras deste país.
Há só dous pontos em que a recente lei me parece defeituosa. O primeiro e o
prazo de cinco anos, que acho longo, em vista do preço. Quando um homem se põe
a escrever uma história, sem estar com o olho no dinheiro, mas por simples amor da
verdade e do estilo, é natural que despenda cinco anos ou mais no trabalho; mas
cinqüenta contos de réis excluem qualquer outro ofício, mal dão seis horas de sono
por dia, de maneira que, em dous anos, está a obra, acabada e copiada. Muito antes
do fim do século podem ter os cariocas a sua história pronta, substituindo as
memórias do Padre Perereca e outras.
O segundo ponto que me parece defeituoso na lei, é que a competência das
pessoas que houverem de julgar a obra, dependa do juízo do prefeito. Nós não
sabemos quem será o prefeito daqui a cinco anos, pode ser um droguista, e há duas
147
espécies de droguistas, uns que conhecem da competência literária dos críticos,
outros que não. Suponhamos que o eleito é da segunda espécie. Que pessoas
escolhera ele para dizer dos méritos da composição? Os seus ajudantes de
laboratório?
Eu, se fosse intendente, calculando que a história do Distrito Federal podia
esperar ainda dous ou três anos, proporia outro fim a uma parte dos contos de réis.
Tem-se escrito muito ultimamente acerca do Padre José Maurício, cujas
composições, apesar de louvadas desde meio século e mais, estão sendo
devoradas pelas traças. Houve idéia de catalogá-las, repará-las e restaurá-las, e foi
citado o nome do Sr. Alberto Nepomuceno como podendo incumbir-se de tal
trabalho. Este maestro, em carta que a Gazeta inseriu quinta-feira, lembrou um
alvitre que "torna a propaganda mais prática, sem nada perder da sua
sentimentalidade atual, e põe ao alcance de todos as produções do genial
compositor". O Sr. Nepomuceno desengana que haja editor disposto a imprimir tais
obras de graça, empatando, sem esperança de lucro, uma soma não inferior a
quarenta contos. A concessão da propriedade é um presente de gregos. O alvitre
que propõe, é reduzir para órgão o acompanhamento orquestral das diversas
composições e publicá-las. Custaria isto dez contos de réis.
Ora, se o Distrito Federal quisesse divulgar as obras de José Maurício,
empregaria nelas os dez contos do método Nepomuceno, ou os quarenta, se Lhes
desse na cabeça imprimir as obras todas, integralmente. Em ambos os casos
ficaríamos esperando o historiador do distrito, salvo se houvesse homem capaz de
escrever a história por dez ou ainda por quarenta contos; cousa que me não parece
impossível.
Um dos que têm tratado ultimamente das obras e da pessoa do padre, é o
Visconde de Taunay. A competência deste, unida ao seu patriotismo, dá aos escritos
que ora publica na Revista Brasileira, muito valor; é uma nova cruzada que se
levanta, como a do tempo de Porto Alegre. Se não ficar no papel, como a de outrora,
dever-se-á a Taunay uma boa parte do resultado.
Outro que também está revivendo matéria do passado, na Revista Brasileira,
é Joaquim Nabuco. Conta a vida de seu ilustre pai, não à maneira seca das
biografias de almanaque, mas pelo estilo dos ensaios ingleses. Deixe-me dizer-lhe,
pois que trato da semana, que o seu juízo da Revolução Praieira, vindo no último
número, me pareceu excelente. Não traz aquele cheiro partidário, que sufoca os
leitores meramente curiosos, como eu. A mais completa prova da isenção do espírito
de Nabuco está na maneira por que funde os dous retratos de Tosta, feitos a pincel
partidário, um por Urbano, outro por Figueira de Melo. Cheguei a ver Urbano, em
1860; vi Tosta, ainda robusto, então ministro, dizendo em aparte a um senador da
oposição que Lhe anunciava a queda do gabinete: "Havemos de sair, não havemos
de cair!" Nesta única palavra sentia-se o varão forte de 1848. Quanto a Nunes
Machado, trazia-o de cor, desde menino, sem nunca o ter visto: é que o retrato dele
andava em toda parte De Pedro Ivo não conhecia as feições, mas conhecia os belos
versos de Álvares de Azevedo, onde os rapazinhos do meu tempo aprendiam a
derrubar (de cabeça) todas as tiranias.
[181]
[5 abril]
Quarta-feira de trevas contradisse este nome pela presença de um grande sol
claro. Comigo deu-se ainda um incidente, que mais agravou a divergência entre a
148
significação do dia e a alegria exterior. Eram onze horas da manhã, mais ou menos,
ia atravessando a Rua da Misericórdia, quando ouvi tocar uma valsa a dous tempos.
Graciosa valsa; o instrumento é que me não parecia piano, e desde criança ouvi
sempre dizer que em tal dia não se canta nem toca. Em pouco atinei que eram os
sinos da igreja de S. José. Pois digo-lhes que dificilmente se Lhe acharia falha de
uma nota, demora ou precipitação de outra; todas saíam muito bem. O rei Davi, se
ali estivesse, faria como outrora, dançaria em plena rua. A arca do Senhor seria a
própria igreja de S. José, descendente daquele santo rei, segundo S. Mateus.
A valsa acabou, mas o silêncio durou poucos minutos. Ouvi algumas notas
soltas e espaçadas, esperei: era um trecho de Flotow. Conheceis a ópera Marta?
Era a "Ultima Rosa de Verão",—a velha cantiga The Last Rose of Summer,—música
sem trevas, mas cheia daquela melancolia doce de quem perdeu as flores da vida.
Não faria lembrar Jesus; antes imaginei que, se ele ali viesse, podia compor mais
uma parábola:
O reino dos céus é semelhante a uma igreja, em cuja torre se tocam as valsas
da terra; enquanto a torre chama a dançar, a igreja chama a rezar; bem-aventurados
aqueles que, pela oração, esquecerem a valsa, e deixarem murchar sem pena todas
as rosas deste mundo...
Outra dissonância da quarta-feira de trevas, —mas desta vez a culpa é do
calendário , — foi cair no dia prime iro de abril . Não consta que alguém fosse
embaçado. A única notícia de que haveria aqui um terremoto, quinze horas depois
de 31 de março, não tirou o sono a ninguém, mormente depois que a gente de
Valparaíso vivou de terror pânico os dias 29 e 3o daquele mês, por causa de igual
fenômeno, igualmente anunciado. O pequeno tremor do dia 1, em Santiago, não
prova nada em favor da profecia ou da ciência.
Todos os peixes apodrecem, leitor, não é de admirar que os carapetões de
abril, chamados peixes pelos franceses, venham a ficar moídos. Nesta cidade, em
que há contos-do-vigário. ninguém já cai nos laços de abril. A princípio caíam
muitos. O Correio Mercantil foi o primeiro, creio eu, que se lembrou de inventar
prodígios, exposições, embarques, qualquer cousa extraordinária, na própria manhã
daquele dia. Naquele tempo, se me não engano, havia só a folhinha de Laemmert.
Os jornais não as davam, menos ainda as lojas de papel. Pouca gente se lembrava
da fatal data. Os curiosos corriam ao ponto indicado para ver o caso espantoso. A
princípio esperavam; anos depois, já não esperavam, mas passavam e tornavam a
passar. Afinal era mais fácil não acudir a ver uma cousa real, que a procurar uma
invenção.
Conquanto a credulidade seja eterna, é preciso fazer com ela o que se faz
com a moda: variar de feitio. Valentim Magalhães variou de feitio, limitando-se a dar
este título de "Primeiro de Abril" a um dos seus contos do livro agora publicado. É
uma simples idéia engenhosa. Bricabraque é o nome do livro; compõe-se de
fantasias, historietas, crônicas, retratos, uma idéia, um quadro, uma recordação,
recolhidos daqui e dali, e postos em tal ou qual desordem. A variedade agrada, o
tom leve põe relevo à observação graciosa ou cáustica, e o todo exprime bem o
espírito agudo e fértil deste moço. O título representa a obra, salvo um defeito, que
reconheci, quando quis reler alguma das suas páginas, "Velhos Sem Dono", por
exemplo; o livro traz índice. Um Bricabraque verdadeiro nem devia trazer índice.
Quem quisesse reler um conto, que se perdesse a ler uma fantasia.
A vida, que é também um bricabraque, pela definição que Lhe dá Valentim
Magalhães, (eu acrescentaria que é algumas vezes um simples e único negócio) a
vida tem o seu índice no cemitério; mas que preço que levam os impressores por
149
esta última página! Agora mesmo dão os jornais notícia de um carro fúnebre que
chegou à casa do defunto duas horas depois da pactuada. Acrescentam que, ao que
parece, o coche foi servir primeiro a outro defunto. Enfim, que é um carro velho,
estragado e sujo, não contando que a cova estava cheia de lodo, e que o custo total
do enterro é pesadíssimo. Tudo isso forma o índice da vida, esta pode ser cara,
barata, mediana ou até gratuita, mas a morte é sempre onerosa. Acusa-se disto ~
Empresa Funerária. Não pode ser; a culpa da impontualidade é antes dos que
morrem em desproporção com o material da empresa. Fala-se do privilégio. Não há
privilégio, há educação da liberdade; assim como foi preciso preparar a liberdade
política, antes de a decretar, assim também é mister preparar a liberdade funerária.
Cumpre notar que tal queixa em tal semana é descabida. Tudo se deve
perdoar por estes dias. Cristo, morrendo, perdoou aos próprios algozes, "por não
saberem o que faziam". Não se trata aqui de algozes propriamente ditos, e pode ser
também que a empresa não saiba o que está fazendo. Em todo caso, a queixa devia
ter sido adiada para amanhã ou depois.
Faço igual reflexão relativamente ao juiz da comarca do Rio Grande, que,
segundo telegramas desta semana, vai ser metido em processo. A causa sabe-se
qual é. Não consentiu o juiz em que os jurados votem a descoberto, como dispõe a
reforma judiciária do Estado; afirma ele que a Constituição Federal é contrária a
semelhante cláusula. Não sou jurista, não posso dizer que sim nem que não. O que
vagamente me parece, é que se o estatuto político do Estado difere em alguma
parte do da União, é impertinência não cumprir o que os poderes do Estado
mandam. Mas, de um ou de outro modo, creio que não foi oportuno mandar falar
agora sobre processo nem censurar o magistrado antes de amanhã.
Esta questão leva-me a pensar que, se não puder conciliar o voto secreto
com o voto público, ou ainda mesmo que se conciliem é ocasião de modificar a
instituição, a ser verdade o que dizem dela pessoas conspícuas. Na assembléia
legislativa do Rio de Janeiro, o Sr. Alfredo Watheley declarou há dous meses, entre
outras cousas, que "em regra o júri é um passa-culpas". Ao que o Sr. Leoni Ramos
aduziu: "É muito raro que no júri, perguntando o juiz aos jurados se precisam ouvir
as testemunhas, eles respondam que sim, dizem sempre que as dispensam."
Também eu ouvi igual dispensa, mas relativamente ao interrogatório do próprio réu.
Foi há muitos anos. Interrogado sobre o delito, pediu ele para não falar de assuntos
que Lhe eram penosos, e os jurados concordaram cm não ouvi-lo. Realmente, o
acusado merecia piedade, era um caso de honra, mas dispensada a audiência do
réu e das testemunhas, não tarda que se faça o mesmo ao promotor e ao defensor,
e finalmente à leitura do processo, aliás penosíssima de ouvir, mormente se o
escrivão apenas sabe escrever.
[182]
[26 abril]
"Terminaram as festas de Shakespeare", diz um telegrama de Londres, 24,
publicado anteontem, na Notícia. Eu, que supunha o mundo perdido no meio de
tantas guerras atuais e iminentes, crises formidáveis, próximas anexações e
desanexações, respirei como alguém que sentisse tirar-lhe um peso de cima do
peito. Que me importa já saber se o príncipe da Bulgária comungou ou não, esta
semana, tendo-lhe o papa negado licença? Provavelmente não comungará mais,
tudo por haver consentido que o filho fosse batizado na religião ortodoxa. Quantos
outros pais terão deixado batizar os filhos em religiões alheias, sem perder por isso o
150
direito de comungar; basta-lhes entrar na igreja próxima e falar ao vigário. Não são
príncipes, não governam, não correm o perigo das alturas.
Cuba, que me importa agora Cuba? A religião come gente, sangue e dinheiro;
a independência far-se-á ou não. Segundo um homem desconhecido, estava feita
desde quarta-feira, e assim enganou a duas ou três folhas desta cidade, ação de
muito mau gosto. não só pela invenção dos decretos de Madri, como pela da morte
de um hóspede do Hotel de Estrangeiros. O dono deste perdeu mais que ninguém,
pois que Cuba, tarde ou cedo, alcançará a independência, o cônsul e o ministro de
Espanha explicaram-se, mas a morte do hóspede é mais que a de Maceo ou
Máximo Gómez. Lede bem a carta com que o dono do Hotel de Estrangeiros correu
à Cidade do Rio para afirmar que o defunto Villagarcia (se alguém há desse nome)
nunca ali esteve, que ninguém morreu nem adoeceu naquela casa, apesar da
epidemia recente, que os seus esforços foram grandes, e a notícia da morte ofende
os seus interesses. É quase um reclamo, ou—como dizem os mal-intencionados,—
um preconício.
E tão grave o fato de morrer alguém nas hospedarias, que o dono de uma
delas, nesta cidade, só por fina inspiração, pode há tempos salvar a honra do
estabelecimento. Não disse a ninguém que Lhe morrera um hóspede, mas que
adoecera e queria ir-se embora. Mandou vir um carro, fez meter dentro o cadáver,
com as cautelas devidas a um enfermo, e sentou-se ao pé dele.—"Então, que é
isso? dizia ele ao cadáver, enquanto o cocheiro dava volta ao carro. O senhor,
saindo daqui, vai piorar e talvez morra; por que não fica? Aqui, antes de quinze dias,
está curado e bom. Ande, fique; se quer, mando o carro embora. Não? Pois faz
muito mal..." Os hóspedes, que ouviam esta exortação, lastimavam a teimosia do
enfermo, e almoçaram com o apetite do costume.
Guerras africanas, rebeliões asiáticas, queda do gabinete francês, agitação
política, a proposta da supressão do Senado, a caixa do Egito, o socialismo, a
anarquia, 2 crise européia, que faz estremecer o solo, e só não explode porque a
natureza, minha amiga, aborrece este verbo, mas há de estourar, com certeza, antes
do fim do século, que me importa tudo isso? Que me importa que, na ilha de Creta,
cristãos e muçulmanos se matem uns aos outros, segundo dizem telegramas de 25?
E o acordo, que anteontem estava feito entre chilenos e argentinos, e já ontem
deixou de estar feito, que tenho eu com esse sangue que correu e com o que há de
correr?
Noutra ocasião far-me-ia triste a notícia dos vinte e tantos autos roubados a
uma pretora desta cidade. Vinte e um votaram ao cartório, mas um deles não trazia
petição inicial nem sentença, por modo que ficou o processo inútil. Uma destas
manhãs, estando o pretor ocupado, v eram dizer-lhe que acabavam de furtar mais
autos, correu ao cartório, viu que era exato. O mesmo pretor despediu há dias um
empregado do cartório. que estava ao seu serviço; a razão é porque o homem,
mediante dinheiro tomava a si obter despachos favoráveis. Chegou ao ponto,
segundo li, de fazer caminhar bem um negócio, a troco de certa quantia, recebida
esta, fez desandar o negócio em favor da outra parte; a troco de igual remuneração.
Reincidência ou arrependimento? Eis aí um mistério.
Outro mistério é que só vejo publicadas as ações, não os nomes dos autores.
Nem sempre é necessário que estes sejam dados ao prelo. Casos há em que o
silêncio é conveniente, não para impedir que os autores fujam. mas por motivos que
me escapam. Seja como for, ainda bem que os autos se descobrem, os
intermediários de despachos desaparecem, e o ar puro entra nas pretorias, na
terceira, quero dizer, que é onde se deram os fatos aqui narrados. Entretanto, outra
151
seria a minha impressão disto, como do resto, se não fosse o telegrama de Londres,
24.
"Terminaram as festas de Shakespeare..." O te1eorama acrescenta que "o
delegado norte-americano teve grande manifestação de simpatia". O doutrina de
Monroe, que é boa, como lei americana, é cousa nenhuma contra esse abraço das
almas inglesas sobre a memória do seu extraordinário e universal representante. Um
dia, quando Já não houver império britânico nem república norte-americana haverá
Shakespeare; quando se não falar inglês, falar-se-á Shakespeare. Que valerão
então todas as atuais discórdias? O mesmo que as dos gregos, que deixaram
Homero e os trágicos.
Dizem comentadores de Shakespeare que uma de suas peças, a Tempest, é
um símbolo da própria vida do poeta e a sua despedida. Querem achar naquelas
últimas palavras de Próspero, quando volta para Milão, "onde de cada três
pensamentos um será para a sua sepultura", uma alusão à retirada que ele fez do
palco, logo depois. Realmente, morreu daí a pouco, para nunca mais morrer. Que
valem todas as expedições de Dongola e do Transvaal contra os combates do
Ricardo III? Que vale a caixa egípcia ao pé dos três mil ducados de Shylock? O
próprio Egito, ainda que os ingleses cheguem a possuí-lo, que pode valer ao pé do
Egito da adorável Cleópatra? Terminaram as festas da alma humana.
[183]
[17 maio]
Era no bairro Carceler, às sete horas da noite.
A cidade estivera agitada por motivos de ordem técnica e politécnica.
Outrossim, era a véspera da eleição de um senador para preencher a vaga do finado
Aristides Lobo. Dous candidatos e dous partidos disputavam a palma com alma. Vá
de rima, sempre é melhor que disputá-la a cacete, cabeça ou navalha, como se
usava antigamente. A garrucha era empregada no interior. Um dia, apareceu a Lei
Saraiva, destinada a fazer eleições sinceras e sossegadas. Estas passaram a ser de
um só grau. Oh! ainda agora me não esqueceram os discursos que ouvi, nem os
artigos que li por esses tempos atrás pedindo a eleição direta! A eleição direta era a
salvação pública. Muitos explicavam: direta e censitária. Eu, pobre rapai sem
experiência, ficava embasbacado quando ouvia dizer que todo o mal das eleições
estava no método; mas, não tendo outra escola, acreditava que sim, e esperava a
lei.
A lei chegou. Assisti às suas estréias. e ainda me lembro que na minha seção
ouviam-se voar as moscas. Um dos eleitores veio a mim e por sinais me fez
compreender que estava entusiasmado com a diferença entre aquele sossego e os
tumultos do outro método. Eu também por sinais, achei que tinha razão, e contei-lhe
algumas eleições antigas. Nisto o secretário começou a suspirar felizmente os
nomes dos eleitores. Presentes, posto que censitários, poucos. Os chamados iam na
ponta dos pés até à urna, onde depositavam uma cédula, depois de examinada pelo
presidente da mesa; em seguida assinavam silenciosamente os nomes na relação
dos eleitores, saíam com as cautelas usadas em quarto de moribundo. A convicção
é que se tinha achado a panacéia universal.
Mas, como ia dizendo, era no Bairro Carceler às 7 horas da noite.
O Bairro Carceler estava quase solitário. Um ou outro homem passava,
mulher nenhuma, rara loja aberta, e mal se ouviam os bonds que chegavam e
partiam. Eu ia andando à procura do Hotel do Globo Recordava cousas passadas,
152
um incêndio, uma festa, a ponte das barcas um pouco adiante, a Praia Grande do
outro lado, e a assembléia provincial, vulgarmente chamada salinha. A salinha
acabou, e a Praia Grande ficou decapitada, passando a assembléia com outra feição
a legislar em Petrópolis. Nem por isso perdeu as metáforas de outro tempo. Ainda
agora, em Petrópolis, um orador devolveu a outro as injúrias que lhe ouvira,
devolveu-as intactas, tal qual se costumava na antiga Praia Grande. As injúrias
devolvidas intactas não ferem. Algumas vezes arredam-se com a ponta da bota, ou
deixam-se cair no tapete da sala; mas a melhor fórmula é devolvê-las intactas. A
ponta da bota é um gesto, a queda no tapete é desprezo, mas para injúrias
menores. A última fórmula de desdém, a mais enérgica, é devolvê-las intactas.
Quem inventou este modo de correspondência, está no céu.
Chego ao Hotel do Globo. Subo ao segundo andar, onde acho já alguns
homens. São convivas do primeiro jantar mensal da Revista Brasileira. O principal de
todos, José Veríssimo, chefe da Revista e do Ginásio Nacional, recebe-me, como a
todos, com aquela afabilidade natural que os seus amigos nunca viram desmentida
um só minuto. Os demais convivas chegam, um a um, a literatura, a política, a
medicina, a jurisprudência, a armada, a administração... Sabe-se já que alguns não
podem vir, mas virão depois, nos outros meses.
Ao fim de poucos instantes, sentados à mesa, lembrou-me Platão; vi que o
nosso chefe tratava não menos que de criar também uma República, mas com
fundamentos práticos e reais. O Carceler podia ser comparado, por uma hora, ao
Pireu. Em vez das exposições, definições e demonstrações do filósofo, víamos que
os partidos podiam comer juntos, falar, pensar e rir, sem atributos, com iguais
sentimentos de justiça. Homens vindos de todos os lados,—desde o que mantém
nos seus escritos a confissão monárquica, até o que apostolou, em pleno império, o
advento republicano —estavam ali plácidos e concordes, como se nada os
separasse.
Uma surpresa aguardava os convivas, lembrança do anfiteatro. O cardápio
(como se diz em língua bárbara) vinha encabeçado por duas epígrafes, nunca
escritas pelos autores, mas tão ajustadas ao modo de dizer e sentir, que eles as
incluiriam nos seus livros. Não é dizer pouco, em relação à primeira, que atribui a
Renan esta palavra: "Celebrando a Páscoa, disse o encantador profeta da Galiléia:
tolerai-vos uns aos outros; é o melhor caminho para chegardes a amar-vos ..."
E todos se toleravam uns aos outros. Não se falou de política, a não ser
alguma palavra sobre a fundação dos Estados, mas curta e leve. Também se não
falou de mulheres. O mais do tempo foi dado às letras, às letras, à poesia, à filosofia.
Comeu-se quase sem atenção. A comida era um pretexto. Assim voaram as horas,
duas horas deleitosas e breves. Uma das obrigações do jantar era não haver
brindes: não os houve. Ao deixar a mesa tornei a lembrar-me de Platão, que acaba o
livro proclamando a imortalidade da alma; nós acabávamos de proclamar a
imortalidade da Revista.
Cá fora esperava-nos a noite, felizmente tranqüila, e fomos todos para casa,
sem maus encontros, que andam agora freqüentes. Há muito tiro, muita facada,
muito roubo, e não chegando as mãos para todos os processos, alguns hão de ficar
esperando. Ontem perguntei a um amigo o que havia acerca da morte de uma triste
mulher, ouvi que a morte era certa, mas que, tendo o viúvo desistido da ação, ficou
tudo em nada. Jurei aos meus deuses não beber mais remédio de botica. A
impunidade é o colchão dos tempos, dormem-se aí sonos deleitosos. Casos há em
que se podem roubar milhares de contos de réis... e acordar com eles na mão.
153
[184]
[31 maio]
A fuga dos doudos do Hospício é mais grave do que pode parecer à primeira
vista. Não me envergonho de confessar que aprendi algo com ela, assim como que
perdi uma das escoras da minha alma. Este resto de frase é obscuro, mas eu não
estou agora para emendar frases nem palavras. O que for saindo saiu, e tanto
melhor se entrar na cabeça do leitor.
Ou confiança nas leis, ou confiança nos homens. era convicção minha de que
se podia viver tranqüilo fora do Hospício dos Alienados. No bond, na sala, na rua,
onde quer que se me deparasse pessoa disposta a dizer histórias extravagantes e
opiniões extraordinárias, era meu costume ouvi-la quieto. Uma ou outra vez sucediame
arregalar os olhos, involuntariamente, e o interlocutor, supondo que era
admiração, arregalava também os seus, e aumentava o desconcerto do discurso.
Nunca me passou pela cabeça que fosse um demente. Todas as histórias são
possíveis, todas as opiniões respeitáveis. Quando o interlocutor, para melhor incutir
uma idéia ou um fato, me apertava muito o braço ou me puxava com forca nela gola,
longe de atribuir o gesto a simples loucura transitória. acreditava que era um modo
particular de orar ou expor. O mais que fazia, era persuadir-me depressa dos fatos e
das opiniões, não só por ter os braços mui sensíveis, como porque não é com dous
vinténs que um homem se veste neste tempo
Assim vivia. e não vivia mal. A prova de que andava certo, é que não me
sucedia o menor desastre. salvo a perda da paciência, mas a paciência elabora-se
com facilidade;—perde-se de manhã, já de noite se pode sair com dose nova. O
mais corria naturalmente. Agora porém, que fugiram doudos do hospício e que
outros tentaram fazê-lo (e sabe Deus se a esta hora já o terão conseguido), perdi
aquela antiga confiança que me fazia ouvir tranqüilamente discursos e notícias. 1? o
que acima chamei uma das escoras da minha alma. Caiu por terra o forte apoio.
Uma vez que se foge do hospício dos alienados (e não acuso por isso a
administração) onde acharei método para distinguir um louco de um homem de
juízo? De ora avante, quando alguém vier dizer-me as cousas mais simples do
mundo, ainda que me não arranque os botões, fico incerto se é pessoa que se
governa. ou se apenas está num daqueles intervalos lúcidos, que permitem ligar as
pontas da demência às da razão. Não posso deixar de desconfiar de todos.
A própria pessoa,—ou para dar mais claro exemplo,—o próprio leitor deve
desconfiar de si. Certo que o tenho em boa conta, sei que é ilustrado, benévolo e
paciente, mas depois dos sucessos desta semana, quem Lhe afirma que não saiu
ontem do Hospício? A consciência de lá não haver entrado não prova nada; menos
ainda a de ter vivido desde muitos anos, com sua mulher e seus filhos, como diz
Lulu Sênior. É sabido que a demência dá ao enfermo a visão de um estado estranho
e contrário à realidade. Que saiu esta madrugada de um baile? Mas os outros
convidados, os próprios noivos que saberão de si? Podem ser seus companheiros
da Praia Vermelha. Este é o meu terror. O juízo passou a ser uma probabilidade,
uma eventualidade, uma hipótese.
Isto, quanto à segunda parte da minha confissão. Quanto à primeira, o que
aprendi com a fuga dos infelizes do Hospício, é ainda mais grave que a outra. O
cálculo, o raciocínio, a arte com que procederam os conspiradores da fuga, foram de
tal ordem, que diminuiu em grande parte a vantagem de ter juízo. O ajuste foi
perfeito. A manha de dar pontapés nas portas para abafar o rumor que fazia Serrão
arrombando a janela do seu cubículo, é uma obra-prima; não apresenta só a
154
combinação de ações para o fim comum, revela a consciência de que, estando ali
por doudos, os guardas os deixariam bater à vontade, e a obra da fuga iria ao cabo,
sem a menor suspeita. Francamente, tenho lido, ouvido e suportado cousas muito
menos lúcidas.
Outro episódio interessante foi a insistência de Serrão em ser submetido ao
tribunal do júri, provando assim tal amor da absolvição e conseqüente liberdade, que
faz entrar em dúvida se trata de um doudo ou de um simples réu. Não repito o mais,
que está no domínio público e terá produzido sensações iguais às minhas. Deixo
vacilante a alma do leitor. Homens tais não parecem artífices de primeira qualidade,
espíritos capazes de levar a cabo as questões mais complicadas deste mundo?
Não quero tocar no caso de Paradeda Júnior, que lá vai mar em fora, por
achá-lo tardio. Meio século antes, era um bom assunto de poema romântico.
Quando, alto mar, o infeliz revelasse, por impulsão repentina, o seu verdadeiro
estado mental, a cena seria terrível e a inspiração germânica, mais que qualquer
outra, acharia aí uma bela página. O poema devia chamar-se "Der narrische Schiff."
Descrição do mar, do navio e do céu; a bordo, alegria e confiança. Uma noite,
estando a lua em todo o esplendor, um dos passageiros contava a batalha de
Leipzig ou recitava uns versos de Uhland. De repente, um salto, um grito, tumulto,
sangue: o resto seria o que Deus inspirasse ao poeta. Mas, repito, o assunto é
tardio.
De resto, toda esta semana foi de sangue,—ou por política, ou por desastre,
ou por desforço pessoal. O acaso luta com o homem para fazer sangrar a gente
pacata e temente a Deus. No caso de Santa Teresa, o cocheiro evadiu-se e
começou o inquérito. Como os feridos não pedem indenização à companhia, tudo irá
pelo melhor no melhor dos mundos possíveis. No caso da Copacabana, deu-se a
mesma fuga, com a diferença que o autor do crime não é cocheiro; mas a fuga não é
privilégio de ofício, e, demais, o criminoso já está preso. Em Manhuaçu continua a
chover sangue, tanto que marchou para lá um batalhão daqui. O comendador
Ferreira Barbosa, (a esta hora assassinado) em carta que escreveu o diretor da
Gazeta e foi ontem publicada, conta minuciosamente o estado daquelas paragens.
Os combates têm sido medonhos. Chegou a haver barricadas. Um anônimo
declarou pelo Jornal do Comércio que, se a comarca de S. Francisco tornar à antiga
província de Pernambuco, segundo propôs o Sr. Senador João Barbalho, não irá
sem sangue. Sangue não tarda a escorrer do jovem Estado (peruano) do Loreto...
Enxuguemos a alma. Ouçamos, em vez de gemidos, notas de música. Um
grupo de homens de boa vontade vai dar-nos música velha e nova, em concertos
populares, a preço cômodo. Venham eles, venham continuar a obra do Clube
Beethoven, que foi por tanto tempo o centro das harmonias clássicas e modernas.
Tinha de acabar, acabou. Os Concertos populares também acabarão um dia. mas
será tarde, muito tarde, se considerarmos a resolução dos fundadores, e mais a
necessidade que há de arrancar a alma ao tumulto vulgar para a região serena e
divina... Um abraço ao Dr. Luís de Castro.
Pela minha parte, proponho que, nos dias de concerto, a Companhia do
Jardim Botânico, excepcionalmente, meta dez pessoas por banco nos bonds
elétricos, em vez das cinco atuais. Creio que não haverá representação à Prefeitura,
pois todos nós amamos a música; mas dado que haja, o mais que pode suceder, é
que a Prefeitura mande reduzir a lotação à quatro pessoas do contrato; em tal
hipótese, a companhia pedirá como agora, segundo acabo de ler, que a Prefeitura
reconsidere o despacho, — e as dez pessoas continuarão, como estão continuando
as cinco. Há sempre erro em cumprir e requerer depois; o mais seguro é não cumprir
155
e requerer. Quanto ao método, é muito melhor que tudo se passe assim, no silêncio
do gabinete, que tumultuosamente na rua: Não pode! não pode!
[185]
[7 junho]
A questão da capital, — ou a questão capital, como se dizia na República
Argentina, quando se tratou de dar à província de Buenos Aires uma cabeça nova,
própria, luxuosa e inútil, — a nossa questão capital teve esta semana um impulso.
Discutiu-se na Câmara dos Deputados um projeto de lei, que o Dr. Belisário Augusto
propõe substituir por outro. Este outro declara a cidade de S. Sebastião do Rio de
Janeiro capital da República. Não é preciso acrescentar que o fundamentou
eloqüentemente; este advérbio acompanha os seus discursos. Foi combatido
naturalmente, sem paixão, sem acrimônia, com desejo de acertar, visto que a
Constituição determina que no planalto de Goiás, seja demarcado o território da
nova capital, e já lá trabalha uma comissão de engenheiros; mas. estipulando a
mesma Constituição, art. 34, que ao Congresso Federal compete privativamente
mudar a capital da União, entendeu o Dr. Belisário Augusto que esta cláusula, se dá
competência para a mudança, também a dá para a conservação; argumento que o
Dr. Paulino de Sousa Júnior declarou irrespondível.
Todo o esforço do deputado fluminense foi para conservar a esta cidade o
papel que lhe deram os tempos e a história. Fez, por assim dizer, o processo da
Constituinte. "Os homens têm ilusões, disse S. Ex.a, e as assembléias também as
têm." Poderia acrescentar que as ilusões das assembléias são maiores, por isso
mesmo que são de homens reunidos e o contágio é grande e rápido; e mais difícil se
torna dissipá-las. S. Ex.a pensa que a revolta de 6 de setembro teria vencido se o
governo não estivesse justamente aqui. Bem pode ser que tenha razão. Creio nas
prefeituras, mas para a defesa da República acho os cônsules mais aptos. Podeis
redargüir que, convertida em Estado, esta cidade teria o seu governador, a sua
Constituição, as suas câmaras; mas também se vos pode replicar que se o nosso
Rio de Janeiro,
Ce pelé, ce galeux, d'où vient tout le mal.
tem por perigo o cosmopolitismo, este mesmo cosmopolitismo seria um aliado inerte
da rebelião, e a autoridade de um pequeno Estado poderia menos, muitos menos,
que a do próprio governo federal.
Não estranheis ver-me assim metido em política, matéria alheia à minha
esfera de ação. Tampouco imagineis que falo pela tristeza de ver decapitada a
minha boa cidade carioca. Tristeza tenho em verdade; mas tristezas não valem
razões de Estado; e, se o bem comum o exige, devem converter-se em alegrias.
Não senhor; se falo assim é para combater o próprio Dr. Belisário Augusto, por mais
que me sinta disposto a concordar com ele. Parece-vos absurdo? Tende a paciência
de ler.
Depois de perguntar qual das outras cidades disputou a posição de capital da
República, o deputado fluminense fez esta interrogação: "Qual foi o movimento
popular que impôs ao congresso a necessidade da mudança da capital?"
Realmente, não houve movimento algum; mas, eu viro-lhe o argumento, e não creio
que me refute. Sim, não houve movimento. Mas a própria cidade do Rio de Janeiro
não reclamou nada, quando se discutiu a Constituição, não levou aos pés do
156
legislador o seu passado, nem o seu presente, nem o seu provável futuro, não
examinou se as capitais são ou não obras da história, não disse cousa nenhuma;
comprou debêntures, que eram os bichos de então. Agora mesmo que o orador
fluminense insta com o congresso para ver se a capital aqui fica, o Rio de Janeiro
não insta também, não pede, com direito que tem todo cidadão e toda comunidade
de procurar haver o que lhe parece ser de benefício público. Não ouço discursos
reverentes, não vejo deliberações pacíficas, nem petições, já não digo do conselho
municipal. a quem incumbe velar pela felicidade dos seus munícipes, porque é
natural que essa corporação aspire às funções constitucionais de parlamento, com
promoção equivalente de seus povos, mas os povos, que fazem eles ou que
fizeram?
A conclusão é que o Rio de Janeiro, desde princípio, achou que não devia ser
capital da União, e este voto pesa muito. É o decapitado par persuasion. Assim é
que temos contra a conservação da capital além do mais, o beneplácito do próprio
Rio de Janeiro. Ele será sempre, como disse um deputado, a nossa Nova York. Não
é pouco; nem todas as cidades podem ser uma grande metrópole comercial. Não
levarão daqui a nossa vasta baía, as nossas grandezas naturais e industriais, a
nossa Rua do Ouvidor, com o seu autômato jogador de damas, nem as próprias
damas. Cá ficará o gigante de pedra, memória da quadra romântica, a bela Tijuca,
descrita por Alencar em uma carta célebre, a Lagoa de Rodrigo de Freitas, a
Enseada de Botafogo, se até lá não estiver aterrada, mas é possível que não; salvo
se alguma companhia quiser introduzir (com melhoramentos) os jogos olímpicos,
agora ressuscitados pela jovem Atenas... Também não nos levarão as companhias
líricas, os nossos trágicos italianos, sucessores daquele pobre Rossi, que acaba de
morrer, e apenas os dividiremos com S. Paulo, segundo o costume de alguns anos.
Quem sabe até se um dia...
Tudo pode acontecer. Um dia, quem sabe? Lançaremos uma ponte entre esta
cidade e Niterói, urna ponte política, entenda-se. nada impedindo que também se
faça uma ponte de ferro. A ponte política ligará os dous Estados. pois que somos
todos fluminenses e esta cidade passará de capital de si mesma a capital de um
grande Estado único, a que se dará o nome de Guanabara. Os fluminenses do outro
lado da água restituirão Petrópolis aos veranistas e seus recreios. Unidos, seremos
alguma cousa mais que separados, e, sem desfazer nas outras, a nossa capital será
forte e soberba. Se, por esse tempo a febre amarela houver sacudido as sandálias
às nossas portas, perderemos a má fama que prejudica a todo o Brasil. Poderemos
então celebrar o segundo centenário do destroço que aos franceses de Duclerc deu
esta cidade com os seus soldados, os seus rapazes e os seus frades... Que esta
esperança console o nosso Belisário Augusto, se cair o seu projeto de lei.
[186]
[14 junho]
A publicação da Jarra do Diabo coincidiu com a chegada de Magalhães de
Azeredo. Já tive ocasião de abraçar este jovem e talentoso amigo. É o mesmo maço
que se foi daqui para Montevidéu começar a carreira diplomática. A natureza,
naquela idade, não muda de feição; o artista é que se aprimorou no verso e na
prosa, como os leitores da Gazeta terão visto e sentido. Este filho excelente volta
também marido venturoso, e brevemente embarca para a Europa onde vai continuar
de secretário na legação junto à Santa Sé. Tudo lhe sorri na vida, sem que a Fortuna
lhe faça nenhum favor gratuito; merece-os todos, por suas qualidades raras e finas.
157
Jamais descambou na vulgaridade. Tem o sentimento do dever, o respeito de si e
dos outros, o amor da arte e da família. Ao demais, modesto, — daquela modéstia
que é a honestidade do espírito, que não tira a consciência íntima das forças
próprias, mas que faz ver na produção literária uma tarefa nobre, pausada e séria.
Quando Magalhães de Azeredo partir agora para continuar as suas funções
diplomáticas, deixará saudades a quantos o conhecem de perto. Os que a idade
houver aproximado daquela outra viagem eterna, é provável, — é possível, ao
menos, — que o não torne a ver, mas guardarão boa memória de um coração digno
do espírito que o anima. Os moços, que aí cantam a vida, entrarão em flor pelo
século adiante, e ver-lo-ão, e serão vistos por ele, continuando na obra desta arte
brasileira, que é mister preservar de toda federação. Que os Estados gozem a sua
autonomia política e administrativa, mas acompanham a mais forte unidade, quando
se tratar da nossa musa nacional.
Por meu gosto não passava deste capítulo, mas a semana teve outros, se
pode chamar semana ao que foi antes uma simples alfândega, tanto se falou de
direitos pagos e não pagos. Eis aqui o vulgar, meu caro poeta da Jarra do Diabo;
aqui os objetos não se parecem, como a tua jarra, com "uma jovem mulher
ateniense". São fardos, são barricas e pagam taxas, outros dizem que não pagam,
outros que nem pagarão. Uma balbúrdia. Eu, posto creia no bem, não sou dos que
negam o mal, nem me deixo levar por aparências que podem ser falazes. As
aparências enganam; foi a primeira banalidade que aprendi na vida, e nunca me dei
mal com ela. Daquela disposição nasceu em mim esse tal ou qual espírito de
contradição que alguns me acham, certa repugnância em execrar sem exame vícios
que todos execram, como em adorar sem análise virtudes que todos adoram.
Interrogo a uns e a outros, dispo-os, palpo-os, e se me engano, não é por falta de
diligência em buscar a verdade. O erro deste mundo.
No caso da alfândega, não posso negar que as aparências são criminosas;
mas serão crimes os atos praticados? Ecco il problema, diria enfaticamente o finado
Rossi. Não se tratará antes de anúncios, e reclamos, puffs, — censuráveis deserto,
— mas enfim anúncios? Ninguém ignora que não há nesta cidade, em tal matéria,
excesso de invenção. Ao contrário, a imitação é fácil, pronta, despejada. Quando, há
muitos anos, um negociante americano quis abrir na Rua do Ouvidor um depósito de
lampiões e outros objetos de igual gênero, começou por mandar imprimir, no alto
dos principais jornais desta cidade, uma só palavra, em letras que ocupavam toda a
largura da folha. A palavra era: abrir-se-á. Grande foi a curiosidade pública, logo no
primeiro dia, e nos dous que se lhe seguiram, lendo-se a palavra repetida, sem se
poder atinar com a explicação. No quarto dia cresceu o espanto, quando no mesmo
lugar saiu esta pergunta, que resumia a ansiedade geral: O que é que se há de
abrir? Mais três dias, e as folhas publicaram no alto, em letras gordas, a resposta
seguinte: o grande empório de luz, à Rua do Ouvidor n º...
O efeito da novidade foi enorme. Pois não faltou quem imitasse esse
processo, que parecia gasto. Casas, exposições, liquidações, não me lembra já que
espécies de aberturas solenes, recorreram ao anúncio americano. Onde falta
invenção, é natural que a imitação sobre.
Mas por que ir tão longe? Recentemente, presentemente, vimos e vemos que
a lembrança de recomendar um remédio por meio de comparação da pessoa
enferma antes, durante e depois da cura, tão depressa apareceu, como foi logo
copiada e repetida. – Eu era assim (uma cara magra); — ia quase ficando assim
(uma caveira); até que passei a ser assim (uma cara cheia de saúde), depois que
158
tomei tal droga. A fórmula primitiva serviu para as imitações, creio que sen1
alteração, a não ser o desenho das caras, e não todas.
Ora bem, os fardos e caixas cujos os direitos dizem ter sido desfalcados, não
serão propriamente remédios? As guias de pagamento de taxas na alfândega não
serão fórmulas de reclamo? – "Eu era assim (4:954$723); — ia quase ficando assim
(4723); — mas acabei ficando assim (954$723), depois que tomei tal droga." A
novidade aqui está na substituição do desenho por algarismos; mas não haverá
nisso tão somente afetação de originalidade, um modo de fazer crer que se inventa,
quando apenas se copia, pois a idéia fundamental é a mesma? A questão é saber
qual droga faz sarar o enfermo. Pode ser até que nem se trate de droga, mas de
outros produtos, — não digo sedas, — mas algodão e análogos tecidos, não menos
dignos de anúncios grandes por seus não menores milagres.
Tal é a minha impressão. A polícia faz muito bem averiguando se há mais que
isto; não se perde nada em inquirir os homens. De resto, anda aí tanta cousa falsa,
que provavelmente o remédio não cura com a facilidade que as guias lhe atribuem.
Atos de autoridade competente afirmam que há quem venda por vinho-champanhe
águas que nunca por lá passaram. Custa-me admitir isto; mas, não tendo razão para
desmentir a afirmação, calo-me; — calo-me e não bebo. Tudo isto se prende aos
desvios da alfândega, ao contrabando, à falsificação, a outras formas do mal, que
não se devem eliminar sem base. Oh! Se pudéssemos viver de maneira que todas
as taxas se pagassem, sem alfândega, indo os produtores ao próprio Tesouro, com
o dinheiro, sem precisar mostrar nem esconder nada, seda ou vinho... Não pode ser.
Há talvez um fraudulento em muito homem a quem não falta mais que uma guia e o
resto...
[187]
[5 julho]
Não quero saber de farmácias, nem de outras instituições suspeitas. Quero
saber de música. O Jornal do Comércio deu um brado esta semana contra as casas
que vendem drogas para curar a gente, acusando-as de as vender para outros fins
menos humanos. Citou os envenenamentos que tem havido na cidade , mas
esqueceu dizer ou não acentuou bem, que são produzidos por engano das pessoas
que manipulam os remédios. Um pouco mais de cuidado, um pouco menos de
distração ou de ignorância, evitarão males futuros.
Um fino espírito deste país, político e filósofo, definia-me uma vez as nossas
farmácias como outras tantas confeitarias. Confesso que antes as quero confeitarias,
que palácio dos Bórgias; não tanto porque nestes se possa achar a morte, como
porque nós amamos os confeitos, e os frascos vindos do exterior têm ar de trazer
amêndoas. É bom encontrar a saúde onde só se procura gulodice. Se, entretanto,
parados e obrigando a fazê-los cá mesmo, pode suceder que alguns
envenenamentos se dêem a principio, mas todo ofício tem uma aprendizagem, e não
há benefício humano que não custe mais ou menos duras agonias. Cães, coelhos e
outros animais são vitimas de estudos que lhes não aproveitam, e sim aos homens;
por que não serão alguns destes vítimas do que há de aproveitar aos
contemporâneos e vindouros? Que verdade moral, social, cientifica ou política não
tem custado mortes e grandes mortes? As catacumbas de Roma...
Sem ir tão longe. há um argumento que desfaz em parte todos esses ataques
às boticas; é que o homem é em si mesmo um laboratório. Que fundamento jurídico
haverá para impedir que eu manipule e venda duas drogas perigosas? Se elas
159
matarem, o prejudicado que exija de mim a indenização que entender; se não
matarem, nem curarem, é um acidente e um bom acidente, porque a vida fica, e está
nos adágios populares que viva a galinha com a sua pevide. Suponhamos, porém,
que uma dessas manipulações cura alguém; não vale este único benefício todos os
possíveis males? Se espiritualmente há mais alegria no céu pela entrada de um
arrependido que pela de cem justos, não se pode dizer que na terra há mais alegria
pela conservação de uma vida que pela perda de cem? Essa única vida não pode
ser a de um grande homem, a de um varão justo, a de um simples pai de família, a
de um filho amparo de sua velha mãe? Reflitamos antes de condenar, e deixemos
as farmácias com os seus meninos antes de condenar, e deixemos as farmácias
com os seus meninos, que assim acham ocupação honesta, em vez de se perderem
na rua. Outrossim, não condenemos os que alugam títulos. Quem pode alugar uma
casa que não fez, que comprou feita, por que não poderá alugar um título que lhe
custou estudos longos, e aprovações completas, que é verdadeiramente seu? Qual
é propriedade maior?
Mas, fora com tudo isso, trataremos só de música. Não nos falta música, nem
gosto particular em ouvi-la. Queirós deu-nos uma história de música, resumida em
um grande concerto, em que, ainda uma vez apresentou suas qualidades de artista.
Não se contenta Alberto Nepomuceno com os Concertos Populares. Domingo
passado fez ouvir o Visconde de Taunay uma redução do Requiem, do Padre José
Maurício. A carta em que Taunay narra as comoções que lhe deu a obra do padre,
comove igualmente aos que a lêem, e faz amar o padre, o Alberto, o Requiem e o
escritor. Não bastam ao nosso Taunay as letras; a sua bela Inocência, vertida há
pouco (ainda uma vez) para língua estranha e espalhada pelos centros europeus,
repete lá fora o nome de um homem, cuja família se naturalizou brasileira. Tendo o
amor que tem à música, até a morte quis levar esta semana um pianista a quem
nunca ouvi, mas que ouço louvar; pianista amador, médico de ofício, que às
qualidades intelectuais, reunia dotes morais de muito apreço, o Dr. Lucindo Filho...
Outra morte que não sai da música, ou sai do mais íntimo dela, é a que se
espera cada dia do Norte, a do nosso ilustre Carlos Gomes. Os telegramas de ontem
dizem que o médico incumbido de o salvar já aplicou o remédio, mas sem
esperanças. Dá-lhe os dias contados. Aguardemos a hora última desse homem que
levará o nome brasileiro deste para o século novo, e cujas obras servirão de
estímulo e exemplar às vocações futuras. A vida dele é conhecida; mas nem todos
terão as sensações dos primeiros dias, quando Carlos Gomes chegou de S. Paulo e
aqui se estreou na Ópera Nacional, uma instituição mantida com dinheiros de loteria;
leiam loteria, não bichos. Tudo é jogo, mas há espécies mais reles que outras, que
apenas servem de ofício e comércio à gente vadia. Vivia de loteria a Ópera Nacional;
antes vivesse de donativos diretos, mas enfim viveu e deu-nos Carlos Gomes, um
pouco de Mesquita, outro pouco de Elias Lobo, não contando as noites em que se
cantava a Casta Diva, por esta letra de um velho e bom amigo meu, depois chefe
político:
Casta deusa, que derramas
Nestas selvas luz serena...
Naquele tempo ainda Bach nem outros mestres influíam como hoje. Não
tínhamos essa música. de que anteontem à noite nos deram horas magníficas os
nossos dois hóspedes. Moreira de Sá e Viana da Mota, no Teatro lírico. Hoje a
crítica das folhas da manhã dirá deles o que couber e for de justiça, e estou que não
será frouxo, nem pouco. Eu não tenho mais que ouvidos, e ouvidos de curioso, que
160
não valem muito: mas, em suma, mais terei desprendido com os olhos que com eles.
Sinto que escutei dous homens de grande talento e grande arte, severos amados,
ambos cheios pela natureza e confirmados pelo estudo para intérpretes de obras
mestras. Não é de crer que os não ouçamos ainda uma vez ou mais. Li que vão a
São Paulo, em breve; é de rigor. São Paulo é estação obrigada, é metade do Rio de
Janeiro, se estas duas cidades não formam já, como Budapeste, artisticamente
falando, uma só capital. Há tempo, entretanto, para que, antes de tornarem ao seu
país Viana da Mota e Moreira de Sá dêem ainda ao povo do Rio uma festa igual à
de anteontem, em que recebam os mesmos aplausos.
E continua a música. Hoje é o terceiro dos Concertos Populares, instituição
que o público aceitou e vai animado – em benefício seu, é verdade, não se podendo
dizer que faça nenhum favor em ouvir a palavra clássica dos mestres. Antes deve ir
cheio de gratidão. Há uma hora na semana em que alguns homens de boa vontade
dispõem-se a arrancá-lo à vulgaridade e ao tédio, para lhe dar a sensação do belo e
do gozo. São favores que lhe fazem. Para si mesmos, bastava-lhes um pouco de
música de câmara, entre quatro paredes, e a boa disposição de meia dúzia de
artistas.
Assim como a história política e social tem antecedentes, é de crer que esta
parte da história artística do Rio de Janeiro tenha os seus também. e quer-me
parecer que podemos ligá-la ao quarteto do Clube Beethoven.
Esse clube era uma sociedade restrita, que fazia os seus saraus íntimos, em
uma casa do Catete. nada se sabendo cá fora senão o raro que os jornais
noticiavam. Pouco a pouco se foi desenvolvendo, até que um dia mudou de sede e
foi para a Glória. Aquilo que hoje se chama profanamente Pensão Beethoven, era a
casa do clube. O salão do fundo, tão vasto como o da frente, servia aos concertos, e
enchia-se de uma porção de homens de várias nações, várias línguas, vários
empregos, para ouvir as peças do grande mestre que dava nome ao clube, e as de
tantos outros que formam com ele a galeria da arte clássica. O nome do clube
cresceu, entrou pelos ouvidos do público; este, naturalmente curioso, quis saber o
que se passava lá dentro. Mas, não havendo público sem senhoras, e não podendo
as senhoras penetrar naquele templo. que o não permitiam as disciplinas deste,
resolveu n clube dar alguns concertos especiais no Cassino.
Não relembro o que eles foram, nem estou aqui contando a crônica desses
tempos passados. Pegou tanto o gosto dos concertos Beethoven, que o Clube, para
obedecer aos estatutos sem infringi-los, determinou construir no jardim aquele
edifício ligeiro, onde se deram concertos a todos sem que a casa propriamente da
associação fosse violada. Os dias prósperos não fizeram mais que crescer; entrou a
ser mau gosto não ir àquelas festas mensais. Mas tudo acaba, e o clube Beethoven,
como outras instituições idênticas acabou. A decadência e a dissolução puseram
termo aos longos dias de delícias.
A primeira vez que vi o fundador daqueles concertos, foi de violino ao peito,
junto de um piano, em que a senhora tocava; lá se vão muitos anos. Ele vinha do
Japão, magro, pálido... "Não tem seis meses de vida" disse-me em particular um
homem que já morreu há muito tempo. Outros morreram também, alguns
encaneceram; o resto dispersou-se, a senhora reside na Europa... Só a música pode
dar a sensação destas ruínas. O verso também pode, mas há de ser pela toada do
florentino, que assim como sabe a nota da maior dor, não menos conhece a da
rejuvenescência, aquela que me faz crer, nestas sensações de arte.
Rifatto sì, come piante novelle
Rinnovellate di novella fronda..
161
[188]
[26 julho]
Apaguemos a lanterna de Diógenes; achei um homem. Não é príncipe, nem
eclesiástico, nem filósofo, não pintou uma grande tela, não escreveu um belo livro,
não descobriu nenhuma lei científica. Também não fundou a efêmera república do
Loreto, conseguintemente não fugiu com a caixa, como disse o telégrafo acerca de
um dos rebeldes, logo que a província se submeteu às autoridades legais do Peru.
O ato da rebeldia não foi sequer heróico, e a levada da caixa não tem merecimento
é a simples necessidade de um viático. O pão do exílio é amargo e duro; força é
barrá-lo com manteiga.
Não, o homem que achei, não é nada disso. É um barbeiro, mas tal barbeiro
que, sendo barbeiro não é exatamente barbeiro. Perdoai esta logomaquia; o estilo
ressente-se da exaltação da minha alma. Achei um homem. E importa notar que não
andei atrás dele. Estava em casa muito sossegado, com os olhos nos jornais e o
pensamento nas estrelas quando um pequenino anúncio me deu rebate ao
pensamento, e este desceu mais rápido que o raio até o papel. Então li isto: "Vendese
uma casa de barbeiro fora da cidade, o ponto é bom e o capital diminuto ; o dono
vende por não entender..."
Eis aí o homem. Não lhe ponho o nome, por não vir no anúncio, mas a própria
falta dele faz crescer a pessoa. O ato sobra. Essa nobre confissão de ignorância é
um modelo único de lealdade, de veracidade, de humanidade. Não penseis que
vendo a loja (parece dizer naquelas poucas palavras do anúncio) por estar rico, para
ir passear à Europa, ou por qualquer outro motivo que à vista se dirá, como é uso
escrever em convites destes. Não, senhor; vendo a minha loja de barbeiro por não
entender do ofício. Parecia-me fácil, a princípio: sabão, uma navalha, uma cara,
cuidei que não era preciso mais escola que o uso, e foi a minha ilusão, a minha
grande ilusão. Vivi nela barbeando os homens. Pela sua parte, os homens vieram
vindo, ajudando o meu erro; entravam mansos e saíam pacíficos. Agora, porém,
reconheço que não sou absolutamente barbeiro, e a vista do sangue que derramei,
faz-me enfim recuar. Basta, Carvalho (este nome é necessário a prosopopéia),
basta, Carvalho! É tempo de abandonar o que não sabes. Que outros mais capazes
tomem a tua freguesia...
A grandeza deste homem (escusado é dizê-lo) está em ser único Se outros
barbeiros vendessem as lojas por falta de vocação, o merecimento seria pouco ou
nenhum. Assim os dentistas. Assim os farmacêuticos. Assim toda a casta de oficiais
deste mundo, que preferem ir cavando as caras, as bocas e as covas, a vir dizer
chãmente que não entendem do ofício. Esse ato seria a retificação da sociedade.
Um mau barbeiro pode dar um bom guarda-livros, um excelente piloto, um
banqueiro, um magistrado. um químico, um teólogo. Cada homem assim devolvido
ao lugar próprio e determinado. Nem por sombras ligo esta retificação dos empregos
ao fato do envenenamento das duas crianças pelo remédio dado na Santa Casa de
Misericórdia. Um engano não prova nada: e se alguns farmacêuticos autores de
iguais trocas, têm continuando a lutuosa faina, não há razão para que a Santa Casa
entregue a outras pessoas a distribuição dos seus medicamentos, tanto mais que
pessoas atuais os não preparam, e, no caso ocorrente, o preparado estava certo: a
culpa foi das duas mães. A queixa dada pela mãe da defunta terá o destino desta,
menos as pobres flores que Olívia houver arranjado para a sepultura da vítima.
Também há céu para as queixas e para os inquéritos. O esquecimento público é o
162
responso contínuo que pede o eterno descanso para todas as folhas de papel
despendidas com tais atos.
Sobre isto de inquéritos, perdi uma ilusão. Não era grande; mas as ilusões,
ainda pequenas dão outra cor a este mundo. Cuidava eu que os inquéritos eram
sempre feitos, como está escrito, pelo próprio magistrado, mas ouvi que alguns
escrivães (poucos) é que os fazem e redigem, supondo presente a pessoa que falta
como no whist se joga com um morto. Creio que é por economia de tempo, e tempo
é dinheiro, dizem os americanos. O maior mal desse ato é não ser verídico, não o
ser ilegal ou irregular. Se as dores humanas se esquecem, como se não hão de
esquecer as leis? E dado seja simples praxe, as praxes alteram-se. O maior mal,
digo eu, é não ser verídico, posto que aí mesmo se possa dizer que a verdade
aparece muita vez envolta na ficção, e deve ser mais bela. As Décadas não
competem com os Lusíadas.
O ideal da praxe é a cabeleira do speaker. Os ingleses mudarão a face da
terra, antes que a cabeça do presidente da Câmara. Este há de estar ali com a
eterna cabeleira branca e longa, até meia-noite, e agora até mais tarde, se é exato o
telegrama desta semana, noticiando haver a Câmara dos Comuns resolvido levar as
sessões além daquele limite. Não é que o não tenha feito muitas vezes; basta um
exemplo célebre. Quando Gladstone deitou abaixo Disraeli. em 1852, acabou o seu
discurso ao amanhecer, — um triste e frio amanhecer de inverno, que arrancou ao
ministro caído esta palavra igualmente fria: "Ruim dia para ir a Osborne!" Agora vai
ser sempre assim, tenham ou não os ministros de ir a Osborne pedir demissão. E o
presidente firme, com a eterna cabeleira metida pela cabeça abaixo. Sim, eu gosto
da tradição; mas há tradições que aborrecem, por inúteis e cansativas. De resto,
cada povo tem as suas qualidades próprias e a diferença delas é que faz a harmonia
do mundo. Desculpai o truísmo e o neologismo.
Mas eu que falo humilde, baixo e rude, devia lembrar-me, a propósito de
inquéritos, que a clareza do estilo é uma das formas da veracidade do escritor.
Parece-me ter falado um tanto obscuramente na semana passada acerca das
prédicas do Padre Júlio Maria em Porto Alegre. Alguns amigos supuseram ver uma
crítica ao padre naquilo que era apenas uma alusão às palmas na igreja, e ainda
assim por causa de meu ouvido, que já está bom, dou-lhes esta notícia. Que culpa
tem o padre de ser eloqüente? Ainda agora acabo de ler o discurso que ele proferiu
na Santa Casa, em juiz de Fora, a 5 de janeiro deste ano. O assunto era velho: a
caridade. Mas o talento está em fazer de assuntos velhos assuntos novos, — ou
pelas idéias ou pela forma, e o Padre Júlio Maria alcançou este fim por ambos os
processos. Também ali foi aplaudido. Em verdade, se ele prefere os discursos como
os escreve, é natural que os próprios ouvintes de Porto Alegre se sentissem
arrebatados e esquecessem o templo pela palavra que o enchia. Um ouvido curado
faz justiça a todos.
E já que falo em palmas, convido-os à enviá-las ao Congresso de São Paulo,
que votou ou está votando a estátua do Padre Anchieta. Ó Padre Anchieta ó santo e
grande homem, novo mundo não esqueceu teu apostolado. Aí vais ser esculpido em
forma que relembre a cultos e incultos o que foste e o que fizeste nesta parte da
terra. Os paulistas bem merecem da história. Não é só a piedade que lhes
agradecerá; também a justiça reconhecerá esse ato justo. Tão alta e doce figura,
como a do Padre Anchieta, não podia ficar nas velhas crônicas, nem unicamente nos
belos versos de Varela. Mais palmas a S. Paulo, que acaba de votar o subsídio e a
pensão a Carlos Gomes e seus filhos. Salvador de Mendonça, um dos que
163
saudaram a aurora do nosso maestro (há quantos anos!), mandou no serum dos
cancerosos de New York uma esperança de cura para o autor do Guarani.
Oxalá o encaminhe à vida, como o encaminhou à glória. E pois que trato de
música, palmas ainda uma vez ao nosso austero hóspede Moreira de Sá, que teve a
sua festa há quatro dias. A crítica disse o que devia do artista, a imprensa tem dito o
que vale o homem. Eu subscrevo tudo, tão viva trago comigo a sensação que me
deu o seu violino mestre e mágico.
Enfim, e porque tudo acaba na morte, uma lágrima por aquele que se chamou
Dr. Rocha Lima. Não sei se lágrima; quando se padece tanto e tão longamente, a
morte é liberdade, e a liberdade qualquer que seja a sua espécie, é o sonho de
todos os cativos. Rocha Lima deve ter sonhado. durante a agonia de tantos meses,
com este desencadeamento que lhe tirou um triste suplício inútil.
[189]
[9 agosto]
Quando se julgarem os tempos, a semana que passou apresentará ao Senhor
uma bela fé de ofício e verá o seu nome inscrito entre as melhores deste ano.
— E tu que fizeste?
— Senhor, eu creio haver ganho um bom lugar. Os meus acontecimentos não
foram todos da mesma espécie, nem podiam sê-lo, mas foram todos importantes e
graves. Antes de tudo, embora não vá por ordem cronológica, a Inglaterra devolveu
a Ilha da Trindade ao Brasil. Esta ilha foi um dia tomada por ingleses, ao que dizem
para estação de um cabo telegráfico. Os brasileiros tiveram a notícia pelos jornais,
quando a ocupação durava já meses e o chefe do Gabinete inglês que havia
presidido à captura já estava descansando dos trabalhos e outro chefe havia subido
ao poder. Nestas cousas de ilhas capturadas, os gabinetes são solidários, e
Salisbury acompanhou Rosebery, como se não fossem adversários políticos. Os
brasileiros, porém sentiram a dor do ato, e assim o clamaram pela boca legislativa e
pela boca executiva, pela boca da imprensa e pela boca popular, com tal
unanimidade que produzia um belo coro patriótico. Então Portugal que conhecia os
antecedentes da ilha, interveio na contenda, deu à Grã-Bretanha as razões pelas
quais a ilha era brasileira, só brasileira. É preciso confessar que a velha Inglaterra
conhece muito bem história e geografia que são professadas nas suas
universidades: com grande apuro: mas há casos em que o melhor é meter estas
duas disciplinas no bolso e ir estudá-las nas universidades estrangeiras. Foi o que
sucedeu; Coimbra ensinou a Cambridge, e Cambridge achou que era assim, que a
ilha era realmente brasileira, e mandou corrigir as cartas da edição Rosebery, onde a
ilha da Trindade era uma estação telegráfica de Sir John Pender.
— Então tudo acabou em paz?
— Plena paz.
— Conquanto se trate de hereges, quero louvá-los pelo ato de restituir o seu a
seu dono. Que mais houve, semana?
— Senhor, houve uns presente de ouro e prata, tinteiros, canetas, penas,
ofertados pelos jurados da 7ª sessão ordinária de 1896 do Rio de Janeiro ao juiz
e aos promotores em sinal de estima, alta consideração e gratidão pelas maneiras
delicadas com que foram tratados durante toda a sessão. O escrivão recebeu por
igual motivo uma piteira de âmbar. Este ato em si mesmo, é quase vulgar; mas o
que ele significa é muito. Significa um imenso progresso nos costumes daquele país.
164
O júri é instituição antiga no Brasil. É serviço gratuito e obrigatório; todos tem que
deixar os negócios para ir julgar os seus pares, sob pena de multa de vinte mil-réis
por dia. Se fosse só isso, era dever que todo cidadão cumpriria de boa vontade; mas
havia mais. As maneiras descorteses, duras e brutais com que eram tratados pelos
magistrados e advogados não têm descrição possível.
Nos primeiros anos os jurados eram recebidos a pau, è porta do antigo aljube,
por um meirinho: as sentenças produziam sempre contra eles alguma cousa,
porque, se absolviam o réu ou minoravam a pena, os magistrados quebravam-lhes a
cara; se, ao contrário, condenavam o réu, os advogados davam-lhos pontapés e
murros. Entre muitos casos que se podiam escrever e são ali conhecidos de toda
gente, figura o que sucedeu em março ou abril de 1877. Havia um jurado que pelo
tamanho, era quase menino. Além de pequeno, magro; além de magro, doente. Pois
os promotores, o juiz, o escrivão e os advogados, antes de começar a audiência,
divertiram-se em fazer dele peteca. O pobrezinho ia das mãos de uns para as dos
outros, no meio de grandes risadas. Os outros jurados, em vez de acudir em defesa
do colega, riram também por medo e por adulação. O infeliz saiu deitando sangue
pela boca. Pequenas cousas, cacholetas, respostas de desprezo, piparotes eram
comuns. Alguns magistrados mais dados à chalaça puxavam-lhe o nariz ou faziamlhe
caretas. Um velho promotor tinha de costume, quando adivinhava o voto de
algum deles, apontá-lo com o dedo, no meio do discurso, "Será isto entendido por
aquela besta de óculos que olha para mim?" Muitas vezes o juiz lia primeiramente
para si as respostas do conselho de jurados e, se elas eram favoráveis ao réu, dizia
antes de começar a lê-las em voz alta: "Vou ler agora a lista das patadas que deram
os Srs. Juizes de fato." No meio da polidez geral do povo, esta exceção do juiz
enchia a muita gente de piedade e de indignação; mas ninguém ousava propor uma
reforma nos costumes...
— Fraqueza de ânimo; os maus costumes reformam-se.
— Uma era nova começou em 1883; já então os jurados recebiam poucos
cascudos e eram chamados apenas camelórios. Anos depois, em 1887, houve certo
escândalo por uma tentativa de reação dos costumes antigos. A um dos jurados
mandou por o juiz uma cabeça de burro. Era muito bem feita a cabeça: dous buracos
serviam aos olhos e por um mecanismo engenhoso o homem abanava as orelhas de
quando em quando, como se enxotasse moscas. Apesar do escândalo, a cabeça
ainda foi empregada nos quatro anos posteriores. No fim de 1892 sentiu-se notável
mudança nas maneiras dos juizes e promotores. Já alguns destes tiravam o chapéu
aos jurados. Em setembro de 1893 apenas se ouviu a um daqueles dizer a um
jurado que lhe perguntava pela saúde: "Passa fora!" Mas, pouco a pouco, as
palavras grosseiras e gestos atrevidos foram acabando. Em 1895, havia apenas
indiferença; em 1896, os jurados da 7ª sessão reconheceram que a polidez
reinava enfim no tribunal popular. O entusiasmo desta vitória, alcançada por uma
longa paciência, explica os presentes de ouro e prata. Eles marcam na civilização
judiciária daquele país uma data memorável. Por isso é que me encho de orgulho.
— E há grandes mortos?
— Não tive nenhum. Um só morto, não grande mas digno de apreço, de afeto
e de pesar, um pobre jornalista que acabou com a pena na mão. Quem o conheceu
na mocidade não podia antever a triste vida nem triste morte. O pai, diretor do Jornal
do Comércio, do Rio de Janeiro, foi uma grande força no seu tempo. Conta-se que
podia quanto queria; mas a morte acabou com a força, e o filho teve de buscar em si
165
mesmo, não no nome, o trabalho necessário. Não fez outra cousa durante a vida
inteira; trabalhou no jornal e no teatro, fez rir, e de quantas risadas provocou, muitas
acabaram antes pela careta da morte, outras esqueceram talvez o autor delas; pobre
Augusto de Castro! Era em seu tempo um dandy. Se pudesse adivinhar o que
sucederia depois! Senhor, o que eu achei e deixei na terra foi a saudade do passado
e o gozo do presente; muitos gemem o que foi, todos saboreiam o que é, raros
cuidam do que será. Um clássico português (e aquele finado apreciava os clássicos
da sua língua) escreveu que era provérbio ou dito alheio – não me lembra bem –
que os italianos se governam pelo passado, os franceses pelo presente e os
espanhóis pelo há de vir. E acrescenta o clássico: "Aqui quisera eu dar uma
repreensão de pena à nossa Espanha..." Repreensão por que, Senhor? Eu creio que
o mal é não cuidar no dia seguinte.
— Estás enganada, oh! Muito enganada! Cuidar no dia seguinte é uma cousa;
mas governar-se pelo que há de vir! Eu deixei aos homens o presente , que é
necessário à vida, e o passado, que é preciso ao coração. O futuro é meu. Que sabe
um tempo de outro tempo? Que semana pode adivinhar a semana seguinte?
[190]
[16 agosto]
Esta semana é toda de poesia. Já a primeira linha é um verso, boa maneira
de entrar em matéria. Assim que, podeis fugir daqui, filisteus de uma figa, e ir dizer
entre vós, como aquele outro de Heine: "Temos hoje uma bela temperatura." O que
sucedeu em prosa nestes sete dias merecia decerto algum lugar, se a poesia não
fosse o primeiro dos negócios humanos ou se o espaço desse para tanto; mas não
dá. Por exemplo, não pode conter tudo que sugere a reunião dos presidentes de
bancos de nossa praça. Chega, quando muito, para dizer que o remédio tão
procurado para o mal financeiro, — e naturalmente econômico, — foi achado depois
de tantas cogitações. Os diretores, acabada a reunião, voltaram aos seus
respectivos bancos e a taxa d câmbio subiu 1/8. A Bruxa espantou-se com isto e
declarou não entender o câmbio. A poetisa Elvira Gama parecia havê-lo entendido,
no soneto que ontem publicou aqui.
Doce câmbio...
Mas trata de amores, como se vê da segunda parte do verso:
... de seres atraídos,
Ligados pela ação de igual desejo.
Eu é que o entendi de vez. A primeira reunião fez subir um degrau a segunda
fará subir outro, e virão muitas outras até que o câmbio chegue ao patamar da
escada. Aí convidá-lo-ão a descansar um pouco, e, uma vez entrado na sala, fecharlhe-ão
as portas e deixá-lo-ão bradar à vontade. — Estás a 27, responderão os
diretores do banco, podes quebrar os trastes e a cabeça, estás a 27, não desce de
27.
Quanto à desavença entre a bancada mineira e a bancada paulista outro
assunto de prosa da semana, menos ainda pode caber aqui, ele e tudo o que sugere
relativamente ao futuro. Digo só que aos homem políticos da nossa terra ouvi
sempre este axioma: que os partidos são necessários ao governo de uma nação.
Partidos, isto é, duas ou mais correntes de opinião organizadas, que vão a todas as
166
partes do país. Na nossa federação esta necessidade é uma condição de unidade. A
Câmara de tantas bancadas quantos Estados; o próprio Rio de Janeiro, que por
estar mais perto da capital cheira ainda a província, e o Distrito Federal, que
constitucionalmente não é Estado, tem cada um a sua bancada particular. Ora todas
essas bancada não só impedirão a formação dos partidos, mas podem chegar a
destruir o único partido existente e fazer da Câmara uma constelação de
sentimentos locais, uma arena de rivalidades estaduais. Quando muito, os Estados
pequenos mergulharão nos grandes, e ficaremos com seis ou sete reinos, ducados e
principados, dos quais mais de um quererá ser a Prússia.
Entro a devanear. Tudo porque não me deixei ir pela poesia adiante. Pois
vamos a ela, e comecemos pelo quarto jantar da Revista Brasileira, a que não faltou
poesia e nem alegria. A alegria, quando tanta gente anda a tremer pelas falências no
fim do mês, é prova de que a Revista não tem entranhas ou só as tem para os seus
banquetes. Ela pode responder, entretanto, que a única falência que teme deveras é
a do espírito. No dia em que meia dúzia de homens não puderem trocar duas dúzias
de idéias, tudo está acabado, os filisteus tomarão conta da cidade e do mundo e
repetirão uns aos outros a mesma exclamação daquele de Heine: Es ist heute eine
schöne Witterung! Mas enquanto o espírito não falir, a Revista comerá os seus
jantares mensais até que venha o centésimo, que será de estrondo. Se eu me não
achar entre os convivas, é que estarei morto; peço desde já aos sobreviventes que
bebam à minha saúde.
A demais poesia da semana consistiu em três aniversários natalícios de
poetas: o de Gonçalves Dias a 10, o de Magalhães e Carlos a 13. O único popular
destes poetas é ainda o autor da "Canção do Exílio". Magalhães teve principalmente
uma página popular, que todos os rapazes do meu tempo (e já não era a mesma
geração) traziam de cor. O Carlos não chegou ao público. Mas são três nomes
nacionais, e o maior deles tem a estátua que lhe deu a sua terra. Não indaguemos
da imortalidade. Rocnoe louvado por Filinto. Improvisou uma ode entusiástica
fechada por esta célebre entonação: Posteridade, és minha! E ninguém já lia Filinto,
quando Bocage ainda era devorado. O próprio Bocage, a despeito dos belos versos
que deixou, esta pedindo uma escolha dos sete volumes, — ou dos seis, para falar
honestamente.
Justamente anteontem conversávamos alguns acerca da sobrevivência de
livros e de autores franceses deste século. Entrávamos, em bom sentido, naquela
falange de Musset:
Electeurs brevetés des morts et des vivants.
E não foi pequeno o nosso trabalho abatendo cabeças altivas. Nem Renan
escapou, nem Taine; e, se não escapou Taine, que valor pode ter a profecia dele
sobre as novelas e contos de Merimée? Il est probable qu’en l'an 2000 on relira la
Partie de Tric-Trac, por savoir ce qu’il en coûte manquer une fois à l’honneur. Taine
não fez como os profetas hebreus, que afirmam sem demonstrar; ele analisa as
causas da vitalidade das novelas de Mérimée, os elementos que serviram à
composição, o método e a arte da composição. O tempo dirá se acertou; e pode
suceder que o profeta acabe antes da profecia e que no ano 2000 ninguém leia a
História da Literatura Inglesa, por mais admirável que seja esse livro.
Mas no ano 2000 os contos de Mérimée terão século e meio. Que é século e
meio! No mês findo, o poeta laureado de Inglaterra falou no centenário da morte de
Burns, cuja estátua era inaugurada; parodiou um dito antigo, dizendo enfaticamente
que não se pode julgar seguro o renome de um homem antes de 100 anos depois
167
dele morto. Conclui que Burns chegara ao ponto donde não seria mais derribado.
Não discuto opiniões de poetas nem de críticos, mas bem pode ser que seja
verdadeira. Em tal caso, o autor de Cármem estará igualmente seguro, se o seu
profeta acertou. Resta lembrar que a vida dos livros é vária como a dos homens.
Uns morrem de vinte, outros de cinqüenta, outros de cem anos, ou de noventa e
nove, para não desmentir o poeta laureado. Muitos há que, passado o século, caem
nas bibliotecas, onde a curiosidade os vai ver, e donde podem sair em parte para a
história, em parte para os florilégios. Ora, esse prolongamento da vida, curto ou
longo, é um pequeno retalho de glória. A imortalidade é que é de poucos.
Não há muito, comemoramos o centenário de José Basílio, e ainda ontem
encontrei o jovem talento e gosto que iniciou essa homenagem. Hão de lembrar-se
que não foi ruidosa; não teve o esplendor da de Burns, cuja sombra viu chegar de
todas as partes do mundo em que se fala a língua inglesa presentes votivos e
deputações especiais. O chefe do partido liberal presidia às festas, onde proferiu
dous discursos. Cá também eram passados cem anos, mas, ou há menor expansão
aqui em matéria de poesia, ou o autor do Uruguai caminha para as bibliotecas e
para a devoção de poucos. Não sei se ao cabo de outro século haverá outro
Magalhães que inicie uma celebração. Talvez já o poeta esteja unicamente nos
florilégios com alguns dos mais belos versos que se tem escrito na nossa língua. É
ainda uma da antigüidade; a do nosso poeta terá a da própria mão que lhe deu
cunho. Se afinal se perder, haverá vivido.
[191]
[23 agosto]
Contrastes da vida, que são as obras de imaginação ao pé de vós! Vinha eu
de um banco, aonde fora saber notícias do câmbio. Não tenho relações diretas com
o câmbio; não saco sobre Londres, nem sobre qualquer outro ponto da terra, que é
assaz vasta, e eu demasiado pequeno. Mas tudo o que compro caro, dizem-me que
é culpa do câmbio. "Que quer o senhor que eu faça com este cambio a 9?"
perguntam-me. Em vão leio os jornais; o câmbio não sobe de 9. O que faz é variar;
ora é 9 1/8, ora 9 1/4, ora 9 3/8. Dorme-se com ele a 9 5/16, acorda-se a 93/4. Ao
meio-dia está a 91/2. Um eterno vaivém na mesma eterna casa. Sucedeu o que se
dá com tudo; habituei-me a essa triste especulação de 9, e dei de mão a todas as
esperanças de ver o câmbio a 10.
De repente ouço dizer na rua que o câmbio baixara à casa do 8. A princípio
não acreditei; era uma invenção de mau gosto para assustar a gente, ou algum
inimigo achara aquele meio de fazer mal. Mas tanto me repetiram a notícia, que
resolvi ir às casas argentárias saber se realmente o câmbio descera a 8. Em
caminho quis calcular o preço das calças e do pão, mas não achei nada, vi só que
seria mais caro. Entrei no primeiro banco, à mão, e até agora não sei qual foi. Gente
bastante: todos os olhos fitavam as tabelas. Vi um oito, acompanhado de pequenos
algarismos, que a cegueira da comoção não me permitiu discernir. Que me
importavam estes? Um quarto, um oitavo, três oitavos, tudo me era indiferente, uma
vez que o fatal número 8 lá estava. Esse algarismo, que eu presumia nunca ver nas
tabelas cambiais, ali me pareceu com os seus dous círculos, um por cima do outro.
Pareceu-me um par de olhos tortos e irônicos.
Perguntei a um desconhecido se era verdade. Respondeu-me que era
verdade. Quanto à causa, quando lhe perguntei por ela, respondeu-me com aquele
gesto de ignorância, que consiste em fazer cair os cantos da boca. Se bem me
168
lembro, acrescentou o gesto de abrir os braços com as mãos espalmadas, que é a
mesma ignorância em itálico. Compreendi que não sabia a causa; mas o efeito ali
estava, e todos os olhos em cima dele, sem a consternação nem o terror que deviam
Ter os meus. Saí; na rua da Alfândega, esquina da Candelária, havia alguma
agitação, certo burburinho, mas não pude colher mais do que já sabia, isto é, que o
câmbio baixara a 8. Um perverso, vendo-me apavorado, assegurava a outro que a
queda a 7 não era impossível. Quis ir ao meu alfaiate para que me reduzisse a nova
tabela ao preço que teria de pagar pelas calças, mas é certo que ninguém se
apressa em receber uma notícia má. Que podes suceder? Disse comigo; chegarmos
à arozóia ; será a restauração da nossa idade pré-histórica, e um caminho para o
Éden, avant la lettre.
Enquanto seguia na direção da Rua Primeiro de Março, ouvia falar do câmbio.
Quase a dobrar a esquina, um homem lia a outro as cotações dos fundos. Tinhamse
vendido ações do Banco Emissor de Pernambuco a mil e quinhentos; as
debêntures da Leopoldina chegaram a obter seis mil setecentos e cinqüenta; das
ações da Melhoramentos do Maranhão havia ofertas a quatro mil e quinhentos, mas
ninguém lhes pegava. Dobrei a esquina, entrei na Rua Primeiro de Março, em
direção ao Carceler. Ia costeando as vitrinas de cambistas, cheias de ouro, muita
libra, muito franco, muito dólar, tudo empilhado, esperando os fregueses. Vinha de
dentro um fedor judaico de entontecer, mas a vista das libras restituía o equilíbrio ao
cérebro, e fazia-me parar, mirar, cobiçar...
— Vamos! Exclamei, olhando para o céu.
Que vi, então, leitor amigo? Na igreja da Cruz dos Militares, dentro do nicho
de S. João, estavam três pombas. Uma pousava na cabeça do apóstolo, outra na
cabeça da águia. outra no livro aberto. Esta parecia ler, mas não lia, porque abriu
logo as asas e trepou à cabeça do apóstolo, desceu à cabeça da águia, e a que
estava na cabeça da águia passou ao livro. Uma quarta pomba veio ter com elas.
Então começaram todas a subir e a descer, ora parando por alguns segundos, e o
santo quieto, deixando que elas lhe contornassem o pescoço e os emblemas, como
se não tivesse outro oficio que esse de dar pouso as pombas.
Parei e disse comigo: Contrastes da vida, que são as obras da imaginação ao
pé de vós? Nenhuma daquelas pombas pensa no câmbio, nem na baixa, nem no
que há de vestir, nem no que há de comer. Eis ali a verdadeira gente cristã, eis o
sermão da montanha, a dous passos dos bancos, às próprias barbas destas casas
de cambistas que me enchem de inveja. Talvez na alma de algum destes homens
viva ainda a própria alma de um antigo que ouviu discurso de Jesus, e não trocou
por este o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. Cuida das libras, como eu, que visto
e me sustento pelo valor delas, mas eis aqui o que dizem as pombas, repetindo o
sermão da montanha: "Não andeis cuidadosos da vossa vida, que comereis, nem
para o vosso corpo, que vestireis... Olhai para as aves do céu que não semeiam,
nem segam, não fazem provimentos nos celeiros; e contudo, vosso pai celestial as
sustenta... E por que andais vós solícitos pelo vestido? Considerai como crescem os
lírios do campo; eles não trabalham nem fiam... Não andeis inquietos pelo dia de
amanhã. Porque o dia de amanhã a si mesmo trará o seu cuidado: ao de hoje basta
a sua própria aflição." ( S. Mateus).
Realmente, não cuidavam de nada aquelas pombas. Onde é o ninho delas?
Perto ou longe. gostam de vir aqui à águia de Patmos. Alguma vez irão ao apóstolo
do outro nicho. S. Pedro, creio; mas S. João é que as namora, neste dia de câmbio
169
baixo, como para fazer contraste com a besta do Apocalipse, a famosa besta de sete
cabeças e dez cornos, — número fatídico — talvez a taxa do câmbio de amanhã (7/
10).
Afinal deixei a contemplação das pombas e fui-me à farmácia, a uma das
farmácias que há naquela rua. Ia comprar um remédio; pediram-me por ele quantia
grossa. Como eu estranhasse o preço replicou-me o farmacêutico: "Mas, que quer o
senhor que eu faça com este câmbio a 8?" Como ao grande Gama, arrepiaram-seme
as carnes e o cabelo, mas só de ouvi-lo. A vista era boa, serena, quase risonha.
Quis raciocinar, mas raciocínio é uma cousa e medicamento é outra; saí de lá com o
remédio e um acréscimo de quinhentos réis no preço. Contaram-me que já não há
tostões nas farmácias, nem tostões, menos ainda vinténs. Tudo custa mil-réis ou mil
e quinhentos, dous mil réis ou dous mil e quinhentos, e assim por diante. Para a
contabilidade é, realmente, mais fácil; e pode ser que o próprio enfermo ganhe com
isso — a confiança, metade da cura.
Na rua tornei a erguer os olhos às pombas. Só vi uma, pousada no livro. Que
tens tu? perguntei-lhe cá de baixo, por um modo sugestivo. Se é a besta de sete
cabeças, não te importes que venha, contanto que não lhe cortes nenhuma. Já
temos a de oito: menos de sete cabeças é nada. Pagarei nove mil-réis pelo remédio,
mas antes nove que catorze, no dia em que a besta ficar descabeçada, porque
então o mais barato é o melhor de todos os remédios. E a pomba, pelo mesmo
processo sugestivo:
— Que tenho eu com remédios, homem de pouca fé? O ar e o mato são as
minhas boticas.
Quis pedir socorro ao apóstolo; mas o mármore, — ou a vista me engana, ou
o apóstolo gosta das suas pombas amigas, — o mármore sorriu e não voltou a cara
para desmentir o estatuário. Sorriu, e a pomba saltou-lhe à cabeça, para lhe tirar
comida, pagar, ou para lhe dar um beijo.
[192]
[6 setembro]
Qualquer de nós teria organizado este mundo melhor do que saiu. A morte,
por exemplo, bem podia ser tão-somente a aposentadoria da vida, com prazo certo.
Ninguém iria por moléstia ou desastre, mas por natural invalidez; a velhice, tornando
a pessoa incapaz, não a poria cargo dos seus ou dos outros. Como isto andaria
assim desde o princípio das cousas, ninguém sentiria dor nem temor, nem os que se
fossem, nem os que ficassem. Podia ser uma cerimônia doméstica ou pública;
entraria nos costumes uma refeição de despedida, frugal, não triste, em que os que
iam morrer, dissessem as saudades que levavam, fizessem recomendações,
dessem conselhos, e se fossem alegres, contassem anedotas alegres. Muitas flores,
não perpétuas, nem dessas outras de cores carregadas, mas claras e vivas, como
de núpcias. E melhor seria não haver nada, além da despedidas verbais e amigas...
Bem sei o que se pode dizer contra isto; mas por agora, importa-me somente sonhar
alguma cousa que não seja a morte bruta, crua e terrível, que não quer saber se um
homem é ainda precioso aos seus, nem se merece as torturas com que o aflige
primeiro, antes de estrangulá-lo. Tal acaba de suceder ao nosso Alfredo Gonçalves,
que foi anteontem levado à sepultura, após algum tempo de enfermidade dura e
170
fatal. Para falar a linguagem da razão, se a morte havia de lavá-lo anteontem,
melhor faria se o levasse mais cedo. A linguagem do sentimento é outra: por mais
que doa ver padecer, e por certo que seja o triste desenlace, o coração teima em
não querer romper os últimos vínculos, e a esperança tenaz vai confortando os
últimos desesperos. Não se compreende a necessidade da morte do pobre Alfredo,
um rapaz afetuoso e bom, jovial e forte, que não fazia mal a ninguém, antes fazia
bem a alguns e a muitos, porque é já beneficio praticar um espírito agudo e um
coração amigo.
Quando anteontem calcava a terra do cemitério, debaixo da chuva que caía,
batido do vento que torcia as árvores, lembrou-me outra ocasião, já remota, em que
ali íamos levar um irmão do Alfredo. Nunca me há de esquecer essa triste noite. A
morte do Artur foi súbita e inesperada. Prestes a ser transportado para o coche
fúnebre, pareceu a um amigo e médico que o óbito era aparente, um caso possível
de catalepsia. Não se podia publicar essa esperança débil, em tal ocasião, quando
todos estavam ali para conduzir um cadáver; calou-se a suspeita, e o féretro, mal
fechado, foi levado ao cemitério... Não podeis imaginar a sensação que dava aos
poucos que sabiam da ocorrência, aquele acompanhar o saimento de uma pessoa
que podia estar viva. No cemitério, feita reservadamente a comunicação, foi o caixão
deixado aberto em depósito, velado por cinco ou seis amigos. O estado do corpo era
ainda o mesmo; os olhos, quando se lhes levantassem as pálpebras, pareciam ver.
Os sinais definitivos da morte vieram muito mais tarde.
Sai antes deles. eram cerca de oito horas: não havia chuva, como anteontem,
nem lua, mas a noite era clara, e as casas brancas da necrópole deixavam-se ver
muito bem. com os seus ciprestes ao lado. Descendo por aqueles renques de
sepulturas, cuidava na entrada da esperança em lugar onde as suas asas nunca
tocaram o pó ínfimo e último. Cuidei também naqueles que porventura houvessem
sido, em má hora, transferidos ao derradeiro leito sem ter pegado no sono e sem
aquela final vigília.
Carlos Gomes não deixará esperanças dessas. "Talvez ao chegarem estas
linhas ao Rio ele Janeiro, já não exista o inspirado compositor, que entrou em
agonia", diz uma carta do Pará publicada ontem no jornal do Comércio. Pois existe,
está ainda na mesma agonia em que entrou, quando elas de lá saíram. Hão de
lembrar-se que há muitos dias um telegrama do Pará disse a mesma cousa, foi
antes dos protocolos italianos. Os protocolos vieram, agitaram. passaram, e o cabo
não nos contou mais nada. O padecimento, assim longo, deve ser forte; a carta
confirma esta dedução. Carlos Gomes continua a morrer. Até quando irá morrendo?
A ciência dirá o que souber; mas ela também sabe que não pode crer em si mesma.
Não me acuseis de teimar neste chão melancólico. O livro da semana foi um
obituário, e não terás lido outra cousa, fora daqui, senão mortes e mais mortes. Não
falemos do chanceler da Rússia, nem de outro qualquer personagem, que a
distancia e a natureza do cargo podem despir de interesse para nós. Mas vede as
matanças de cristãos e muçulmanos em Constantinopla. O cabo tem contado
cousas de arrepiar. Na capital turca empregaram-se centenas de coveiros em abrir
centenas de covas para enchê-las com centenas de cadáveres. Não nos dizem, é
verdade, se na morte ao menos foram irmanados cristãos e maometanos, mas é
provável que não. Ódio que acaba com a vida não é ódio, é sombra de ódio, é
simples e reles antipatia. O verdadeiro é o que passa às outras gerações, o que vai
buscar a segunda no próprio ventre da primeira, violando as mães a ferro e fogo. Isto
é que é ódio. O provável é que os coveiros tenham separado os corpos, e será
piedade, pois não sabemos se, ainda no caminho do outro mundo, o Corão não irá
171
enticar com o Evangelho. Um telegrama de Londres diz que Istambul está
sossegada; ainda bem, mas até quando?
Também começaram a matar nas Filipinas, a matar e a morrer pela
independência, como em Cuba. A Espanha comove-se e dispõe a matar também,
antes de morrer. É um império que continua a esboroar-se, pela lei das cousas, e
que resiste. Assim vai o mundo esta semana; não é provável que vá diversamente
na semana próxima.
E ainda não conto aquele gênero de morte que não está nas mãos dos
homens, nem dentro deles, o que a natureza reserva no seio da terra para distribuí-
la por atacado. Lá se foi mais uma cidade do Japão, comida por um terremoto, com
a gente que tinha. Os terremotos japoneses, alguns meses antes, levaram cerca de
dez mil pessoas. O cabo fala também dos tremores na Europa, mas por ora não
houve ali nenhuma Lisboa que algum Pombal restaure, nem outra Pompéia, que
possa dormir muitos séculos. Mortes, pode ser; a semana é de mortes.
[193]
[13 setembro]
Dizem da Bahia que Jesus Cristo enviou um emissário à terra, à própria terra
da Bahia, lugar denominado Gameleira, termo de Orobó Grande. Chama-se esse
emissário Manuel da Benta Hora, e tem já um séquito superior a cem pessoas.
Não serei eu que chame a isto verdade ou mentira. Podem ser as duas
cousas, uma vez que a verdade confine na ilusão, e a mentira na boa-fé. Não tendo
lido nem ouvido o Evangelho de Benta Hora, acho prudente conservar-me a espera
dos acontecimentos. Certamente, não me parece que Jesus Cristo haja pensado em
mandar emissários novos para espalhar algum preceito novíssimo. Não. eu creio
que tudo está dito e explicado. Entretanto, pode ser que Benta Hora, estando de
boa-fé, ouvisse alguma voz em sonho ou acordado, e até visse com os próprios
olhos a figura de Jesus. Os fenômenos cerebrais complicam-se. As descobertas
últimas são estupendas: tiram-se retratos de ossos e de fetos. Há muito que os
espíritas afirmam que os mortos escrevem pelos dedos dos vivos. Tudo é possível
neste mundo e neste final de um grande século.
Daí a minha admiração ao ler que a imprensa da Bahia aconselha ao governo
faça recolher Benta Hora à cadeia. Note-se de passagem: a notícia, posto que
telegráfica, exprime-se deste modo: "a imprensa pede ao governo mandar quanto
antes que faça Benta Hora apresentar as divinas credenciais na cadeia..." Este
gosto de fazer estilo embora pelo fio telegráfico é talvez mais extraordinário que a
própria missão do regente apóstolo. O telégrafo é uma invenção econômica, deve
ser conciso e até obscuro. O estilo faz-se por extenso em livros e papéis públicos, e
às vezes nem aí. Mas nós amamos os ricos vestuários do pensamento, e o
telegrama vulgar é como a tanga, mais parece despir que vestir. Assim explico
aquele modo faceto de noticiar que querem meter o homem na cadeia.
Isto dito, tornemos à minha admiração. Não conhecendo Benta Hora, não
crendo muito na missão que o traz (salvo as restrições acima postas), não é preciso
lembrar que não defendo um amigo, como se pode alegar dos que estão aqui
acusando o padre Dantas, vice-governador de Sergipe, por perseguir os padres da
oposição. Em Sergipe, onde o governo é quase eclesiástico, não há necessidade de
novos emissários do céu; as leis divinas estão perpetuamente estabelecidas, e o
que houver de ser, não inventado, mas definido, virá de Roma. Assim o devem crer
todos os padres do Estado, sejam da oposição, ou do governo, Olímpios, Dantas ou
172
Jonatas. Portanto, se alguns forem ali presos, não é porque, unidos no espiritual,
não o estão no temporal. A cadeia fez-se para os corpos. Todos eles têm amigos
seus, que o acompanham no infortúnio, como na prosperidade; mas tais amigos não
vão atrás de uma nova doutrina de Jesus, vão atrás dos seus padres.
É o contrário dos cento e tantos amigos de Benta Hora; esses com certeza
vão atrás de algum Evangelho. Ora, pergunto eu : a liberdade de profetar não é igual
à de escrever, imprimir, orar, gravar? Ninguém contesta à imprensa o direito de
pregar uma nova doutrina política ou econômica. Quando os homens públicos falam
em nome da opinião, não há quem os mande apresentar as credenciais na cadeia. E
desses por três que digam a verdade, haverá outros três que digam outra cousa,
não sendo natural que todos dêem o mesmo recado com idéias e palavras opostas.
Donde vem então que o triste do Benta Hora deva ir confiar às tábuas de um soalho
as doutrinas que traz para um povo inteiro, dado que a cadeia de Orobó Grande seja
assoalhada?
Lá porque o profeta é pequeno e obscuro, não é razão para recolhê-lo à
enxovia. Os pequenos crescem, e a obscuridade é inferior à fama unicamente em
contar menor número de pessoas que saibam da profecia e do profeta. Talvez esta
explicação esteja em La Palisse, mas esse nobre autor tem já direito a ser citado
sem se lhe pôr o nome adiante. Os obscuros surgirão à luz, e algum dia aquele
pobre homem da Gameleira poderá ser ilustre. Se, porém, o motivo da prisão é
andar na rua, pregando, onde fica o direito de locomoção e de comunicação? E se
esse homem pode andar calado, por que não andará falando? Que fale em voz
baixa ou média, para não atordoar os outros, sim, senhor, mas isso é negócio de
admoestação, não de captura.
Agora se a alegação para a captura é a falsidade de um mandato deduz-se
da opinião dos homens, e estes tanto são veículos da verdade como da mentira.
Tudo está em esperar Quantos falsos profetas por um verdadeiro! Mas a escolha
cabe ao tempo, não à polícia. A regra é que as doutrinas e às cadeias se não
conheçam; se muitas delas se conhecem, e a algumas sucede apodrecerem juntas,
o preceito legal é que nada saibam umas das outras.
Quanto à doutrina em si mesma, não diz o telegrama qual seja; limita-se a
lembrar outro profeta por nome Antônio Conselheiro. Sim, creio recordar-me que
andou por ali um oráculo de tal nome mas não me ocorre mais nada. Ocupado em
aprender a minha vida, não tenho tempo de estudar a dos outros; mas, ainda que
esse Antônio Conselheiro fosse um salteador, por onde se há de atribuir igual
vocação a Benta Hora? E, dado que seja a mesma, quem nos diz que, praticado
com um fim moral e metafísico, saltear e roubar não é uma simples doutrina? Se a
propriedade é um roubo, como queria um publicista célebre , por que é que o roubo
não há de ser uma propriedade? E que melhor método de propagar uma idéia que
pô-la em execução? Há, em não me lembra já que livro de Dickens, um mestreescola
que ensina a ler praticamente; faz com que os pequenos soletrem uma
oração, e, em vez da seca análise gramatical, manda praticar a idéia contida na
oração; por exemplo, eu lavo as vidraças, o aluno soletra, pega da bacia com água e
vai lavar as vidraças da escola; eu varro o chão, diz o outro, e pega a vassoura, etc.,
etc. Esse método de pedagogia pode ser aplicado à divulgação das idéias.
Fantasia, dirás tu. Pois fiquemos na realidade, que é o aparecimento do
profeta de Orobó Grande e o clamor contra ele. Defendamos a liberdade e o direito.
Enquanto esse homem não constituir partido político com seus discípulos, e não vier
pleitear uma eleição, devemos deixá-lo na rua e no campo, livre de andar, falar,
alistar crentes ou crédulos, não devemos encarcerá-lo nem depô-lo. O caboclo da
173
Praia Grande viu respeitar em si a liberdade. Se Benta Hora, porém, trocando um
mandato por outro, quiser passar do espiritual ao temporal e...
[194]
[20 setembro]
Toda esta semana foi feita pelo telégrafo. Sem essa invenção, que põe o
nosso século tão longe daqueles em que as notícias tinham de correr os riscos das
tormentas e vir devagar como o tempo anda para os curiosos, sem essa invenção
esta semana viveria do que lhe desse a cidade. Certamente, uma boa cidade como
a nossa não deixa os filhos sem pão; fato ou boato, eles teriam algo que debicar.
Mas, enfim, o telégrafo incumbiu-se do banquete.
A maior das notícias para nós, a única nacional, não preciso dizer que é a
morte de Carlos Gomes. O telégrafo no-la deu, tão pronto se fecharam os olhos do
artista e deu mais a notícia do efeito produzido em todo aquele povo do Pará, desde
o chefe do Estado até o mais singelo cidadão. A triste nova era esperada – não sei
se piedosamente desejada. Correu aos outros Estados, ao de S. Paulo, à velha
cidade de Campinas. A terra de Carlos Gomes deseja possuir os restos queridos de
seu filho, e os pede; São Paulo transmite o desejo ao Pará, que promete devolvê-
los. Não atenteis somente para a linguagem dos dous Estados, um dos quais
reconhece implicitamente ao outro o direito de guardar Carlos Gomes, pois que ele
aí morreu, e o outro acha justo restituí-lo aquele onde ele viu a luz. Atentai, mais que
tudo, para esse sentimento de unidade nacional. que a política pode alterar ou
afrouxar, mas que a arte afirma e confirma, sem restrição de espécie alguma sem
desacordos, sem contrastes de opinião. A dor aqui é brasileira. Quando se fez a
eleição do presidente da República, o Pará deu o voto a um filho seu, certo embora
de que lhe não caberia o governo da União; divergiu de S.Paulo. A república da arte
é anterior às nossas constituições superior às nossas competências. O que o Pará
fez pelo ilustre paulista mostra a todos nós que há um só paraense e um só paulista
que é este Brasil.
Agora que ele é morto, em plena glória, acode-me aquela noite da primeira
representação da Joana de Flandres, e a ovação que lhe fizeram os rapazes do
tempo, acompanhados de alguns homens maduros, certamente, mas os principais
eram rapazes, que são sempre os clarins do entusiasmo. Ia à frente de todos
Salvador de Mendonça, que era o profeta daquele caipira de gênio. Vínhamos da
Ópera Nacional, uma instituição que durou pouco e foi muito criticada, mas que, se
mereceu acaso o que se disse dela, tudo haverá resgatado por haver aberto as
portas ao jovem maestro de Campinas. Tinha uma subvenção à Ópera Nacional;
dava-nos partituras italianas e zarzuelas, vertidas em português, e compunha-se de
senhoras que não duvidavam passar da sociedade ao palco, para auxiliar aquela
obra. Cantava o fundador, D. José Amat, cantava o Ribas, cantavam outros. Nem foi
só Carlos Gomes que ali ensaiou os primeiros vôos; outros o fizeram também, ainda
que só ele pôde dar o surto grande e arrojado...
Aí estou eu a repetir cousas que sabeis – uns por as haverdes lido, outros por
vós lembrardes delas; mas é que há certas memórias que são como pedaços da
gente, que não podemos tocar sem algum gozo e dor, mistura de que se fazem
saudades. Aquela noite acabou por uma aurora, que foi dar em outro dia, claro como
o da véspera, ou mais claro talvez; e porque esse dia se fechou em noite,
novamente se abriu em madrugada o sol, tudo com uma uniformidade de pasmar.
174
Afinal tudo passa, e só a terra é firme: é um velho estribilho do Eclesiastes, de
que os rapazes mofam, com muita razão, pois ninguém é rapaz senão para ler e
viver o Cântico dos Cânticos, em que tudo é eterno. Também nós ríamos muito dos
que então recordavam o tempo em que foram cavalos da Candiani, e riam então dos
que falavam de outras festas do tempo de Pedro I. É assim que se vão soldando os
anéis de um século.
Ao contrário, a história parece querer dessoldar alguns dos seus anéis e
deitá-los ao mar – ao Mar Negro, se é certo o que nos anuncia o mesmo telégrafo,
portador de boas e más novas. Não trato da deposição do sultão, conquanto o
espetáculo deva ser interessante; eu, se dependesse de uma subscrição universal,
daria meu óbulo para vê-lo realizado com todas as cerimônias, tal qual o Doente
imaginário. A diferença entre a peça francesa e a peça turca é que o homem doente
parece doente deveras, — semilouco, dizem os telegramas. As deposições da nossa
terra não digo que sejam chochas, mas são lúgubres de simplicidade. O teatro de
Sergipe está agora alugado para essa espécie de mágica; não há quinze dias deu
espetáculo, e já anuncia (ao dizer do País) nova representação. As mágicas desse
teatro pequeno, mas elegante, compõem-se em geral de duas partes – uma que é
propriamente a deposição, outra que é a reposição. Poucos personagens: o
deposto, o substituto, coros de amigos. Ao fundo a cidade em festa. Este ceticismo
de Aracaju, rasgando as luvas com aplausos a ambos os tenores. Não revela da
parte daquela capital a firmeza necessária de opinião. Tudo, porém, acharia
compensação na majestade do espetáculo; infelizmente este é pobre e simples;
meia dúzia de homens saem de uma porta, entram por outra, e está acabado. É uma
empresa de poucos meios.
Que abismo entre Aracaju e Istambul! Que diferença entre as duas portas
sergipenses e a Sublime Porta! Lá são as potências que depõem, presididas pelo
pontífice do islamismo, tudo abençoado por Alá e por Maomé, que é profeta de Alá.
Nas ruas sangue, muito sangue derramado, sangue de ódio e de fanatismo. Ouvemse
rugidos da Ilha de Creta e da Macedônia. Na platéia o mundo inteiro. Mas o
principal não é isso. O principal espetáculo, o espetáculo único, é o
desmembramento da Turquia, também notificado pelo telégrafo. Esse é que, se fizer,
dará a esse século um ocaso muito parecido com a aurora. Os alfaiates levaram
muito tempo a medir e cortar a bela fazenda turca para compor o terno que a
civilização ocidental tem de vestir; e por que as medidas políticas diferem das
comuns, vê-lo-emos talvez brigar por dous centímetros. As tesouras brandidas; e,
primeiro que se acomodem, haverá muito olho furado. O desfecho é previsto;
alguém ficará com um pano de menos, mas a Turquia estará acabada, e a história
terá dessoldado alguns elos que já andavam frouxos, se é que isto não é continuar a
mesma cadeia.
Pode suceder que nada haja, assim como não voará o castelo do Balmoral,
com a rainha Vitória e o czar Nicolau dentro. Esta outra comunicação telegráfica
desde logo me pareceu fantástica; cheira a imaginação de repórter ou de
chancelaria. Nem é crível que tal tragédia se represente às barbas da sombra
Shakespeare, sem este seja consultado quando menos para lhe pôr a poesia e os
relatórios policiais não têm.
Enfim, melhor que atentados, deposições e desmembramentos, é a notícia
que nos trouxe o telégrafo, ainda o telégrafo, sempre o telégrafo. Porfírio Diaz abriu
o congresso mexicano, apresentando-lhe a mensagem em que anunciava a redução
dos impostos. Estas duas palavras raramente andam juntas; saudemos tão doce
175
consórcio. Só um amor verdadeiro as poderia unir. Que tenham muitos filhos é o
meu mais ardente desejo.
[195]
[4 outubro]
Enquanto eu cuido da semana, S. Paulo cuida dos séculos, que é mais
alguma cousa. Comemora-se ali a figura de José de Anchieta, tendo já havido três
discursos, dos quais dous foram impressos, e em boa hora impressos; honram os
nomes da Eduardo Prado e de Brasílio Machado, que honraram por sua palavra
elevada e forte ao pobre e grande missionário jesuíta. A comemoração parece que
continua. O frade merece-a de sobra. A crônica dera-lhe as suas páginas. Um poeta
de viva imaginação e grande estro, o autor do "Cântico do Calvário", pegou um dia
da figura dele e meteu-a num poema. Agora é a apoteose da palavra e da crítica.
Uma feição caracteriza estas homenagens, é a neutralidade. Ao pé de monarquistas
há republicanos, e à frente destes vimos agora o presidente do Estado. Dizem que
este soltara algumas Palavras de entusiasmo paulista por ocasião da última
conferência. De fato, uma terra em que as opiniões do dia podem apertar as mãos
por cima de uma grande memória é digna e capaz de olhar para o futuro, como o é
de olhar para o passado. A faculdade de ver alto e longe não é comum.
É doce contemplar de novo uma grande figura. Aquele jesuíta, companheiro
de Nóbrega e Leonardo Nunes, está preso indissoluvelmente à história destas
partes. A imaginação gosta de vê-lo, a três séculos de distância, escrevendo na
areia da praia os versos do Poema da Virgem Maria, por um voto em defesa da
castidade, e confiando-os um a um à impressão da memória A piedade ama os seus
atos de piedade. É preciso remontar às cabeceiras da nossa história para ver bem
que nenhum prêmio imediato e terreno se oferecia àquele homem e seus
companheiros. Cuidavam só de espalhar a palavra cristã e civilizar bárbaros; para
isso era tudo Anchieta, além de missionário A habilitação dele e dos outros era o
que ele mesmo escrevia a Loiola, em agosto de 1554:
E aqui estamos, às vezes mais de vinte dos nossos, numa barraquinha de
caniço e barro, coberta de palha, catorze pés de comprimento, dez de largura. É isto
a escola, é a enfermaria, o dormitório, refeitório, cozinha, despensa.
Justo seria que alguma cousa lembrasse aqui, entre nós, a nome de Anchieta,
— uma rua, se não há mais. A nossa Intendência Municipal acaba de decretar que
não se dêem nomes de gente viva às ruas, salvo "quando as pessoas se
recomendarem ao reconhecimento e admiração pública por serviços relevantes
prestados à pátria ou ao município, na paz ou na guerra". Anchieta está morto e bem
morto é caso de Ihe dar a homenagem que tão facilmente se distribui a homens que
vem sequer estão doentes e mal se podem dizer maduros; tanto mais quando o
presidente do Conselho Municipal não é só brasileiro, é também paulista e bom
paulista. Certo, nos amamos as celebridades de um dia, que se vão com o sol, e as
reputações de uma rua que acabou ao dobrar da esquina. Vá que brilhem; os vagalumes
não são menos poéticos por serem menos duradouros; com pouco fazem de
estrelas. Tudo serve para nos cortejarmos uns aos outros. A própria lei municipal
tem uma porta aberta aos obséquios particulares. Nem sempre a vontade do
legislador estará presente, e as leis corrompem-se com os anos. Quando o atual
conselho desaparecer, Iá virá alguém que, por haver inventado um chapéu elástico,
uma barbatana espiritual ou finalmente outro jataí que ajude a limpar os brônquios e
as algibeiras, — tenha ocasião de ver pintado o seu nome na esquina da rua em que
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mora, e, se morar longe, em outra qualquer. E o anúncio gratuito, o troco miúdo da
glória. E não há de ser escasso prazer, antes largo e demorado, ler na esquina de
uma rua o próprio nome. Não haverá conversação de bond ou a pé que faça
esquecer a placa; por mais atenção que mereça o interlocutor, seja um homem ou
uma senhora, — os alhos do beneficiado cumprimentarão de esguelha as letras do
benefício. Alguma vez passearão pelas caras dos outros, a ver se também olham.
Os crimes que se derem na rua, os incêndios, os desastres serão outras tantas
ocasiões de reler o nome impresso e reimpresso; assim também as casas de
negócio, os anúncios de criados, o obituário e o resto. Enfim, o uso positivista de
datar os escritos da rua em que a autor mora, uma vez generalizado, ajudará a
derramar a boa notícia da nossa fama.
Nem por isso deixarão de falir os que tiverem de falir, se forem negociantes;
não há nome de esquina que pague um crédito. Este momento, se é certo o que
corre, ameaça de ponto final a muita gente. Dizem que há numerosas petições de
falência. Se serão atendidas é o que não se sabe, porque o deferimento pode trazer
a dissolução geral de todos os vínculos pecuniários. E quando os que vendem
quebram, imaginai os que compram. Estes deviam rigorosamente matar-se, imitando
a gente do Japão, onde os suicídios são em maior número quando o arroz está caro,
e em menor quando está barato. Arroz ou morte ! é o grito daquela nação. Nós, para
quem tudo é caro , desde a sopa até a sobremesa, vivemos a ver em que param os
preços, — os preços ou os bichos.
Entretanto, ao passo que os negociantes do Rio de Janeiro pedem crédito,
não o acham e querem fechar as portas, o presidente do Espírito Santo deseja que
lhe diminuam a faculdade de abrir crédito.
Em conseqüência das razões que acabo de apresentar-vos (diz o Dr.
Graciano das Neves, em sua recente mensagem) dou prova da maior lealdade, Srs.
Deputados, pedindo-vos que voteis na presente sessão alguma disposição de lei
que restrinja com prudência a faculdade que tem o presidente de abrir créditos
suplementares às verbas orçadas pelo congresso.
Eu, que aprendi o que era bil de identidade no capítulo da abertura de
créditos, mal posso crer no que leio. Um presidente de Estado que, tendo a
faculdade de abrir créditos, e podendo não os abrir, pede que lhe atem as mãos, dá
mostra que é ainda mais psicólogo que presidente. É como se dissesse que as boas
Intenções do dia 15 podem não ser as mesmas do dia I6 e 17, e o melhor é não fiar
na vontade. Não sei se o caso é único; falta-me tempo de compulsar as mensagens
de ambos os mundos, mas com certeza não é comum nem velho.
Não é velho, mas tende a ser comum o uso delicado de concluírem os jurados
as sessões, ordinárias ou extraordinárias, deixando nas mãos do presidente e do
promotor uma lembrança. A penúltima trazia como razão a polidez dos magistrados.
A última, que foi anteontem, não alegou tal motivo, para tirar ao ato qualquer
aspecto de gratidão. O presidente teve duas estatuetas de bronze, e o promotor uma
rica bengala. Não é pouco ir julgar os pares obrigatoriamente, com perda ou sem
perda dos próprios interesses; a lembrança, porém, realça o serviço público. A prova
de que a instituição do júri está arraigada na nossa alma e costumes é essa
necessidade moral que têm os juizes de fato de se fazerem lembrados dos
magistrados, a quem a sociedade confia a punição dos delinqüentes. Resta que os
magistrados, por sua vez, dêem alguma lembrança aos cidadãos, e que estes saiam
com botões de punho novos ou carteiras de couro da ft5ssia. São prendas baratas e
significativas.
177
[196]
[11 outubro]
Czarina, se estas linhas chegarem às tuas mãos, não faças como Vítor Hugo,
que, recebendo um folheto de Lisboa, respondeu ao autor: Não sei português, mas
com o auxílio do latim e do espanhol, vou lendo o vosso livro.." Não, nem peço que
me respondas. Manda traduzi-las na língua de Gógol, que dizem ser tão rica e tão
sonora, e em seguida lê. Verás que o beijo que te depositou na mão, em Cherburgo,
o presidente da República Francesa, foi aqui objeto de algum debate.
Uns acharam que, para republicano, o ato foi vilania; outros que, para francês,
foi galantaria. Uma princesa! Uma senhora! E daí uma conversação longa em que se
disseram cousas agressivas e defensivas. Eu, pouco dado a rusgas, limitei-me a
pensar comigo que a galantaria não deve ficar sendo um costume somente das
cortes. A democracia pode muito bem acomodar-se com a graça; nem consta que
Lafayette, marquês do antigo regímen, tivesse deitado a cortesia ao mar quando foi
colaborar com Washington.
Olha, czarina, houve tempo em que nessa mesma França, cujo chefe te
beijou agora a mão, se fazia grande cabedal de tratar por tu aos outros, para
continuar Robespierre e os seus terríveis companheiros. Então um poeta falou em
verso, como é uso deles, e concluiu por este, que faz casar a política e as maneiras:
Appellons-nous MONSIEUR et soyons CITOYEN. Nós, para não ir mais longe,
fizemos a república, sem deportar a excelência das câmaras. Era costume antigo,
não do regímen deposto, mas da sociedade. A excelência veio da mãe-pátria, onde
parece que se generalizou ainda mais, não se tratando lá ninguém por outra
maneira. Aqui, quando ainda não há familiaridade bastante para o tu e o você, e já a
excelência é demasiado cerimoniosa, ficamos no senhor é um modo indireto; em
Portugal, nos casos, apertados, empregam o amigo, que é ainda indireto. Tudo para
fugir aos vós dos nossos maiores, e que entre nós é a fórmula oficial da
correspondência escrita. Em verdade, se o regimento das nossas câmaras tivesse
obrigado o tratamento de vós na tribuna, como na correspondência oficial, antes de
infringirmos o regimento, teríamos infringido a gramática. É duro de meter na oração
a flexão vos do pronome. Tenho visto casos em que a pessoa para desfazer-se logo
dela. começa por ela: Vos declaro, Vos comunico. Vos peço, Nem é por outra razão,
czarina, que eu te trato por tu, como se faz em poesia.
Voltando ao beijo, admito que há cousas que só podem ser bem entendidas
no próprio lugar. Julgadas de longe levam muita vez ao erro. Tu, por exemplo, se
lesses a moção da Câmara Municipal do Rio Claro, S. Paulo, protestando contra o
presidente do Estado, que não a recebeu quando ela ali foi ver a mãe enferma, pode
se: que a entendesses mal. A moção aceitou o ato como uma injúria ofensiva e
direta ao município, ao povo, a todo o partido republicano, e mandou publicar o
protesto e comunicá-lo por cópia a todas as câmaras municipais do Estado, ao
presidente da República, aos presidentes dos congressos federal e estadual e ao
diretório central do partido.
Aparentemente é uma tempestade num copo d'água; mas a moção alega que
há da parte do presidente contra o município sentimento de hostilidade já muitas
vezes manifestado. Assim sendo, explica-se a recusa do presidente em recebê-la,
mas não se explica o ato da Câmara em visitá-lo. Não se devem fazer visitas a
desafetos; o menos que acontece é não achá-los em casa. Quando, porém, a
Câmara, esquecendo ressentimentos legítimos, quisesse levar o ramo de oliveira ao
chefe do Estado, em benefício comum, se esse não aceitasse as pazes, o melhor
178
seria calar e sair. A divulgação do caso à cidade e ao mundo e a ameaça de pronta
repulsa faz recear um estado de guerra, quando todos os municípios desejam
concórdia a sossego. Há já tantas questões graves sem contar econômica e a
financeira, que a questão do Rio Claro bem podia não ter nascido, ou ficar no "tapete
da discussão" como se usa no parlamento.
Disse que entenderias mal a moção; emendo-me, não entenderias
absolutamente, pois nunca jamais uma câmara municipal russa falaria daquele
modo. A Câmara da Rio Claro, se fosse moscovita, ou voltaria a visitar o czar,
quando ele estivesse em casa, ou far-se-ia niilista. Donde podes concluir a
vantagem das moções, e a razão do uso imoderado que fazemos delas: é uma
válvula. Enquanto a gente propõe moções não trama conspirações, e estas duas
palavras que rimam no papel não rimam na política.
O que é curioso é que nós, que não fazemos política, estejamos ocupados, eu
em falar dela, tu em ouvi-la. O melhor é acabar e dizer-te adeus. Adeus, czarina; se
cá vieres um dia de visita, pode ser que não aches as ruas limpas, mas os corações
estarão limpíssimos. O presidente da República, se não for algum dos que
censuraram agora o Sr. Faure, beijar-te-á a mão, sem perder o aprumo da liberdade.
A Companhia Ferro Carril do Jardim Botânico oferecer-te-á um bond especial para
percorreres as suas linhas, com as tuas damas e escudeiros Esta companhia
completou anteontem, vinte e oito anos de existência. Ainda me recordo da
experiência dos carros na véspera da inauguração. Ninguém vira nunca
semelhantes veículos . Toda gente correu a eles, e a linha, aberta até o Largo do
Machado, continuou apressadamente aos seus limites. Nos primeiros dias os carros
eram fechados; apareceram abertos para os fumantes, mas dentro de pouco
estavam estes sós em campo; as senhoras preferiram ir entre dous charutos, a ir
cara a cara com pessoas que não fumassem. Outras companhias vieram a servir
outros bairros. Ônibus e diligências foram aposentados nas cocheiras e vendidos
para o fogo. Que mudança em vinte e oito anos!
Uma cousa não entenderás, ainda que a transfiram à língua de GógoI, são os
dous avisos postos pela Companhia do Jardim Botânico em um ou mais dos seus
carros. Também eu vão as entendi logo; mas, por obtuso que um homem seja,
desde que teime, decifra as mais escuras charadas deste mundo. Por que não
sucederá o mesmo a uma senhora? Manda traduzir já e vê.
O primeiro aviso é este: A assinatura evita o engano nos trocos. Compreendese
logo que a assinatura é a dos bilhetes de passagem. Quer dizer que, comprandose
uma coleção de bilhetes, em vez de pagar com dinheiro cada vez que se entra no
carro, não se perde nada nos trocos que dão aos condutores; logo, os condutores ou
despedi-los, como se faz nas casas comerciais e nos bancos, é vender coleções de
bilhetes impressos. Nem se tira o pão a distraídos, nem se alivia o triste passageiro
de uma parte do bilhete de dez ou mais tostões.
O segundo aviso é uma pequena alteração do primeiro, e diz assim: A
assinatura evita o esquecimento nos trocos. Se aqui vem esquecimento em vez de
engano, é que o passageiro em muitos casos perde o dinheiro, não já em parte, mas
totalmente, por aquela outra causa mais grave. Não só o esquecimento é provável,
mas até pode ser certo e constante, se o condutor padecer de moléstia que oblitere
a memória, e não há meio de evitar que este fique com o resto do dinheiro senão
oferecendo a companhia os seus bilhetes de assinatura. Outrossim, o passageiro
passa a ser o melhor fiscal da companhia, e o seu é que deixa de ficar, por engano
ou esquecimento, na algibeira do condutor. Tais me parecem ser os dous avisos;
mas, se me disserem que eles contêm uma profecia relativa aos destinos da
179
Turquia, não recuso a explicação. Tudo é possível em matéria de epigrafia. Adeus,
czarina!
[197]
[15 novembro]
"Uma geração passa, outra geração lhe sucede, mas a terra permanece
firme." Este versículo do Eclesiastes é uma grande lição da vida, e não digo a maior,
porque há mais três ou quatro igualmente grandes. Mas não haverá poesia nem
língua que não tenha dito por modo particular esse pensamento final do mundo.
Shelley exprimiu apenas metade dele naqueles dous versos:
Man’s yesterday may ne'er be like his morrow;
Nought may endure but Mutability.
Quem nos dá a mais viva imagem do contraste entre a mocidade dos homens
no meio da imutabilidade da natureza é Chateaubriand. Lembrai-vos do Itinerário;
recordai aquelas cegonhas que ele viu irem do Ilisso às ribas africanas. Também eu
vi as cegonhas da Hélade, e peço me desculpeis esta erupção poética; nem tudo há
de ser prosa na vida, alguma vez é bom mirar as cousas que ficam e perduram entre
as que passam rápidas e leves... Creio que até me escapou aí um verso: "entre as
que passam rápidas e leves..." A boa regra da prosa manda tirar a essa frase a
forma métrica, mas seria perder tempo e encurtar o escrito; vá como saiu, e
passemos adiante.
Era no arrabalde em que residia. Bastava a presença do Corcovado para
cortejar a firmeza da terra com a mobilidade dos homens, a circunstância de estar na
vizinhança daquele pico a habitação do Sr. presidente da República, operado e
enfermo, passando as rédeas do governo ao Sr. vice-presidente, que pouco mais
distante mora, trazia uma comparação fácil, mas não menos triste que fácil. Duro é
pensar nos padecimentos de um homem. Já falei no grão de areia de Cromwell, a
propósito do cálculo que alterou, não a situação política, mas a parte principal do
governo. Não repetirei aqui a idéia; melhor é deixar ao Sr. Barão de Pedro Afonso
explicar à Cidade do Rio as razões que o levaram a dizer que a cura estaria acabada
em quinze dias, não o tendo cumprido por força de causas aliás preexistentes. O
pior de tudo, para quem está cá embaixo, é este não poder sofrer calado e oculto,
adoecer em particular, lutar com o mal e vencê-lo fora do circo e longe da platéia. A
platéia romana fazia sinal com o dedo quando queria a morte da vítima. Aqui
ninguém quer a morte do presidente, fique um tanto logrado, com a suspensão dos
boletins. A Rua do Ouvidor, se não tem notícias, cai nos boatos.
Mas vamos ao meu ponto. Era no arrabalde em que moro. Pensava eu
naquela limonada purgativa que uma pessoa bebeu, há dias, e ia morrendo se a
bebe toda por não ser mais que puro iodo. O rótulo da garrafa dava uma droga por
outra. Do engano do boticário ia resultando mais um hóspede no cemitério, se a
doente não recusa o medicamento, logo que lhe sentiu o gosto; ainda assim bebeu
alguma porção que a fez padecer um tanto. A lembrança do caso entrou a passearme
no cérebro, único cérebro talvez em que já existisse, tão rápido passa tudo nesta
vida, e tanto me custa a deixar uma idéia por outra. Então refleti, e adverti que o
descuido do boticário não teve mais processo, e posto que dos descuidos comam os
escrivães, nenhum escrivão comeu deste. Tudo passou, a limonada, o iodo e a
memória.
180
E vieram outras lembranças análogas, vagas sombras, que para logo se iam
desfazendo. Uma delas foi aquele outro descuido que levou Para a cova um pobrediabo,
não sei se adulto, se infante. A troca dos remédios não foi obra de propósito,
mas de erro, talvez de ignorância. Não foi ação de alfaiate, ourives ou marítimo, mas
de boticário também, com a diferença que uns dizem ser o próprio dono da casa,
outros um seu representante. A vítima expirou. Deus recebeu a sua alma. O
acidente deu o que falar e escrever, e os adjetivos vadios apareceram contra o
pobre autor do involuntário descuido; mas adjetivos não são agentes de polícia, e
enquanto um homem ouve a palavrada do prelo não escuta as chaves no ferrolho da
detenção. O descuidado acabaria solto, se tivesse de acabar; os escrivães não
comeram desse primeiro descuido. Poucos dias depois creio que continuou a vender
as suas drogas, e a prova de que não houve propósito, e quando muito desazo é
que ninguém mais morreu, pelo menos até ontem.
Essa lembrança desapareceu como as primeiras. Gerações delas iam assim
vindo como as do texto bíblico, umas atrás de outras, esquecidas, apagadas,
mortas. Nem eram só as dos remédios trocados; as dos desfalques tinham igual
destino. Quatro, cinco, seis mil contos desapareceram, como ilusões da mocidade
como opiniões de ano velho. Quem sabe já deles? Há quem cite algum, raro, ou
para comparação, ou por qualquer necessidade de fundamento, não com idéias de
processo. Os desfalques são como os amores enganados; doem muito, mas os
tempos acabam de os enganar e enterrar, e, quando menos se espera, o desfalcado
reza por alma do outro, se o outro morre. Se não morre, não o mata, nem lhe tira a
liberdade, que é a primeiro dos bens da terra e a melhor base das sociedades
políticas. Se. além de vivo, o outro gosta de dançar, dança; — ou joga, se lhe sabe o
jogo, que tanto pode ser de cartas como de prendas.
Todas essas sombras, desfalques grandes e pequenos, públicos ou
particulares, e trocas de remédios, e doenças e mortes filhas dessas trocas, todas
essas sombras impunes iam e vinham, e eu não podia com os olhos (quanto mais
com as mãos!) agarrá-las, fixá-las, sentá-las diante de mim. Como Goethe,
dedicando o Fausto, perguntava-lhes se me rodeavam ainda uma vez, e elas iam
mais vagas que as do poeta, iam-se para não voltar mais; todas esquecidas.
Eram as gerações que passavam. Gerações novas sucederão a essas, para
se irem também, e dar lugar a mais e mais e mais, que cederão todas à mesma lei
do esquecimento, desfalques e remédios. Onde está a terra firme?
Quando eu fazia esta pergunta e quase respondia Lao-Tsé, contemporâneo
de Confúncio, de quem o Jornal do Comércio publicou há dias algumas verdades
verdadeiras, eis que ouço o grito na rua, um pregão, uma voz esganiçada; era a
terra firme, eram as cegonhas de Chateaubriand: "Um de resto! Anda hoje! Duzentos
contos!" Homens e leis têm vida limitada, — eles por necessidade física, — elas por
necessidades morais e políticas; mas a loteria é eterna. A Loteria é a própria Fortuna
e a Fortuna é a deusa que não conhece incrédulos nem renegados. A cidade fala de
umas cousas que esquece, crimes públicos, crimes particulares; mas loteria não é
crime particular nem público! Um de resto! Anda hoje! duzentos contos!
[198]
[22 novembro]
A natureza tem segredos grandes e inopináveis. Não me refiro especialmente
ao de anteontem, no Cassino Fluminense, onde algumas senhoras e homens de
sociedade nos deram ópera, comédia e pantomima, com tal propriedade, graça e
181
talento, que encantaram o salão repleto. Não é a primeira vez que a comissão do
Coração de Jesus ajunta ali a flor da cidade. Aos esforços das senhoras que a
compõem correspondem os convidados, — e desta vez apesar do tempo, que era
execrável, — e aos convidados, em cujo número se contava agora o Sr. vicepresidente
da República, corresponderam os que se incumbiram de dizer, cantar ou
gesticular alguma cousa. Outros contarão por menor e por nomes o que fizeram os
improvisados artistas. A mim nem me cabe esta nota de passagem, em verdade
menos viva que a do meu espírito; mas, pois que saiu, aí fica.
Não o inopinável e grande da natureza a que quero me referir, é outro. Um
dos maiores sabe-se que é o suicídio. que nos parece absurdo, quando a vida é a
necessidade comum; mas, considerando que é a mesma vida que leva o homem a
eliminá-la, — propter vitam, — tudo afinal se explica na pessoa que pega em si, e dá
um talho, bebe uma droga ou se deita de alto a baixo na rua ou no mar. As crianças
pareciam isentas dessa vertigem; mas há ainda poucas semanas deram, os jornais
notícia de uma criaturinha de doze anos que acabou com a existência, — uns dizem
que por pancadas recebidas, outros que por nada.
Tivemos agora um caso mais particular: um fazendeiro rio-grandense deu um
tiro na cabeça e desapareceu do número dos vivos. O telegrama nota que era
homem de idade, — o que exclui qualquer paixão amorosa, conquanto as cãs não
sejam inimigas das moças; podem ser invejosas, mas inveja não é inimizade. E há
vários modos de amar as moças, — o modo conjuntivo e o modo extático; ora, o
segundo é de todas as fases deste mundo. Além de idoso, o suicida era rico, isto é,
aquele bem que a sabedoria filosófica reputa o segundo da terra , ele o possuía em
grau bastante para não padecer nos últimos da vida, ou antes para vivê-los à farta,
entre os confortos do corpo e da boca. Não tinha moléstia alguma; nenhuma paixão
política o atormentava. Qual a causa então do suicídio?
A causa foi a convicção que esse homem tinha de ser pobre. O telegrama
chama-lhe mania, eu digo convicção. Qualquer, porém, que seja o nome, a verdade
é que o fazendeiro rio-grandense, largamente proprietário, acreditava ser pobre, e
daí o terror natural que traz a pobreza a uma pessoa que trabalhou por ser rica, viu
chegar o dinheiro, crescer, multiplicar-se, e por fim começou a vê-lo desaparecer aos
poucos, a mais e mais depressa, e totalmente. Note-se bem que não foi a ambição
de possuir mais dinheiro que o levou à morte, — razão de si misteriosa, mas menos
que a outra; foi a convicção de não ter nada.
Não abaneis a cabeça. A vossa incredulidade vem de que a fazenda do
homem, os seus cavalos, as suas bolivianas, as suas letras e apólices valiam
realmente o que querem, que valham; mas não fostes vás que vos matasse, foi ele e
nada disso era vossa, mas do suicida. As causas têm o valor do aspecto, e o
aspecto depende da retina. Ora, a retina daquele homem achou que os bens tão
invejados de outros eram cousa nenhuma, e prevendo o pão alheio, a cama da rua,
o travesseiro de pedra ou de lado, preferi ir buscar a outros climas melhor vida ou
nenhuma, segundo a fé que tivesse.
O avesso deste caso é bem conhecido naquele cidadão de Atenas que não
tinha nem possuía uma dracma, um pobre-diabo convencido de que todos os navios
que entravam no Pireu eram dele; não precisou mais para ser feliz. Ia ao porto,
mirava os navios e não podia conter o júbilo que traz uma riqueza tão extraordinária.
Todos os navios! Todos os navios eram seus! Não se lhe escureciam os olhas e
todavia mal podia suportar a vista de tantas propriedades. Nenhum navio estranho;
nenhum que se pudesse dizer de algum rico negociante ateniense. Esse opulento de
barcos e ilusões comia de empréstimo ou de favor; mas não tinha tempo para
182
distinguir entre o que lhe dava uma esmola e o seu criado. Daí veio que chegou ao
fim da vida e morreu naturalmente e orgulhosamente.
Os dous casos, por avessos que pareçam um ao outro, são o mesmo e único.
A ilusão matou um, a ilusão conservou o outro; no fundo, há só a convicção que
ordena os atos. Assim é que um pobretão, crendo ser rico, não padece miséria
alguma, e um opulento, crendo ser pobre, dá cabo da vida para fugir à mendicidade.
Tudo é reflexo da consciência.
Não mofeis de mim, se achais aí um ar de sermão ou filosofia. O meu fim não
é só contar os atos ou comentá-Ios; onde houver uma lição útil é meu gosto e dever
tirá-la a divulgá-la como um presente aos leitores: é o que faço aqui. A lição que eu
tirar pode ter a existência do cavalo do pampa ou a do navio do Peru: toda a questão
é que valha por uma realidade, aos olhos do fazendeiro do sul e do cidadão de
Atenas.
A lição é que não peçais nunca dinheiro grosso aos deuses, senão com a
cláusula expressa de saber que é dinheiro grosso. Sem ela, os bens são menos que
as flores de um dia. Tudo vale pela consciência. Nós não temos outra prova do
mundo que nos cerca senão a que resulta do reflexo dele em nós: é a filosofia
verdadeira. Todo Rothschild and Sons, nossos credores, valeriam menos que os
nossos criados, se não possuíssem a certeza luminosa de que são muito ricos.
Wanderbilt seria nada; Jay Gould um triste cocheiro de tílburi sem possuir sequer o
carro nem o cavalo, a não ser a convicção dos seus bens.
Passai das riquezas materiais às intelectuais: é a mesma cousa. Se o mestreescola
da tua rua imaginar que não sabe vernáculo nem latim, em vão lhe provarás
que ele escreve como Vieira ou Cícero, ele perderá as noites e os sonos em cima
dos livros, comerá as unhas em vez de pão, encanecerá ou encalvecerá, e morrerá
sem crer que mal distingue o verbo do advérbio. Ao contrário, se o teu copeiro
acreditar que escreveu os Lusíadas, Ierá com orgulho (se souber ler) as estâncias
do poeta; repeti-las-á de cor, interrogará a teu rosto, os teus gestos, as tuas meias
palavras, ficará por horas diante dos mostradores mirando os exemplares do poema
exposto. Só meterá em processo os editores se não supuser que ele é o próprio
Camões: tendo essa persuasão, não fará mais que ler aquele nome tão bem visto de
todos, abençoá-lo em si mesmo; ouvi-lo aos outros, acordado e dormindo.
Que diferença achais entre o mestre-escola e seu copeiro? Consciência pura.
Os frívolos, os crentes de que a verdade é o que todos aceitam, dirão que é mania
de ambos, como o telegrama mandou dizer do fazendeiro do Sul como os antigos
diriam do cidadão de Atenas. A verdade, porém, é o que deveis saber, uma
impressão interior. O povo, que diz as cousas por modo simples e expressivo,
inventou aquele adágio: Quem o feio ama, bonito lhe parece. Logo, qual é a verdade
estética? É a que ele vê, não a que lhe demonstrais. A conclusão é que o que
parece desmentir a natureza da parte de um homem que se elimina por supor que
empobreceu, não é mais que a sua própria confirmação. Já não possuía nada o
suicida. A contabilidade interior usa regras às vezes diversas da exterior, diversas e
contrárias. 20 com 20 podem somar 40, mas também podem somar 5 ou 3, e até 1,
por mais absurdo que este total pareça; a alma é que é tudo, amigo meu, e não é
Bezout que faz a verdade das verdades. Assim, e pela última vez, repito que vos não
limiteis a pedir bens simples, mas também a consciência deles. Se eles não
puderem vir, venha ao menos a consciência. Antes um navio no Pireu que cem
cavalos no pampa.
[199]
183
[29 novembro]
GUITARRA FIM DE SÉCULO
Gastilbeza, l’homme à la carabine, chatait ainsi.
V. HUGO
ABDUL-HAMID, padixá da Turquia
Servo de Alá,
Ao relembrar com outrora gemia
Gastibelzá
Soltou a voz solitária e plangente
Cantando assim: —
"Verei morrer esse eterno doente?
Penso que sim.
"Ó meu harém! ó sagradas mesquitas
Meu céu azul!
Terra de tantas mulheres bonitas,
Minha Istambul!
Ó Dardanelos! ó Bósforo! ó gente
Síria, alepim! —
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Ouço de um lado bradar o Evangelho,
De outro o Corão,
Ambos à força daquele ódio velho,
Velha paixão.
E sinto em risco o meu trono luzente,
Todo cetim. —
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Gladstone, certo feroz paladino,
Cristão e inglês,
Em discurso chamou-me assassino,
Há mais de um mês;
Ninguém puniu esse dito insolente
De tal mastim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Chamou-me ainda não sei se maluco,
Ele que já
Vai pela idade de mole e caduco,
Velho paxá,
Ele que quis rebelar toda a gente
Da verde Erim.—
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Ah! se eu, em vez de gostar da sultana
E outra hanuns,
Trocar quisesse esta Porta Otomana
Pelos comuns,
Dar-me-iam, dizem, o trato excelente
184
Que dão ao chim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Querem que faça reformas no império,
Voto, eleição,
Que inda mas alto que o nosso mistério
Ponha o cristão,
Que de à cruz o papel do crescente,
Como em Dublim.—
Verei morrer esse eterno doente?
Penso que sim.
"Que tempo aquele em que bons aliados
Bretão, francês,
Defender vinham dos golpes danados
O nosso fez!
Então a velha questão do Oriente
Tinha outro fim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Então a gente da ruiva Moscóvia,
Imperiais
Da Bessarábia, Sibéria, Varsóvia,
Odessa e o mais,
Não conseguiam meter o seu doente
No meu capim
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Hoje meditam levar-me aos pedaços
Tudo o que sou,
Cabeça, pernas, costelas e braços,
Paris, Moscou,
A rica Londres, Viena a potente,
Roma a Berlim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Oh! Desculpai-me se nesta lamúria,
Se neste andar,
Preciso às vezes entrar na Ligúria
Para rimar.
Para rimar um mandão do ocidente
Com mandarim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Constantinopla rimar com manopla,
Bem, sim, senhor;
Porém que a dura exigência da copa
Torna uma flor
Igual erva mofina e cadente
De um mau jardim... –
Verei morrer este eterno doente?
185
Penso que sim.
"Pois eu rimei Maomé com verdade,
Mas hoje, ao ver
Que nem mesquita esta velha cidade,
Sinto perder
A fé que tinha de príncipe e crente
Até o fim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Donzelas frescas, matronas gorduchas,
Com feredjehs,
Moças calçadas de lindas babuchas
Nos finos pés,
Mastigam doces com gesto indolente
No meu festim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Onde irão elas comer os confeitos
Que hora aqui têm?
Quem lhes dará esses sonos perfeitos
Do meu harém?
Onde acharão o sabor excelente
De um alfenim? –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"E eu, onde irei, se me deitam abaixo?
Onde irei eu,
Servo de Alá, sem bastão nem penacho?
Tal o judeu
Errante, irei, sem parar, tristemente,
De Ohio a Pequim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Ver-me-ão à noite, com a lua ou sem lua.
Seguir atrás
Da costureira que passa na rua,
Honesta, em paz,
Pedir-lhe um beijo um beijo de amor por um tempo
De ouro ou marfim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Comerei só, sem eunucos escuros,
Em restaurant,
Talvez bebendo dos vinhos impuros
Que veda Islã;
Esposo de uma senhora somente
Assim, assim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Penso que sim. Virão logo rasgá-lo
186
Como urubus
Sobre o cadáver de um pobre cavalo,
Nações de truz.
Farão de cada pedaço jacente
Uma Tonquim. –
Verei morrer este eterno doente?
Penso que sim.
"Penso que sim; mas, pensando mais fundo,
Bem pode ser
Que ele ainda fique algum tempo no mundo;
Tudo é fazer
Com que elas briguem na festa esplendente
Antes do fim. –
Verei viver este eterno doente?
Talvez que sim."
[200]
[13 dezembro]
O Senado deixou suspensa a questão do veto do prefeito acerca do imposto
sobre companhias de teatro. Não falaria nisto se não se tratasse de arte em que a ,
política não penetra, — ao menos que se veja. Se penetra, é pelo bastidores; hora,
eu sou público, só me regulo pela sala.
Houve debates à última hora, esta semana, e debate, não direi encarniçado,
para não gastar uma palavra que lhe pode servir em caso mais agudo... Não, eu não
sou desses perdulários que, porque um homem diverge no corte do colete, chamalhe
logo bandido; eu poupo as palavras. Digamos que o debate foi vigoroso.
Não sei se conheceis o negócio. O que eu pude alcançar é que havia uma lei
taxando fortemente as companhias estrangeiras. Esta lei foi revogada por outra que
manda igualar as taxas das estrangeiras e das nacionais; mas logo depois resolveu
o conselho municipal que fosse cumprida uma lei anterior à primeira... Aqui é que eu
não sei bem que a lei restaurada apenas levanta as taxas sem desigualá-las, ou se
a tornam outra vez desiguais. Além de não estar claro no debate, sucede que na
publicação do discurso há o uso de imprimir entre parêntesis a palavra lê quando o
orador lê alguma cousa. Para as pessoas que estão na galeria, é inútil trazer o que o
orador leu, porque essas ouviram tudo; ma com nem todos os contribuintes estão na
galeria, (ao contrário!) a conseqüência é que a maior parte fica sem saber o que é
que leu, e portanto sem perceber a força da argumentação, isto com prejuízo dos
próprios oradores. Por exemplo, um orador, X..., refuta a outro, Y...:
"X... E pergunto eu. Vossa Ex.ª pode admitir que o documento de que se
trata afirme o que o governo do estado alega? Ouça Vossa Ex.ª. Aqui está o
primeiro trecho, o trecho célebre. (Lê) não há aqui o menor vestígio de afirmação...
"Y... Perdão, leia o trecho seguinte.
"X... O seguinte? Ainda menos. (Lê) não há nada mais válido. O governador
expedirá o decreto, cujo art. 4º não oferece a menor dúvida; basta lê-lo. (Lê)
depois disto, que concluir, senão que o governador tinha o plano feito? Querem
argumentar, Sr. Presidente, com o parágrafo 7
º do art. 6
º; mas essa
disposição é um absurdo jurídico. Ouça a Câmara. (Lê)
"Vozes: Oh! Oh!"
187
Não há dúvida que esse uso economiza papel de impressão e tempo de
copiar; mas eu, contribuinte e eleitor, não gosto de economias na publicação dos
debates. Uma vez que estes se imprimem é indispensável que saiam completos
para que eu os entenda. Posso ser para preguiçoso, morar fora, e tenho direito de
saber o que é que se lê nas câmaras. Se algum membro ou ex-membro do
congresso me lê, espero que providenciará de modo que, para o ano, eu possa ler o
que se ler, sem ir passar os meus dia na galeria do congresso.
Como ia dizendo, não tenho certeza do que é a lei municipal restaurada; mas
para o que eu vou dizer é indiferente. O que deduzi do debate é que há duas
opiniões: uma que entende deverem ser as companhias estrangeiras fortemente
taxadas, ao contrário das nacionais, outra que quer a igualdade dos impostos. A
primeira funda-se na conveniência de desenvolver a arte brasileira, animando os
artistas nacionais que aqui labutam todo ano, seja de inverno, seja de verão. A
segunda, entendendo que a arte não tem pátria, alega que as companhias
estrangeiras, além de nos dar o que as outras não dão, têm de fazer grandes
despesas de transporte, pagar ordenados altos e não convém carregar mais as
respectivas taxas. Tal é o conflito que ficou suspenso.
Eu de mim creio que ambas as opiniões erram. Não erram nos fundamentos
teóricos; tanto se pode defender a universalidade da arte como sua nacionalidade;
erram no que toca aos fatos. Com efeito, é difícil, por mais que a alma se sinta
levada pelo princípio da universalidade da arte, não hesitar quando nos falam da
necessidade de defender a arte nacional; mas é justamente este o ponto em que a
visão do Conselho Municipal, do prefeito e do Senado me parece algo perturbada.
Posto não freqüente teatros há muito tempo, sei que há aí uma arte especial;
que eu já deixei em botão. Essa arte (salvo alguns esforços louváveis) não é
propriamente brasileira, nem estritamente francesa; é o que podemos chamar, por
um vocábulo composto, a arte franco-brasileira. A língua de que usa dizem-me que
não se pode atribuir exclusivamente a Voltaria, nem inteiramente a Alencar; é uma
língua feita com partes de ambas, formando um terceiro organismo, em que a
polidez de uma e o mimo de outra produzem nova e não menos doce prosódia.
Este fenômeno não é único. O teuto-brasileiro é um produto do Sul, onde o
alemão nascido no território nacional não fica bem alemão nem bem brasileiro, mas
um misto, a que lá dão aquele nome. Ignoro se a língua daquele nosso meio patrício
e inteiro colaborador é um organismo igual ao franco-brasileiro; mas se as escolas
das antigas colônias continuam a só ensinar alemão, é provável que domine esta
língua. Nisto estou com La Palisse.
Não é pelo nascimento dos artistas que a arte franco-brasileira existe, mas
por uma combinação do Rio com Paris ou Bordéus. Essa arte, que as finadas Mmes.
Doche e D. Estela não reconheceriam por não trazer a fisionomia particular de um
ou de outro respectivos idiomas, tem a legitimidade do acordo e da fusão nos
elementos de ambas as origens. Quando nasceu? É difícil dizer quando uma arte
nasce; mas basta que haja nascido, tenha crescido e viva. Vive, não lhe peço outra
certidão.
Acode-me, entretanto, uma idéia que pode combinar muito bem as duas
correntes de opinião e satisfazer os intuitos de ambas as partes. Essa idéia é lançar
uma taxa moderada às companhias estrangeiras e libertar de todo imposto as
nacionais. Deste modo, aquelas virão trazer-nos todos os invernos algum recado
novo, e as nacionais poderão viver desabafadas de uma imposição onerosa, por
mais leve que seja. Creio que assim se cumprirá o dever de animar as artes, sem
distinção de origens, ao mesmo tempo protegerá a arte nacional. Que importa que,
188
ao lado dela seja protegida a arte franco-brasileira? Esta é um fruto local; se merece
menos que a outra, não deixa de fazer algum juz à eqüidade. Aí fica a idéia; é
exeqüível. Não a dou por dinheiro, mas de graça e a sério.
Não me arguam de prestar tanta atenção à língua de uma arte e à meia
língua de outra. Grande cousa é a língua. Aquele diplomata venezuelano que acaba
de atordoar os espíritos dos seus compatriotas pela revelação de que o tratado
celebrado com a Inglaterra, graças aos bons ofícios dos Estados Unidos, serve ao
interesse destes dous países com perda para Venezuela, pode não ter razão (e
creio que não tenha), mas dá prova certa do que vale a língua. Os outros dous são
ingleses, falam inglês; foi o pai que ensinou esta língua ao filho. Venezuela é uma
das muitas filhas e netas de Espanha que se deixaram ficar por este mundo. A
língua castelhana é rica; mas é menos falada. Se o diplomata tivesse razão, em
Caracas, que é o Rio de Janeiro de Venezuela, as companhias nacionais é que
agüentariam os maiores impostos, enquanto que as de Londres e New York
representariam sem pagar nada. Mas é um desvario, decerto; esperemos outros
telegramas.
Relevem o estilo e as idéias; a minha dor de cabeça não dá para mais.
[201]
[20 dezembro]
É minha opinião que não se deve dizer mal de ninguém, e ainda menos da
polícia. A polícia é uma instituição necessária à ordem e à vida de uma cidade.
Nos melhores tempos da nossa bela Guanabara, como lhe chamam poetas,
tínhamos o Vidigal e o Aragão. Esse Aragão, que eu não conheci, vinha ainda falar
aos de minha geração pela boca do sino de S. Francisco de Paula, às 10 horas da
noite, — hora de recolher, fazendo lembrar aquilo da ópera: — Abitanti de Parigi, è
ora di riposar.
Ó tempos! Tempos! Os escravos corriam para casa dos senhores, e todo o
cidadão, por mais livre que fosse, tinha obrigação de se deixar apalpar, a ver se
trazia navalha na algibeira. Era primitivo, mas tiradas as navalhas aos malfeitores,
poupava-se a vida à gente pacífica.
Não se deve dizer mal da polícia. Ela pode não ser boa, pode não ter
sagacidade, nem habilidade, nem método, nem pessoal; mas, com tudo isso, ou sem
tudo isso, é instituição necessária. Os tempos vão suprindo as lacunas, emendando
os defeitos. Para falar de nós, já começamos a perder a idéia de uma polícia eleitoral
ou de um canapé destinado a alguém que passa de um cargo a outro e descansa
um mês para tomar fôlego. O pessoal secreto é difícil de se escolher; outra, nem
sequer era secreto. Quem se não lembra daquele famoso assassinato da Rua
Uruguaiana , há anos, cujo autor fugia perseguido por pessoas do povo que
bradavam: "Pega! é secreta!" Duas lições houve nesse acontecimento: 1o
., o crime
praticado pela virtude; 2o
., o secreto conhecido de toda gente. Não obstante, repito,
a instituição é necessária, e antes medíocre que nenhuma.
Agora mesmo, se nada se tem encontrado acerca da dinamite tirada de um
depósito, é porque os ladrões de dinamite não são como os de simples lenços
pendurados às portas das lojas. Estes são obrigados a furtar de dia, à vista do dono
e dos passantes, correm, são perseguidos pelo clamor público, e afinal pegados. Eu,
apesar do gosto que tenho a psicologia, ainda não pude descobrir o móvel secreto
das pessoas que perseguem neste caso a um gatuno. É o simples impulso da
virtude? É o desejo de perseguir um homem hábil que quer escapar à lei? Mistério
189
insondável. A virtude, é decerto, um grande e nobre motivo, e se pudesse haver
deliberação no ato, não há dúvida que ela seria o motivo único; mas, não se pode
deliberar quando alguém furta um lenço e foge; o ato da corrida é imediato. Se os
perseguidores fossem outros lojistas, não há dúvida que, por aquele seguro mútuo
natural entre pessoas interessadas, cada um trataria de capturar e fazer punir o que
defraudou o vizinho, e pode amanhã vir defraudá-lo a ele. Mas, em geral, os
perseguidores são pessoas que nada têm com aquilo. Nenhum deles levaria nunca
o lenço de ninguém; não contesto que um outro, posto em corredor escuro e
solitário, diante de um relógio de ouro, regulando bem, longe dos homens,
dificilmente sairá sem o relógio no bolso. É, por outra maneira, o problema de
Diderot. Não vades crer que eu condeno a perseguição dos delinqüentes; ao
contrário, aplaudo o espírito de solidariedade que deve prender o cidadão à
autoridade e à lei; mas não falo em tese, falo em hipótese.
Portanto, não admira que a dinamite continue encoberta. Há mais cousas
entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia. É velho este pensamento de
Hamlet; mas nem por velho perde. Eu não peço às verdades que usem sempre
cabelos brancos, todas servem, ainda que os tragam brancos ou grisalhos. Ora, se
hás muita cousa entre o céu e a terra, dinamite pode lá estar; é muita, convenho,
mas o espaço é vasto de sobra. Como iremos buscá-la tão alto? A polícia, — a
própria polícia inglesa, que dizem ser a melhor aparelhada, ainda não possui
agentes aéreos. Ouço que há agora dous homens em Paris que tencionam ir em
balão descobrir... o que? descobrir o pólo; mas pólo não é dinamite, que faz voar
casas e túneis de estradas de ferro. Pólo não vive escondido; deixa-se estar à
espera. Notemos que os interrogados até agora não disseram nada que esclareça
sobre o paradeiro da matéria roubada; ou são inocentes, ou estão ligados por
juramentos terríveis, a não ser que o próprio interesse lhes tape a boca; explicação
esta muito natural. Não havendo meios de tortura, — o látego ao menos, — como
fazer falar as pessoas mudas?
Mas, tudo isso me tem desviado do ponto a que queria ir. Vamos a ele. Não
se deixem levar por aparências; não cuidem que faço aqui um noticiário criminal. A
boa regra para quem empunha uma pena tratar do que pode dar de si algum suco,
— uma idéia uma descoberta, uma conclusão. Não dando nada, não vale a pena
passar papel e tinta; melhor é abrir as janelas e ouvir o passaredo que canta no
arvoredo, para rimarem juntos, e os insetos que zumbem, o trem da linha do
Corcovado que sobe e ver o sol que desce por estas montanhas abaixo, garrido e
cálido, como um rapaz de vinte anos. Grande sol, quando esfriarás tu? em que
século apagarás o facho com que andas pela escuridão do infinito? Talvez a terra já
não exista, com todas as suas cidades, policiadas ou não.
Um amigo meu teve um roubo em casa, um cofre de jóias. Quando, ignoro;
pode ter sido agora, pode ter sido antes de 13 de maio, antes da guerra do
Paraguai, antes da guerra dos Farrapos, antes da guerra de Tróia. Afinal, que valem
datas! Suponhamos que é da ópera:
Cést à la du roi Henri,
Messieurs, que se passait ceci.
Furtadas as jóias, o meu amigo conseguiu dar com elas, dentro do cofre, e o cofre
escondido em uma chácara à espera talvez da noite seguinte, para poder ser
levado, com o grande peso que tinha. Já estava aberto, com dous relógios de
menos. No trabalho a que ele se deu foi acompanhado por uma praça de polícia, a
fim de capturar o ladrão, se fosse achado, mas o ladrão não apareceu.
190
Este meu amigo é advogado. Qualquer profano, descoberto o cofre, levá-lo-ia
para casa, dando graças a Deus por só haver perdido os relógios. O meu amigo,
antes de tudo cuidou no corpo de delito. Fez-me lembrar aquele coronel inglês,
Melvil, que ao saber dos ferimentos do irmão da bela Colomba, admira-se de não
terem ainda não terem apresentado queixa e um magistrado. "Falara do inquérito
pelo coroner e de muitas outras cousas desconhecidas na Córsega , narra
finalmente Mérimée. O meu amigo queria por força que se fizesse corpo de delito, e
foi à polícia uma vez, duas, três, penso que quatro, mas não afirmo. O intervalo foi
sempre, mais ou menos, de duas horas; mas não achou nunca autoridade
disponível. Não era preciso ouvir que voltasse depois; ele voltaria, ele voltou e (vede
o prêmio da tenacidade!) tanto voltou que achou uma. Então contou-lhe o caso, e
acabou pedindo corpo de delito.
— Bem, responderam-lhe; vai-se fazer, mas onde está o ferido?
A alma do meu amigo não lhe caiu ao chão, porque ele, depois de tantas idas
e vindas, já não tinha alma. Perdeu a fala, isso sim, não soube que responder. Essa
noção tão particular do corpo de delito fez voltar ao coração todas as belas cousas
que preparara. Para ser exato, não afirmo que saísse calado; pode ser que afinal
apresentasse algumas explicações, vagas, tortas, vexadas, apenas suspiradas, ao
canto da boca. E tornou para casa, dando mentalmente os dous relógios ao ladrão,
para que ele não fosse para o inferno com esse pecado às costas; irá com outros.
Enfim, o meu amigo quis gratificar a praça que o acompanhou nas pesquisas, a
praça recusou, dizendo haver estado ali cumprindo a sua obrigação. Eis aí uma boa
nota policial, e não faltarão outras, como a do assalto às tavolagens, em que nunca
as mãos lhe doam.
E a conclusão? A conclusão é que nem todas as palavras tem o mesmo eco
em todas as cabeças, e há muitas noções diversas para um só e triste vocábulo.
Ergo bibamus.
[202]
[27 dezembro]
Leitor, aproveitemos esta rara ocasião que os deuses nos deparam. Só dous
fôlegos vivos não são candidatos ao governo da cidade, tu e eu. E ainda assim não
respondo por ti; neste século de maravilhas pode dar-se que um candidato tenha
alma bastante para ler, ao café, uma coluna sensaborias, e ir depois pleitear a palma
de combate. Tudo é possível. Já se vêem ossos através da carne; dizem que Édson
medita dar vista aos cegos. É o que faz na Bahia, sem outro instrumento mais que a
sugestão, o nosso grande taumaturgo Antônio Conselheiro.
Mas em que é que aproveitaremos esta ocasião rara? Em dizer das letras e
da poesia. Aqui temos Valentim Magalhães com o romance Flor de Sangue; aqui
temos Lúcio de Mendonça, com as Canções do Outono. Iremos votar, decerto, tu e
eu, mas há de ser depois de me haveres lido e bebido a chávena de café. O meu
título de eleitor não é dos que ficara devolutos para um cidadão anônimo pegasse
deles e os oferecesse a outros. Francamente, como é que esse cavalheiro não viu
que não se fazem distribuições tais senão a pessoas seguras, já apalavradas, de
olho fino? Em que estava pensando quando entregou os títulos a desconhecidos
que o foram denunciar? Não é que eu condene o ato. Um dos eleitores defraudados
confessou que não vota há muitos anos. Pois se não vota, como é que admira de
191
que lhe tirem o título? A verdadeira teoria política é que não há eleitores, há títulos.
Um eleitor que é? Um simples homem, não diverso de outro homem que não seja
eleitor; a mesma figura, os mesmos órgãos, as mesmas necessidades, a mesma
origem, o mesmo destino; às vezes, o mesmo alfaiate; outras, a mesma dama. Que
é que os faz diferentes? Esse pedaço de papel que leva em si um pedaço de
soberania. O homem pode ser banqueiro, agricultor, operário, comerciante,
advogado, médico, pode ser tudo; eleitoralmente é como se não existisse: sem título
de eleitor, não é eleitor.
Ora bem, dada a abstenção, descuido, esquecimento ou ignorância da parte
dos donos dos títulos, devem ou podem estes papéis, estes direitos incorporados
ficar como terrenos baldios, sem a cultura do voto? É claro que não. Uma lei de
desapropriação com processo sumário que tirasse o título de eleitor remisso, três
dias antes da votação, e o desse a quem mais desse, seria a forma legal de restituir
àquele papel os seus efeitos. Mas, porque não temos uma lei dessas, devemos
tratar direitos políticos, direitos constitucionais, como se fossem o lixo das praias, o
capim das calçadas ou o palmo de pó que enche todas essas ruas, e que o vento, a
carroça, o pé da besta levantam, que entra pelos nossos pulmões, cega-nos, sujanos,
irrita-nos, faz-nos mandar ao diabo o município e o seu governo? Não; seria
quase um crime.
Portanto, o erro da pessoa que andou a oferecer títulos alheios foi a
inabilidade. Alguns querem que o cidadão induzido a votar por outro, esteja a meio
caminho de furtar um par de botas. É um erro; se o fato de votar por outro levasse
alguém ao latrocínio, esta parte estaria em outro pé; ora, é sabido que não a pode
haver mais rudimentária ou mais decadente. Já não há testamentos falsos. Salvo
algum peculato, desfalque ou cousa assim, a maior parte dos roubos são
verdadeiras misérias. Pouca audácia, nenhuma originalidade. Talvez por isso, mal
os jornais dão notícia de um delito desses, o esquecimento absorve o criminoso.
Não imprimam absolve; quem absolve é o júri, no caso de haver processo; eu digo
que o esquecimento absorve o criminoso, no sentido de se não falar mais nisso.
Mais deixemos criminologias e venhamos aos dous livros da quinzena. A Flor
de Sangue pode-se dizer que é o sucesso do dia. Ninguém ignora que Valentim
Magalhães é dos mais ativos espíritos da sua geração. Tem sido jornalista, cronista,
contista, crítico, poeta, e, quando preciso, orador. Há vinte anos que escreve
dispersando-se por vários gêneros, com igual ardor e curiosidade. Quem sabe?
Pode ser que a política o atraia também, e iremos vê-lo na tribuna, como no
jornalismo, em atitude de combate, que é um dos característicos do seu estilo.
Naturalmente nem tudo o que escreveu terá o mesmo valor. Quem compõe muito e
sempre, deixa páginas somenos; mas é já grande vantagem dispor da facilidade de
produção e do gosto de produzir.
Pelo que confessa no prefácio, Valentim Magalhães escreveu este romance
para fazer uma obra de fôlego e satisfazer assim a crítica. No fim do prefácio,
referindo-se ao romance e ao poema, como as duas principais formas literárias,
conclui: "Tudo o mais, contos, odes, sonetos teatrais são matizes, variações,
gradações; motivos musicais, apenas porque as óperas são só eles". Este juízo é
por demais sumário e não é de todo verdadeiro. Parece-me erro pôr assim tão
embaixo Otelo e Tartujo. Os sonetos de Petrarca formam uma bonita ópera. E
Musset? Quantas obras de fôlego se escreveram no seu tempo que não valem as
Noites e toda a juventude de seus versos, entre eles este, que vem ao nosso caso:
Mon verre n’est pas grand, mas je bois dans verre.
192
Taça pequena, mas de ouro fino cheia de vinho puro, vinho de todas as uvas,
gaulesa, espanhola, italiana e grega, com que ele se embriagou a si e ao seu
século, e aí vai embriagar o século que desponta. Quanto às ficções em prosa, conto
novela, romance, não parece justo desterrar as de menores dimensões. Clarisse
Harlowe tem um fôlego de oito volumes. Taine crê que poucos suportam hoje esse
romance. Poucos é muito: eu acho que raros. Mas o mesmo Taine prevê que no ano
2000 ainda se lerá Partida de Gamão, uma novelinha de trinta páginas; e, falando
das outras narrativas do autor de Cármem, todas de escasso tomo, faz esta
observação verdadeira: "E que são construídas com pedras escolhidas, não com
estuque e outros materiais da moda".
Este é o ponto. Tudo é que as obras sejam feitas com o fôlego próprio de
cada um, e com materiais que resistam. Que Valentim Magalhães pode compor
obras de maior fôlego, é certo. Na Flor de Sangue o que o prejudicou foi querer fazer
longa e depressa. A ação, cousa parasita, muita repetida, e muita que não valia a
pena trazer da vida ao livro. Quanto à pressa, a que o autor nobremente atribui os
defeitos de estilo e linguagem, é causa ainda de outras imperfeições. A maior destas
é a psicologia do Dr. Paulino. O autor espiritualiza à vontade um homem que, a não
ser sua palavra, dá apenas a impressão do lúbrico; e não há admitir que depois da
temporada de adultério, ele se mate por supor não ser amado. Não tenho espaço
para outros lances inadmissíveis, como a ida de Corina à casa da Rua de Santo
Antônio (p. 141). Os costumes não estão conservados. Já Lúcio Mendonça
contestou que tal vida fosse a da nossa sociedade. O erotismo domina mais do que
se devera esperar, ainda dado o plano do livro.
Não insisto; aí fica o bastante para mostrar o apreço em que tenho o talento
de Valentim Magalhães, dizendo-lhe alguma cousa do que me parece bom e menos
bom na Flor de Sangue. Que há no livro certo movimento, é fora de dúvida; e esta
qualidade em romancista vale muito. Verdadeiramente os defeitos principais deste
romance são dos que a vontade do autor pode corrigir nas outras obras que nos der,
e que lhe peço sejam feitas sem nenhuma idéia de grande fôlego. Cada concepção
traz virtualmente as proporções devidas; não se porá Mm. Bovary nas cem páginas
de Adolfo, nem um conto de Voltaire nos volumes compactos de George Eliot.
Para que Valentim Magalhães veja bem a nota assaz aguda que deu a
algumas partes da Flor de Sangue, leia o prefácio de Araripe Júnior nas Canções do
Outono, comparado com o livro de Lúcio de Mendonça. O valente crítico fala
longamente do amor, e sem biocos, pela doutrina que vai além de Mantegazza,
segundo ele mesmo expõe; e definido o poeta das Canções do Outono, fala de um
ou outro toque de sensualidade que se possa achar nos seus versos. Entretanto, é
bem difícil ver no livro de Lúcio de Mendonça cousa que se possa dizer sensual. O
Ideal é o título da primeira composição; ele amará em outras páginas com o ardor
próprio da juventude; mas as sensações são apenas indicadas. Basta lembrar que o
livro (magnificamente impresso em Coimbra) é dedicado por ele à esposa, então
noiva.
Vários são os versos deste volume, de vária data e vária inspiração. Não
saem da pasta do poeta, para a luz do dia, como segredos guardados, até agora;
são recolhidos de jornais e revistas, por onde Lúcio de Mendonça os foi deixando. O
mérito não é igual em todos; a "Flor do Ipê, a "Tapera", a "Ave-Maria", para só citar
três páginas, são melhor inspiradas e bem compostas que outras, — versos de
ocasião. Há também traduções feitas com apuro. Por que fatalidade acho aqui
vertido em nossa língua o soneto "Análise", de Richepin? Nunca pude ir com esta
página do autor de Fleurs du Mal. Essa análise da lágrima, que só deixa no crisol
193
água, sal, soda, muco e fosfato de cal, em que é que diminui a intensidade ou altera
a espiritualidade dos sentimentos que a produzem? É o próprio poeta que, na
Charogne, anunciando à amante que será cadáver um dia, canta as suas emoções
passadas:
Alors, ô ma beauté! dites à la vermine
Qui vous mangera de baisers,
Que j'ai gardé la forme et l’essence divine
De mes amours décomposés!
Pois a lágrima é isso, é a essência divina, seja da dor, seja do prazer, seja
ainda da cólera das pobres criaturas humanas. Felizmente, no mesmo volume o
poeta nos dá a tradução do famoso soneto de Arvers e de outras composições de
mérito. Eu ainda não disse que tive o gosto de prefaciar o primeiro volume de Lúcio
de Mendonça, e não o disse, não só para falar de mim, – que é mau costume, – mas
para não dar razão aos que me arguem de entrar pelo inverno da vida. Em verdade,
esse rapaz, que eu vi balbuciar os primeiros cantos, é hoje magistrado e alto
magistrado, e o tempo não terá andado só para ele. Mas isso mesmo me faz
relembrar aquela circunstância. Ei-nos aqui os dous, após tantos anos, sem haver
descrido da letras, e achando nelas um pouco de descanso e um pouco de consolo.
Muita cousa passou depois das Névoas Matutinas; não passou a fé nas musas, e
basta.
1897
[203]
[3 janeiro]
A importância da carta que se vai ler devia excluir qualquer outro cuidado
desta semana; mas não se perde nada em retificar um lapso. Pequeno lapso:
domingo passado escrevi "autor de Fleurs du Mal" onde devera escrever ’ autor de
Blasphèmes", tudo porque uma estrofe de Baudelaire me cantava na memória para
corrigir com ela o seu patrício Richepin. Vamos agora a carta. Recebi-a anteontem
de um cidadão americano, o Rev. M. Going, que aqui chegou em agosto do ano
findo e partiu a 1 ou 2 de setembro para a ilha da Trindade. – "Suspeito uma cousa",
disse-me ele. – "Que cousa?" – "Não posso dizer; se acertar, terei feito uma grande
descoberta, a maior descoberta marítima do século; se não acertar, fica o segredo
comigo." Podes imaginar agora, leitor, o assombro com que recebi a epístola que
vais ler:
Ilha da Trindade, 26 de dezembro de 1896.
Caro senhor. – Esta carta vos será entregue pelo Rev. James Maxwell, de
Nebrasca. Veio ele comigo a esta ilha, sem saber o fim que me trouxe a ela.
Pensava que o meu desejo era conhecer o valor do penhasco que os ingleses
queriam tomar ao Brasil, segundo 1he disse em Royal Hotel, 3, Rua Clapp, uma
sexta-feira. O Rev. Maxwell vos contará o assombro em que ficou e a minha
desvairada alegria quando vimos o que ele não esperava ver, o que absolutamente
ninguém pensou nem suspeitou nunca.
Senhor, esta ilha não é deserta, como se afirma; esta ilha tem, do lado
oriental, uma pequena cidade, com algumas vilas e aldeias próximas. Eu
desconfiava disto, não por a1guma razão científica ou confidência de navegante,
mas por uma intuição fundada em tradição de família. Com efeito, é constante na
minha família que um dos meus avós, aventureiro e atrevido, deixou um dia as
194
costas da Inglaterra, entre 1648 e 1650, em um velho barco, com meia dúzia de
tripulantes. Voltou dez anos depois", dizendo ter descoberto um povo civilizado, bom
e pacífico, em certa ilha que descreveu. Não temos outro vestígio; mas, não sei por
que razão, – creio que por inspiração de Deus, – desconfiei que a ilha era a da
Trindade. E acertei; eis a ilha, eis o povo, eis a grande descoberta que vai fechar
com chave de ouro o nosso século de maravilhas.
As notícias atropelam-se-me debaixo da pena, de modo que não sei por onde
continue. A primeira cousa que 1he digo já é que achei a prova da estada aqui de
um Going, no século XVII. Dei com um retrato de Carlos I, meio apagado e
conservado no museu da cidade. Disseram-me que fora deixado por um homem que
residiu aqui há tempos infinitos. Ora, o meu avô citado era grande realista e por
algum tempo bateu-se contra as tropas de Cromwell. Outra prova de que um inglês
esteve aqui é a língua do povo, que é uma mistura de latim, inglês e um idioma que
o Rev. Maxwell afirma ser púnico. Efetivamente, este povo inculca descender de
uma leva de cartagineses que saiu de Cartago antes da vitória completa dos
romanos. Uma vez entrados aqui, juraram que nenhuma relação teriam mais com
povo algum da terra, e assim se conservaram. Quando a população chegou a vinte e
cinco mil almas, fizeram uma lei reguladora dos nascimentos, para que nunca esse
número seja excedido; único modo, dizem, de se conservarem segregados da
cobiça e da inveja do universo. Não é essa a menor esquisitice desta pequena
nação; outras muitas tem, e todas serão contadas na obra que empreendi.
Porquanto, meu caro senhor, é meu intuito não ir daqui sem haver descrito os
costumes e as instituições do pequenino país que descobri, dizendo de suas
origens, raça, língua o mais que puder coligir e apurar. Talvez lhe traga dano. Não é
fora de propósito crer que a Inglaterra, sabendo que aqui esteve um inglês, há dous
séculos, reclame a posse da ilha; mas, em tal caso, sendo Going meu parente,
reivindicarei eu a posse e vencerei por um direito anterior. De fato, todo ente gerado,
antes de vir à luz, antes de ser cidadão, é filho de sua mãe, e até certo ponto é avo
da geração futura que virtualmente traz em si. Vou escrever neste sentido a um
legista de Washington. Falei de esquisitices. Aqui está uma, que prova ao mesmo
tempo a capacidade política deste povo e a grande observação dos seus
legisladores. Refiro-me ao processo eleitoral. Assisti a uma eleição que aqui se fez
em fins de novembro. Como em toda a parte, este povo andou em busca da verdade
eleitoral. Reformou muito e sempre; esbarrava-se, porém. diante de vícios e paixões,
que as leis não podem eliminar. Vários processos foram experimentados, todos
deixados ao cabo de alguns anos. É curioso que alguns deles coincidissem com os
nossos de um e de outro mundo. Os males não eram gerais, mas eram grandes.
Havia eleições boas e pacíficas, mas a violência, a corrupção e a fraude inutilizavam
em algumas partes as leis e os esforços leais dos governos. Votos vendidos, votos
inventados, votos destruídos, era difícil alcançar que todas as eleições fossem puras
e seguras. Para a violência havia aqui uma classe de homens, felizmente extinta, a
que chamam pela língua do país, kapangas ou kapengas. Eram esbirros
particulares, assalariados para amedrontar os e1eitores e, quando fosse preciso,
quebrar as urnas e as cabeças. As vezes quebravam só as cabeças e metiam nas
urnas maços de cédulas. Estas cédulas eram depois apuradas com as outras, pela
razão especiosa de que mais valia atribuir a um candidato algum pequeno saldo de
votos que tirar-1he os que deveras 1he foram dados pela vontade soberana do pais.
A corrupção era menor que a fraude; mas a fraude tinha todas as formas. Enfim,
muitos eleitores, tomados de susto ou de descrença, não acudiam as urnas.
195
Vai então. há cinqüenta anos (os nossos aqui são lunares) apareceu um
homem de Estado, autor da lei que ainda vigora no país. Não podeis caro senhor,
conceber nada mais estranho nem também mais adequado que essa lei: é uma
obra-prima de legislação experimental. Esse homem de Estado, por nome Trumpbal,
achou dificuldades em começo, porque a reforma proposta por ele mudava
justamente o princípio do governo. Não o fez, porém, pelo vão gosto de trocar as
cousas. Trumpbal observara que este povo confia me- nos em si que nos seus
deuses; assim, em vez de colocar o direito de escolha na vontade popular, propôs
atribui-lo à Fortuna. Fez da eleição uma consulta aos deuses. Ao cabo de dous anos
de luta, conseguiu Trumpbal a primeira vitória. – Pois bem, disseram-lhe;
decretemos uma lei provisória, segundo o vosso plano; far-se-ão por ela duas
eleições, e se não alcançar o efeito que esperais, buscaremos outra cousa. Assim se
fez; a lei dura há quarenta e oito anos. Eis os lineamentos gerais do processo: cada
candidato é obrigado a fazer-se inscrever vinte dias antes da eleição, pelo menos,
sem limitação alguma de número. Nos dez dias anteriores a eleição, os candidatos
expõem na praça pública os seus méritos e examinam os dos seus adversários, a
quem podem acusar também, mas em termos comedidos. Ouvi um desses debates.
Conquanto a língua ainda me fosse difícil de entender, pude alcançar pelas palavras
inglesas e latinas, pela compostura dos oradores e pela fria atenção dos ouvintes,
que os oradores cumpriam escrupulosamente a lei. Notei até que, acabados os
discursos, os adversários apertavam as mãos uns dos outros, não somente com
polidez, mas com afabilidade. Não obstante, para evitar quaisquer personalidades, o
candidato não é designado pelo próprio nome, mas pelo de um bicho, que ele
mesmo escolhe no ato da inscrição. Um é águia, outro touro, outro pavão, outro
cavalo, outro borboleta, etc. Não escolhem nomes de animais imundos, traiçoeiros,
grotescos e outros, como sapo, macaco, cobra, burro; mas a lei nada impõe a tal
respeito. Nas referências que fazem uns aos outros adotaram o costume de anexar
ao nome um qualificativo honrado: o brioso Cavalo, o magnífico Pavão, o indomável
Touro, a galante Borboleta, etc., fazendo dessas controvérsias, tão fáceis de azedar,
uma verdadeira escola de educação. A eleição é feita engenhosamente por uma
máquina, um tanto parecida com a que tive ocasião de ver no Rio de Janeiro, para
sortear bilhetes de loterias. Um magistrado preside a operação. Escrito o título do
cargo em uma pedra negra, dá-se corda a máquina, esta gira e faz aparecer o nome
do eleito, composto de grandes letras de brome. Os nomes de todos, isto é, os
nomes dos animais correspondentes tem sido postos na caixa interior da máquina,
não pelo magistrado, mas pelos próprios candidatos. Logo que o nome de um
aparecer, o dever do magistrado é proclamá-lo, mas não chega a ser ouvido, tão
estrondosa é a aclamação do povo: – "Ganhou o Pavão! ganhou o Cavalo!" Este
grito, repetido de rua em rua, chega aos últimos limites da cidade, como um
incêndio, em poucos minutos. O alvoroço é enorme, é um delírio. Homens,
mulheres, crianças, encontram-se e bradam: "Ganhou o Cavalo! ganhou o Pavão!"
Mas então os vencidos não gemem, não blasfemam, não rangem os dentes? Não,
caro senhor, e aí está a prova da intuição política do reformador. Os cidadãos,
levados pelo impulso que os faz não descrer jamais da Fortuna, lançam apostas,
grandes e pequenas, sobre os nomes dos candidatos. Tais apostas parece que
deviam agravar a dor dos vencidos, uma vez que perdiam candidato e dinheiro; mas,
em verdade, não perdem as duas cousas. Os cidadãos fizeram disto uma espécie de
perde-ganha; cada partidário aposta no adversário, de modo que quem perde o
candidato ganha o dinheiro, e quem perde o dinheiro ganha o candidato. Assim, em
vez de deixar ódios e vinganças, cada eleição estreita mais os vínculos políticos do
196
povo. Não sei se uma grande cidade poderia adotar tal sistema: é duvidoso. Mas
para cidades pequenas não creio que haja nada melhor. Tem a doçura, sem a
monotonia do víspora. E, deixai-me que vo-lo diga francamente, apelando para os
seus deuses, este povo, que conserva as crenças errôneas da raça originária, pensa
que são eles que o ajudam; mas, em verdade. é a Providencia Divina E1a é que
governa a terra toda e dá luz à escuridão dos espíritos. Está em Isaías: "Ouvi, ilhas,
e atendei, povos de longe." Está nos Salmos: "Do Senhor é a redondeza da terra e
todos os seus habitadores, porque ele a fundou sobre os mares e sobre os rios."
Haveria muito que dizer se pudesse contar outros costumes deste povo,
fundamentalmente bom e ingênuo; mas paro aqui. Conto estar de volta no Rio de
Janeiro em fins de maio ou princípios de junho. Peço-vos que auxilieis o meu amigo
Rev. Maxwell; ele vai buscar-me alguns livros e um aparelho fotográfico. Indagai
dele as suas impressões, e ouvireis a confirmação do que vos digo. Adeus, meu
caro senhor; crede-me vosso muito obediente servo – GOING.
O Rev. Maxwell confirma realmente tudo o que me diz a carta do Rev. Going.
São dous sacerdotes; e, embora protestantes, não creio que se liguem para rir de
um homem de boa-fé. É tudo, porém, tão extraordinário que, para o caso de ser um
simples hunbug, resolvi publicar a carta. Os entendidos dirão se é possível a
descoberta.
[204]
[24 janeiro]
Anteontem, quando os sinos começaram a tocar a finados, um amigo disseme:
"Um dos dous morreu, o arcebispo ou a papa." Não foi o papa. Aquele velhinho
transparente, com perto de noventa anos as costas, além do governo do mundo
católico, continua a enterrar os seus cardeais. Agora mesmo, por telegrama
impresso ontem, sabe-se que morreu mais um cardeal, com o qual sobem a cento e
dezoito os que se tem ido da vida, enquanto Leão XIII fica a espera da hora que
ainda 1he não bateu. Outro amigo meu, que já vira duas vezes o velho pontífice,
acaba de escrever-me que o viu ainda uma vez, em dezembro, na cerimonia da
imposição do chapéu a alguns novos cardeais. Descreve a forma da cerimonia,
cheio de admiração e de fé, – uma fé sincera e singela, flor dos seus jovens anos.
Ouvira uma missa ao papa, e, posto enfraquecido pela idade, este 1he pareceu
resistir a ação do tempo.
Não sucedeu o mesmo ao digno arcebispo do Rio de Janeiro. Posto que
muito mais moço, foi mais depressa tocado pela hora da morte. D. João era um
lutador; as folhas do dia lembram ou nomeiam os livros e opúsculos que escreveu,
não contando o trabalho de jornalista, obra que desaparece todos os dias com o sol,
para recomeçar com o mesmo sol, e não deixar nada na memória dos homens, a
não ser o vago sulco de um nome, que se apaga (para os melhores) com a segunda
geração. Este homem, nado em Barcelona, filho de um belga e de uma senhora
espanhola, – creio que era espanhola, – estava longe de crer que acabaria na sede
arquiepiscopal de uma grande capital da América. Tais são os destinos, tais os
ventos que levam a vela de cada um, – ou para a navegação costeira e obscura, ou
para a descoberta remota e gloriosa.
Era um lutador. Eu confesso que a primeira e mais viva impressão episcopal
que tenho não é de homem de combate, talvez porque a hora não era de combate.
A impressão que me ficou mais funda foi a daquele D. Manuel do Monte Rodrigues,
Conde de Irajá. A boca cheia de riso, como Frei Luís de Sousa refere de S.
197
Bartolomeu dos Mártires, os olhos pequenos, com a pouca luz restante, coados
pelos vidros grossos dos óculos de ouro, a benção pronta, a mão já tremula, o corpo
já curvado, descia da sege episcopal, todo vestido de paz e sossego. Uma figura
daquelas, na imaginação da criança, facilmente se liga a idéia da imortalidade. Um
dia, porém, D. Manuel morreu. A terra, credor que não perdoa, e apenas reformará
algumas letras, veio pedir-lhe a restituição do empréstimo. D. Manuel entregou-lho,
aumentado dos juros de uma vida de virtudes e trabalhos.
Veio o moço D. Pedro, e com pouco soou a hora de combate, que foi longa e
ruidosa. A parte dele não foi grande na luta; pelo menos, não teve igual eco aos
outros. Nem por isso a imagem do primeiro bispo me ficou apagada pela do
segundo, apesar do auxílio do tempo em favor de D. Pedro.
Não era a mansidão que conservava o relevo daquele. Nenhum lutador mais
impetuoso, mais tenaz e mais capaz que D. Vital, bispo de Olinda, e a impressão
que este me deixou foi extraordinária. Vi-o uma só vez, a porta do tribunal, no dia em
que ele e o bispo do Pará tiveram de responder no processo de desobediência.
A figura do frade, com aquela barba cerrada e negra, os olhos vastos e
plácidos, cara cheia, moça e bela, desceu da sege, não como o velho D. Manuel,
mas com um grande ar de desdém e superioridade, alguma cousa que o faria contar
como nada tudo o que se ia passar perante os homens. Sabe-se que morreu na
Europa, creio que na Itália. Há quem acredite que voluntariamente não tornaria a
cadeira de Pernambuco. Ao seu companheiro de então, o bispo do Pará, tive
ocasião de vê-lo ainda, numa sala, familiar e grave, atraente e circunspecto, mas já
sem aquele clangor das trombetas de guerra; a campanha acabara, a tolerância
recuperara os seus direitos.
Também a luta para o arcebispo D. João não era a mesma; não havia a crise
.dos primeiros tempos em que se distinguiu. Era a luta de todos os dias, que a
imprensa católica naturalmente mantém contra princípios e institutos que 1he são
adversos, sem por isso concitar os fiéis a desobediência e a destruição. Leão XIII é o
modelo dessa defesa do dogma sem a agitação da guerra, tolerando o que uns
chamam calamidade dos tempos, outros conquistas do espírito civil, mas que, sendo
fatos estabelecidos, não há modo visível de os desterrar deste mundo. Quem
esperará que a Igreja reconheça nenhum outro matrimonio, além do católico? Mas
quem quererá que recuse a benção aos que se casam civilmente? Não é só o
imposto que se dá a César, ou não é só o imposto em dinheiro; é também a
obediência as suas leis. A Igreja protestará, mas viverá.
Este ponto prende com outro bispo, o do Rio Grande, que pregou agora em
uma igreja de Santa Maria da Boca do Monte contra o casamento civil e contra os
que se não confessam. Diz uma carta aqui publicada que foi tão violento em sua
linguagem que o povo que enchia a igreja veio esperá-lo a porta e fez-1he uma
demonstração de desagrado. O correspondente chama-1he – "charivari medonho".
Eu posso não entender bem nem mal a violência do bispo; mas o que ainda menos
entendo é a dos fiéis. Que foram então os fiéis fazer ao templo onde pregava o
bispo? Foram lá, porque são fiéis, porque estão na mesma comunhão de
sentimentos religiosos. Se a tolerância lhes parecia conveniente, e a brandura
necessária, era caso de discordar do bispo e até lastimá-lo, mas pateá-lo? Que
fariam então os mais terríveis inimigos do Credo? Por que a pateada, "o charivari
medonho" é a ultima ratio do desagrado. Alguns, considerando o bastão pensarão
que aquela é só penúltima. Mas nem uma nem outra razão é própria de católicos.
Salvo se os fiéis que ouviam o bispo eram meros passeantes que entraram na igreja
como em um parque aberto, para descansar a vista e os pés. Pode deduzir-se isto
198
em desespero de causa; mas, francamente, não sei que pense. Folguemos em crer
que o arcebispo agora morto não daria azo a tal explosão, não só por si, mas ainda
pelo respeito em que o tinham.
[205]
[7 fevereiro]
A semana é de mulheres. Não falo daquelas finas damas elegantes que
dançaram em Petrópolis por amor de uma obra de caridade. Para falar delas não
faltarão nunca penas excelentes. Quisera dizer penas de alguma ave graciosa, a fim
de emparelhar com a de águia que vai servir para assinar o tratado de arbitramento
entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Mas se o nome de pena ficou ao pedacinho
de metal que ora usamos, direi as damas de Petrópolis que também haverá um
coração para adornar as que escreverem delas, como houve um para enfeitar a
pena de águia diplomática. Diferem os dous corações em ser este de ouro,
cravejado de brilhantes. E são ingleses! e são anglo-americanos! E dizem-se
homens práticos e duros! Em meio de tanta dureza e tanta prática, lá acharam uma
nesga azul de poesia, um raio de simbolismo e uma expressão de sentimento que se
confunde com a dos namorados.
Nós, que não somos práticos e temos uma nota de meiguice no coração. tão
alegres que enchemos as ruas de confetes cinco ou seis semanas antes do
carnaval, nós não proporíamos aquele coração de ouro com brilhantes para assinar
o tratado. Não é porque as nossas finanças estão antes para o simples aço de
Birmingham, mas por não cair em ternura pública, neste fim de século, e um pouco
por medo da troca. Nós temos da seriedade uma idéia que se confunde com a de
sequidão. Ministro que em tal pensasse cuidaria ouvir, alta noite, por baixo das
janelas, ao som do violão, aqueles célebres versos de Laurindo :
Coração, por que palpitas?
Coração por que te agitas?
Os ingleses e os anglo-americanos, esses são capazes de achar uma nota de
poesia nas mulheres de soldados que se foram despedir de seus amigos do 7º
batalhão, quando este embarcou para a Bahia, quarta-feira. Foram despedir-se a
praia, como as esposas dos Lusíadas e até as fizeram lembrar aos que não
esqueceram este e os demais versos: "Qual em cabelo: ó doce e amado esposo!" As
diferenças são grandes; umas eram consortes dos barões assinalados que saíram a
romper o mar "que geração alguma não abriu", estas cá são tristes sócias dos
soldados, e não podiam ir com eles, como de costume. Queriam acompanhá-los até
a Bahia, até o sertão, até os Canudos, onde o Major Febrônio não entrou, por
motivos constantes de um documento público. Dizem que choravam muitas; dizem
que outras declaravam que iriam em breve juntar-se a eles, tendo vivido com eles e
querendo morrer com eles. Delas não poucas os vieram acompanhando de Santa
Catarina e nada conheciam da cidade, mas bradavam com a mesma alma que
buscariam meios de chegar até onde chegasse a expedição.
Talvez tudo isso vos pareça reles e chato. Deus meu, não são as lástimas de
Dido, nem a meia dúzia de linhas da notícia podem pedir meças aos versos do
poeta. Os soldados do 7º batalhão não são Enéias; vão à cata de um iluminado e
seus fanáticos, empresa menos para glória que para trabalhos duros. Assim é; mas
é também certo, pelo que dizem as gazetas, que as tais mulheres padeciam
deveras. Ora, a dor, por mais rasteira que doa, não perde o seu ofício de doer.
199
Essas amigas de quartel não elevam o espírito, mas pode ser que contriste ouvi-las,
como entristece ver as feridas dos mendigos que andam na rua ou residem nas
calçadas, corredores e portas.
Entre parêntesis, não excluo do número dos mendigos aqueles mesmos que
tem carro, porquanto as suas despesas são relativamente grandes. Há dias, alguém
que lê os jornais de fio a pavio deu com um anúncio de um homem que se oferecia
para puxar carro de mendigo; donde concluía esta senhora (é uma senhora) que há
homens mais mendigos que os próprios mendigos. Chegou ao ponto de crer que a
carreira do mendigo é próspera, uma vez que a dos seus criados é atrativa. Não vou
tão longe; eu creio que antes ser diretor de banco, – ainda de banco que não pague
dividendos. Tem outro asseio, outra compostura, outra respeitabilidade, e durante o
exercício governa o mercado, ou faz que governa, que é a mesma cousa.
Pobres amigas de quartel! Não direi, para fazer poesia, que fostes misturar as
vossas lágrimas amargas com o mar, que é também amargo; faria apenas um
trocadi1ho, sem grande sentido, pois não é o sal que dói. Também não quero notar
que a aflição é a rasoura da gala e do molambo. Não; eu sou mais humano; eu peço
para vós uma esperança, – a esperança máxima, que é o esquecimento. Se não
houverdes dinheiro para embarcar, pedi ao menos o esquecimento, e este caluniado
amigo dos homens pode ser que venha sentar-se a beira das velhas tábuas que vos
servem de leito. Se ele vier, não o mandeis embora; há casos em que ele não é
preciso, e entretanto fica e faz prosperar um sentimento novo. No nosso pode ser
necessário. Enquanto o sócio perde uma perna cumprindo o seu dever, a sócia
deslembrada perde a saudade, que dói mais que ferro no corpo, e tudo se acomoda.
Lágrimas parecem-se com féretros. Quando algum destes passa, rico ou
pobre, acompanhado ou sozinho, todos tiram o chapéu sem interromper a
conversação, que tanto pode ser da expedição dos Canudos como do naufrágio da
Laje. Por isso, descobre-te ao ver passar aquelas outras lágrimas humildes e
desesperadas que verteram as esposas e filhos dos operários que naufragaram na
fortaleza. Também estas correram a praia, umas pelos pais, outras pelos maridos,
todas por defuntos, dos quais só alguns apareceram; a maior parte, se não ficou ali
no seio das águas, foi levada por estas, barra fora, a descoberta de um mundo mais
que velho.
Era uso dos operários irem às manhãs e tornarem às tardes; mas o mar tem
surpresas, e as suas águas não amam só as vítimas ilustres. Também lhes servem
as obscuras, sem que aliás precisem de umas nem de outras; mas é por amor dos
homens que elas os matam. Assim ficam eles avisados a se não arriscarem mais
sem grandes cautelas.
Em caso de desespero, não trabalhem. O trabalho é honesto, mas há outras
ocupações pouco menos honestas e muito mais lucrativas.
[206]
[14 fevereiro]
Conheci ontem o que é celebridade. Estava comprando gazetas a um homem
que as vende na calçada da Rua de S. José, esquina do Largo da Carioca, quando
vi chegar uma mulher simples e dizer ao vendedor com voz descansada :
– Me dá uma folha que traz o retrato desse homem que briga lá fora.
– Quem?
– Me esqueceu o nome dele.
200
Leitor obtuso, se não percebeste que "esse homem que briga lá fora" é nada
menos que o nosso Antônio Conselheiro, crê-me que és ainda mais obtuso do que
pareces. A mulher provavelmente não sabe ler, ouviu falar da seita dos Canudos,
com muito pormenor misterioso, muita auréola, muita lenda, disseram-1he que
algum jornal dera o retrato do Messias do sertão, e foi comprá-lo, ignorando que nas
ruas só se vendem as folhas do dia. Não sabe o nome do Messias; é "esse homem
que briga lá fora". A celebridade, caro e tapado leitor, é isto mesmo. O nome de
Antônio Conselheiro acabará por entrar na memória desta mulher anônima, e não
sairá mais. Ela levava uma pequena, naturalmente filha; um dia contará a história à
filha, depois à neta,à porta da estalagem, ou no quarto em que residirem.
Esta é a celebridade. Outra prova é o eco de Nova Iorque e de Londres onde
o nome de Antônio Conselheiro fez baixar os nossos fundos. O efeito é triste. mas vê
se tu. leitor sem fanatismo, vê se és capaz de fazer baixar o menor dos nossos
títulos. Habitante da cidade, podes ser conhecido de toda a Rua do Ouvidor e seus
arrabaldes, cansar os chapéus, as mãos, as bocas dos outros em saudações e
elogios; com tudo isso, com o teu nome nas folhas ou nas esquinas de uma rua, não
chegarás ao poder daquele homenzinho, que passeia pelo sertão uma vila, uma
pequena cidade. a que só falta uma folha. um teatro, um clube, uma polícia e sete
ou oito roletas, para entrar nos almanaques.
Um dia, anos depois de extinta a seita e a gente dos Canudos, Coe1ho Neto,
contador de cousas do sertão, talvez nos de algum quadro daquela vida, fazendo-se
cronista imaginoso e magnífico deste episódio que não tem nada fim-de-século. Se
leste o Sertão, primeiro livro da "Coleção Alva", que ele nos deu agora, concordarás
comigo. Coelho Neto ama o sertão, como já amou o Oriente, e tem na palheta as
cores próprias – de cada paisagem. Possui o senso da vida exterior. Dá-nos a
floresta, com os seus rumores e silêncios, com os seus bichos e rios, e pinta-nos um
caboclo que, por menos que os olhos estejam acostumados a ele, reconhecerão que
é um caboclo.
Este livro do Sertão tem as exuberâncias do estilo do autor, a minuciosidade
das formas, das cousas e dos momentos, o numeroso rol das características de uma
cena ou de um quadro. Não se contenta com duas pinceladas breves e fortes; o
colorido é longo, vigoroso e paciente, recamado de frases como aquela do céu
quente ’donde caía uma paz cansada", e de imagens como esta: "A vida banzeira,
apenas alegrada pelo som da voz de Felicinha, de um timbre fresco e sonoro de
mocidade, derivava como um rio lodoso e pesado de águas grossas, a beira do qual
cantava uma ave jucunda." A natureza está presente a tudo nestas páginas. Quando
Cabiúna morre ("Cega", 280) e estão a fazer-1he o caixão, a noite, são as águas, é o
farfalhar das ramas fora que vem consolar os tristes de casa pela perda daquele
"esposo fecundante dasmeigas virgens, patrono humano da floragáo dos campos,
reparador dos flagelos do sol e das borrascas". "Cega" é uma das mais aprimoradas
novelas do livro. "Praga" terá algures demasiado arrojo, mas compensa o que
houver nela excessivo pela vibração extraordinária dos quadros.
Estes não são alegres nem graciosos, mas a gente orça ali pela natureza da
praga, que é o cólera. Agora, se quereis a morte jovial, tendes Firmo, o vaqueiro, um
octogenário que "não deixa cair um verso no chão", e morre cantando e ouvindo
cantar ao som da viola. "Os Velhos" foram dados aqui. "Tapera" saiu na Revista
Brasileira.
Os costumes são rudes e simples, agora amorosos, agora trágicos, as falas
adequadas as pessoas, e as idéias não sobem da cerebração natural do matuto.
201
Histórias sertanejas dão acaso não sei que gosto de ir descansar, alguns dias, da
polidez encantadora e alguma vez enganadora das cidades. Varela sabia o ritmo
particular desse sentimento; Gonçalves Dias, com andar por essas Europas fora,
também o conhecia; e, para só falar de um prosador e de um vivo, Taunay dá
vontade de acompanhar o Dr. Cirino e Pereira por aquela longa estrada que vai de
Sant’Ana de Paranaíba a Camapuama, até o leito da graciosa Nocência. Se
achardes no Sertão muito sertão, lembrai-vos que ele é infinito, e a vida ali não tem
esta variedade que não nos faz ver que as casas são as mesmas, e os homens não
são outros. Os que parecem outros um dia é que estavam escondidos em si
mesmos.
Ora bem, quando acabar esta seita dos Canudos, talvez haja nela um livro
sobre o fanatismo sertanejo e a figura do Messias. Outro Coelho Neto, se tiver igual
talento, pode dar-nos daqui a um século um capítulo interessante, estudando o
fervor dos bárbaros e a preguiça dos civilizados, que os deixaram crescer tanto,
quando era mais fácil tê-los dissolvido com uma patrulha, desde que o simples frade
não fez nada. Quem sabe? Talvez então algum devoto, relíquia dos Canudos,
celebre o centenário desta finada seita.
Para isso, basta celebrar o centenário da cabeleira do apóstolo, como agora,
pelo que diz o Jornal do Comércio, comemoraram em Londres o centenário da
invenção do chapéu alto. Chapéus e cabelos são amigos velhos. Foi a 15 de janeiro
último. Não conhecendo a história deste complemento masculino, nada posso dizer
das circunstancias em que ele apareceu no dia 15 de janeiro de 1797. Ou foi
exposto a venda naquela data, ou apontou na rua, ou algum membro do parlamento
entrou com ele no recinto dos debates, a maneira britânica. Fosse como fosse, os
ingleses celebraram esse dia histórico da chapelaria humana. Sabeis o que
Macaulay disse da morte de um rei e da morte de um rato. Aplicando o conceito ao
presente caso, direi que a concepção de um chapeleiro no ventre de sua mãe é, em
absoluto, mais interessante que a fabricação de um chapéu; mas, hipótese haverá
em que a fabricação de um chapéu seja mais interessante que a concepção do
chapeleiro. Este não passará do chapéu comum e trabalhará para uma geração
apenas; aquele será novo e ficará para muitas gerações.
Com efeito, lá vai um século, e ainda não acabou o chapéu alto. O chapéu
baixo e o chapéu mole fazem-lhe concorrência por todos os feitios, e, as vezes
parecem vence-lo. Um fazendeiro, vindo há muitos anos a esta capital, na semana
em que certa chapelaria da Rua de S. José abriu ao público as suas seis ou sete
portas, ficou pasmado de vê-las todas, de alto a baixo, cobertas de chapéus
compridos. Tempo depois, voltando e indo ver a casa, achou-1he as mesmas seis
ou sete portas cobertas de chapéus curtos. Cuidou que a vitória destes era decidida,
mas sabeis que se enganou. O chapéu alto durará ainda e durará por muitas dúzias
de anos. Quando ninguém já o trouxer de passeio ou de visita, servirá nas
cerimonias públicas. Eu ainda alcancei o porteiro do Senado, nos dias de abertura e
de encerramento da assembléia geral, vestindo calção, meia e capa de seda preta,
sapato raso com fivela, e espadim a cinta. Por fim acabou o vestuário do porteiro. O
mesmo sucederá ao chapéu alto; mas por enquanto há quem celebre o seu primeiro
século de existência. Tem-se dito muito mal deste chapéu. Chamam-lhe cartola,
chaminé, e não tarda canudo, para rebaixá-lo até a cabeleira hirsuta de Antônio
Conselheiro. No Carnaval, muita gente o não tolera, e os mais audazes saem a rua
de chapéu baixo, não tanto para poupar o alto, como para resguardar a cabeça, sem
a qual não há chapéu alto nem baixo.
202
[207]
[21 fevereiro]
Estou com inveja aos argentinos. Agora que os gregos surgem de toda parte
par correr a Atenas, receber armamento e passar a Ilha de Creta, Buenos Aires dá
200 desses patriotas que aí vão lutar contra os otomanos. Nós, que devíamos dar
500, não damos nenhum. Certamente não os temos, ou tão raros são eles que
melhor é irem pela calada. Conheci outrora um grego. Petrococchino, homem da
praça, e conheci também a Aimée, uma francesa, que em nossa língua se traduzia
por amada, tanto nos dicionários como nos corações. Era uma criaturinha do finado
Alcazar, que nenhuma Turquia defendeu da Hélade. Ao contrário, os turcos fugiram
e a bandeira helênica se desfraldou na Creta da Rua Uruguaiana... E daí é possível
que nem mesmo este Petrococchino fosse grego.
Notório, como ele era, não os temos agora. Na lista da polícia, aparecem as
vezes nomes de gregos, como de turcos, mas a gente que cultiva a planta noturna
pode adorar a cruz e o crescente, não se bate por ele nem por ela. Eu quisera,
entretanto, ver. partir daqui, Rua do Ouvidor abaixo, uma falange bradando para ser
entendida da terra os versos de Hugo: En Grece! Lembras-te, não? Se és do meu
tempo não esqueceste que tu e eu, quando expectorávamos os primeiros versos
que os rapazes trazem consigo, as Orientais contavam já trinta anos e mais. Mas era
por elas que ainda aprendíamos poesia. Trazíamos de cor as páginas
contemporâneas da revolução helênica, e do bravo Canáris, queimador de navios, e
da batalha de Navarino, e da marcha turca, e de toda aquela ressurreição de um
país meio antigo, meio cristão. En Grece! cantava o poeta, pedindo que 1he
selassem o cavalo e 1he dessem a espada, que queria partir já, já, contra os turcos;
mas a lira mudava subitamente de tom, e o poeta perguntava a si mesmo quem era
ele. Confessava então não haver mais que uma folha que o vento leva, nem amar
outra cousa mais que as estrelas e a lua. Tão pouca cousa não era nos demais
versos em que cantava os heróis gregos, mas Hugo lembrava-se de Byron...
Com efeito, Byron armando-se para ir ao encontro do muçulmano, se teve o
melancólico desfecho de 1824, nem por isso perdeu o bri1hante arranco de 1823;
era preciso fazer cousa idêntica ou análoga. Não se podia convidar a bater os turcos
sem ir pelo mesmo caminho. Um poeta lírico tinha de ser efetivamente épico. E vede
bem este grande homem, que ainda ontem Olavo Bilac evocava aqui, naquela prosa
sugestiva que lhe conheceis, vede bem que não estava aborrecido nem cansado:
acabava de escrever os últimos cantos de Don Juan, e não sorvera ainda os últimos
beijos da Guiccioli. Para levar alguma parte desta para a Grécia, levou-lhe o irmão,
cunhado in partibus infidelium, e meteu-se em navio que fretou, com um médico e
remédios para mil homens durante um ano. Na Grécia organizou e equipou umas
centenas de soldados e pôs-se a testa deles. Nem todos poderiam fazer as cousas
por este estilo manhoso. Era, ao mesmo tempo que um ato heróico, uma aventura
poética, um apêndice do Child Harold. A febre não quis que ele perecesse na ponta
de uma adaga otomana. Missolonghi avisou assim aos demais poetas que não
saíssem a campo, em defesa da velha Grécia remoçada, não por medo de morrer ali
ou alhures, mas porque o exemplo de Byron devia ficar com Byron. O epitáfio do
poeta tinha de ser único.
Ao concerto universal daquele tempo não faltaram liras nem poetas. Cada
língua teve o seu Píndaro. Lembra-te de Lamartine; lembra-te de José Bonifácio,
cuja célebre ode clamava aos gregos, com entusiasmo: Sois helenos! sois homens!
Compara ontem com hoje. Talvez o ardor do Romantismo ajudou a incendiar as
203
almas. Os olhos estavam ainda mal acordados daquele vasto pesadelo imperial, que
foi também um grande sonho, campanhas de conquista e de opressão, campanhas
de liberdade, tudo feito, desfeito e refeito; a reconstituição da Grécia pedia uma
cruzada particular. Cimódoce pergunta a Eudoro: "Há também uma Vênus crista?"
Esta Vênus era agora a própria Grécia convertida, como s heroína de
Chateaubriand, e conquistada ao turco depois de muito sangue.
Que os helenos são homens é o que estás vendo agora, quando toda a
faculdade de medicina internacional cuida de alongar os dias do "enfermo", com os
seus xaropes de notas e pílulas de esquadras sem fogo. Os ínfimos gregos não se
arreceiam e, cansados de ouvir gemer Creta, lá se foram a arrancá-la dos braços
otomanos. A diplomacia é uma bela arte, uma nobre e grande arte; o único defeito
que há nas suas admiráveis teias de aranha é que uma bala fura tudo, e ~ vontade
de um povo, se algum santo entusiasmo 1he aquece as veias, pode esfrangalhar as
mais finas obras da astúcia humana. Se a Grécia acabar vencendo, as grandes
potências não terão sido mais que jogadores de voltarete a tentos.
Que outra cousa tem sido elas, a propósito das reformas turcas? As reformas
vem, não vem, redigem-se, emendam-se, copiam-se, propõem-se, aceitam-se, vão
cumprir-se e não se cumprem. Vereis que ainda caem como as reformas cubanas,
que, depois de tanto sangue derramado, vieram pálidas e mofinas. Ninguém as
quer, e o ferro e o fogo continuam a velha obra. Assim se vai fazendo a história, com
aparência igual ou vária, mediante a ação de leis, que nós pensamos emendar,
quando temos a fortuna de vê-las. Muita vez não as vemos, e então imitamos
Penélópe e o seu tecido, desfazendo de noite o que fazemos de dia, enquanto outro
tecelão maior, mais alto ou mais fundo e totalmente invisível compõe os fios de outra
maneira, e com tal força que não podemos desfazer nada. Sucede que, passados
tempos, o tecido esfarrapa-se e nós, que trabalhávamos em rompe-lo, cuidados que
a obra é nossa. Na verdade, a obra é nossa, mas é porque somos os dedos do
tecelão; o desenho e o pensamento são dele, e presumindo empurrar a carroça, o
animal é que a tira do atoleiro, um animal que somos nós mesmos... Mas aí me
embrulho eu. e estou quase a perder-me em filosofias grossas e banais. Oh!
banalíssimas!
Domingo próximo é possível que te explique esta confusão da minha alma.
Estou certo que me entenderás e aplaudirás. Além da confusão da alma. imagina
que me dói a testa em um só ponto escasso, no sobrolho direito; a dor, que não
precisa de extensão grande para fazer padecer muito, contenta-se as vezes com o
espaço necessário i cabeça de um alfinete. Também esta reflexão é banal, mas tem
a vantagem de acabar a crônica.
[208]
[28 fevereiro]
"Domingo próximo é possível que te explique esta confusão da minha alma.
Estou certo que me entenderás e aplaudirás." Assim concluí eu a Semana passada.
Venho cumprir aquela meia promessa.
É certo que a festa suntuosa de quarta-feira afrouxou em parte a sensação
exposta naquelas palavras. A recepção do palácio do governo respondeu ao que se
esperava do ato, e deixou impressão forte e profunda. Aquele edifício que eu vi, há
trinta anos, logo depois de acabado, passou por várias mãos, viveu na obscuridade
e na hipoteca, passou finalmente ao poder do governo, e o ilustre Sr. Vice-
204
presidente da República acaba de inaugurá-lo com raro esplendor. Foi o sucesso
principal da semana; mas a semana já não é minha, como ides ver.
Leitor. Deus gastou seis dias em fazer este mundo, e repousou no sétimo.
Ora, Deus podia muito bem não repousar, mas quis deixar um exemplo aos homens.
Daí o nosso velho descanso de um dia, que os cristãos chamaram do Senhor. Eu
não sou Deus, leitor; não criei este mundo, tanto que lhe acho algumas imperfeições,
como a de nascerem as uvas verdes, para engano das raposas. Eu as faria nascer
maduras e talvez já engarrafadas. Mas criticar obra feita não custa; Deus não podia
prever que os homens não se limitassem a falsificar eleições e fizessem o mesmo ao
vinho.
Vamos ao que importa. Se Deus descansou um dia, depois de seis dias de
trabalho, Força é que eu descanse algum tempo depois de uma obra de anos. Há
cerca de cinco anos que vos digo aqui ao domingo o que me passa pela cabeça, a
propósito da semana finda, e até sem nenhum propósito. Parece tempo de repousar
o meu tanto. Que o repouso seja breve ou longo, é o que não sei dizer; vou estirar
estes membros cansados e cochilar a minha sesta.
Antes de cochilar, podia fazer um exame de consciência e uma confissão
pública, a maneira de Sarah Bernhardt ou de Santo Agostinho. Oh! perdoa-me,
santo da minha devoção, perdoa esta união do teu nome com o da ilustre trágica;
mas este século acabou por deitar todos os nomes no mesmo cesto, misturá-los,
tirá-los sem ordem e cose-los sem escolha. É um século fatigado. As Forças que
despendeu, desde princípio, em aplaudir e odiar, foram enormes. Junta a isso as
revoluções, as anexações, as dissoluções e as invenções de toda casta, políticas e
filosóficas, artísticas e literárias, até as acrobáticas e farmacêuticas, e
compreenderás que é um século esfalfado. Vive unicamente para não desmentir os
almanaques. Todos os séculos tem cem anos; este não quer sair da velha regra,
nem ser menos constante que o nosso robusto Barbacena, seu grande rival Em 1he
batendo a hora, irá com facilidade para onde foram os séculos de Péricles e de
Augusto.
O meu exame de consciência, se houvesse de fazê-lo, não imitaria Agostinho
nem Sarah. Nem tanta humildade, nem tanta glória. O grande santo dividiu, é
verdade, as confissões humanas em duas ordens, uma que é um louvor, outra que é
um gemido, definindo assim as suas e as da representante de Dona Sol. Faz crer
que não há terceira classe, em que a gente possa louvar-se com moderação e
gemer baixinho; mas eu cuido que há de haver. A imitar uma das duas, acho que a
mais difícil seria a de Sarah. Não li ainda as confissões desta senhora, mas pela
nota que nos deu dela Eça de Queirós, com aquela graça viva e cintilante dos seus
três últimos "Bilhetes Postais", não sei como é que uma criatura possa dizer tanta
cousa de si mesma. Em particular, vá. Há pessoas que, não receando indiscretos,
escancaram os corações, e os amigos reconhecem que, por mais que se pense bem
de outro, pensa-se menos bem que ele próprio. Mas. em público, em letra de forma,
no Fígaro, que é o Diário Oficial do universo, custa crer, mas é verdade.
Antes gemer, com esta cláusula de gemer baixinho, e confessar os pecados,
mas com discrição e cautela. Pecados são ações, intenções ou omissões graves;
não se devem contar todas. nem integralmente, mas só a parte que menos pesa a
alma e não faz desmerecer uma pessoa no conceito dos homens. Não especifico,
por não perder tempo, e quem se despede, mal pode dizer o essencial. O essencial
aqui é dizer que não faço confissão alguma, nem do mal, nem do bem. Que mal me
saiu da pena ou do coração? Fui antes pio e eqüitativo que rigoroso e injusto.
Cheguei a elegia e a lágrima, e se não bebi todos os Cambarás e Jataís deste
205
mundo, é porque espero encontrá-los no outro, onde já nos aguardam os xaropes do
Bosque e de outras partes. Lá irá ter o grande Kneipp, e anos depois o kneippismo.
pela regra de que primeiro morrem os autores que as invenções. Há mais de um
exemplo na filosofia e na farmácia.
Não tireis da última frase a conclusão de cepticismo. Não achareis linha
céptica nestas minhas conversações dominicais. Se destes com alguma que se
possa dizer pessimista, adverte que nada há mais oposto ao cepticismo. Achar que
uma cousa é ruim, não é duvidar deles, mas afirmá-la. O verdadeiro, céptico não crê,
como o Dr. Pangloss. que os narizes se fizeram para os óculos, nem, como eu, que
os óculos é que se fizeram para os narizes; o céptico verdadeiro descrê de uns e de
outros. Que economia de vidros e de defluxos, se eu pudesse ter esta opinião!
Adeus, leitor. Força é deitar aqui o ponto final. A mim, se não fora a
conveniência de ir para s rede, custar-me-ia muito pinear o dito ponto, pelas
saudades que levo de ti. Não há nada como falar a uma pessoa que não interrompe.
Diz-se-lhe tudo o que se auer, o ctue va1e e o que não vale, repetem-se-1he as
cousas e os modos, as frases e as idéias, contradizem-se-lhe as opiniões, e a
pessoa que lê, não interrompe. Pode lançar a folha para o lado ou acabar dormindo.
Quem escreve não vê o gesto nem o sono, segue caminho e acaba. Verdade é que,
neste momento, adivinho uma reflexão tua. Estás a pensar que o melhor modo de
sair de uma obrigação destas não difere do de deixar um baile, que é descer ao
vestiário, enfiar o sobretudo e sumir-se no carro ou na escuridão. Isto de empregar
tanto discurso .faz crer que se presumem saudades nos outros, além de ser fora da
etiqueta. Tens razão, leitor; e, se fosse tempo de rasgar esta papelada e escrever
diversamente, crê que o faria; mas é tarde, muito tarde. Demais, a frase final da
outra semana precisava de ser explicada e cumprida; daí todos estes suspiros e
curvaturas. Falei então na confusão da minha alma, e devia dizer em que é que ela
consistia e consiste, e cuja era a causa. A causa está dita; é a natural melancolia da
separação. Adeus, amigo, até a vista. Ou, se queres um jeito de falar mais nosso,
até um dia. Creio que me entendeste, e creio também que me aplaudes, como te
anunciei na semana passada. Adeus!
[209]
[4 novembro]
Entre tais e tão tristes casos da semana, como o terremoto de Venezuela, a
queda do Banco Rural e a morte do sineiro da Glória, o que mais me comoveu foi o
do sineiro.
Conheci dous sineiros na minha infância, aliás três, – o Sineiro de S. Paulo,
drama que se representava no Teatro S. Pedro, – o sineiro da Notre Dame de Paris,
aquele que fazia um só corpo, ele e o sino, e voavam juntos em plena Idade Média,
e um terceiro, que não digo, por ser caso particular. A este, quando tornei a vê, era
caduco. Ora, o da Glória, parece ter lançado a barra adiante de todos.
Ouvi muita vez repicarem, ouvi dobrarem os sinos da Glória, mas estava
longe absolutamente de saber quem era o autor de ambas as falas. Um dia cheguei
a crer que andasse nisso eletricidade. Esta força misteriosa há de acabar por entrar
na igreja e já entrou, creio eu, em forma de luz. O gás também já ali se estabeleceu.
A igreja é que vai abrindo a porta as novidades, desde que a abriu a cantora de
sociedade ou de teatro, para dar aos solos a voz de soprano, quando nós a
tínhamos trazida por D. João VI, sem despir-1he as calças. Conheci uma dessas
vozes, pessoa velha, pálida e desbarbada; cantando, parecia moça.
206
O sineiro da Glória é que não era moço. Era um escravo, doaau em 1853
aquela igreja, com a condição de a servir dous anos. Os dous anos acabaram em
1855, e o escravo ficou livre, mas continuou o ofício. Contem bem os anos, quarenta
e cinco, quase meio século, durante os quais este homem governou uma torre. A
torre era dele, dali regia a paróquia e contemplava o mundo.
Em vão passavam as gerações, ele não passava. Chamava-se João. : Noivos
casavam, ele repicava as bodas; crianças nasciam, ele repicava ao batizado; pais e
mães morriam, ele dobrava aos funerais. Acompanhou a história da cidade. Veio a
febre amarela, o cólera-mórbus, e João dobrando. Os partidos subiam ou caíam,
João dobrava ou — repicava, sem saber deles. Um dia começou a guerra do
Paraguai, e durou cinco anos; João repicava e dobrava, dobrava e repicava pelos
mortos e pelas vitórias. Quando se decretou o ventre livre das escravas, João é que
repicou. Quando se fez a abolição completa, quem repicou foi João. Um dia
proclamou-se a República, João repicou por ela, e repicaria pelo Império, se o
Império tornasse.
Não lhe atribuas inconsistência de opiniões; era o ofício. João não sabia de
mortos nem de vivos; a sua obrigação de 1853 era servir a Glória, tocando os sinos,
e tocar os sinos, para servir a Glória, alegremente ou tristemente, conforme a ordem.
Pode ser até que, na maioria dos casos, só viesse a saber do acontecimento depois
do dobre ou do repique.
Pois foi esse homem que morreu esta semana, com oitenta anos de idade. O
menos que 1he podiam dar era um dobre de finados, mas deram-1he mais; a
Irmandade do Sacramento foi buscá-lo a casa do vigário Molina para a igreja, rezouse-1he
um responso e levaram- no para o cemitério, onde nunca jamais tocará sino
de nenhuma espécie; ao menos, que se ouça deste mundo.
Repito, foi o que mais me comoveu dos três casos. Porque a queda do Banco
Rural, em si mesma, não vale mais que a de outro qualquer banco. E depois não há
bancos eternos. Todo banco nasce virtualmente quebrado; é o seu destino, mais
ano, menos ano. O que nos deu a ilusão do contrário foi o finado Banco do Brasil,
uma espécie de sineiro da Glória, que repicou por todos os vivos, desde Itaboraí até
Dias de Carvalho, e sobreviveu ao Lima, ao "Lima do Banco". Isto é que fez crer a
muitos que o Banco do Brasil era eterno. Vimos que não foi. O da República já não
trazia o mesmo aspecto; por isso mesmo durou menos.
Ao Rural também eu conheci moço; e, pela cara, parecia sadio e robusto.
Posso até contar uma anedota, que ali se deu há trinta anos e responde ao discurso
do Sr. Júlio Otoni. Ninguém me contou; eu mesmo vi com estes olhos que a terra há
de comer, eu vi o que ali se passou há tanto tempo. Não digo que fosse novo, mas
para mim era novíssimo.
Estava eu ali, ao balcão do fundo, conversando. Não tratava de dinheiro,
como podem supor, posto fosse de letras, mas não há só letras bancárias; também
as há literárias, e era destas que eu tratava. Que o lugar não fosse propício, creio;
mas, aos vinte anos, quem é que escolhe lugar para dizer bem de Camões?
Era dia de assembléia geral de acionistas, para se 1hes dar conta da gestão
do ano ou do semestre, não me lembra. A assembléia era no sobrado. A pessoa
com quem eu falava tinha de assistir a sessão, mas, não havendo ainda número,
bastava esperar cá embaixo. De resto, a hora estava a pingar. E nós falávamos de
letras e de artes, da última comédia e da ópera recente. Ninguém entrava de fora, a
não ser para trazer ou levar algum papel, cá de baixo. De repente, enquanto eu e o
outro conversávamos, entra um homem lento, aborrecido ou zangado, e sobe as
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escadas como se fossem as do patíbulo. Era um acionista. Subiu, desapareceu.
Íamos continuar, quando o porteiro desceu apressadamente.
– Sr. secretário! Sr. secretário!
– Já há maioria?
– Agora mesmo. Metade e mais um. Venha depressa, antes que algum saia,
e não possa haver sessão.
O secretário correu aos papéis. pegou deles, tornou. voou, subiu, chegou,
abriu-se a sessão. Tratava-se de prestar contas aos acionistas sobre o modo por
que tinham sido geridos os seus dinheiros, e era preciso espreitá-los, agarrá-los,
fechar a porta para que não saíssem e ler-lhes a viva força o que se havia passado.
Imaginei logo que não eram acionistas de verdade; e, falando nisto a alguém, à
porta da rua, ouvi-lhe esta explicação, que nunca me esqueceu:
– O acionista, disse-me um amigo que passava, é um substantivo masculino
que exprime "possuidor de ações" e, por extensão, credor dos dividendos. Quem diz
ações diz dividendos. Que a diretoria administre, vá, mas que 1he tome o tempo em
prestar-1he contas, é demais. Preste dividendos; são as contas vivas. Não há banco
mau se dá dividendos. Aqui onde me vê, sou também acionista de vários bancos, e
faço com eles o que faço com o júri. não vou lá, não me amolo.
– Mas, se os dividendos falharem?
– É outra cousa, então cuida-se de saber o que há.
Pessoa de hoje, a quem contei este caso antigo, afirmou-me que a pessoa
que me falou, há trinta anos, a porta do Rural, não fez mais que afirmar um principio,
e que os princípios são eternos. A prova é que aquele ainda agora o seria, se não
fosse o incidente da corrida dos cheques há dous meses.
– Então, parece-lhe...?
– Parece-me.
Quanto ao terceiro caso triste da semana, o terremoto de Venezuela, quando
eu penso que podia ter acontecido aqui, e, se aqui acontecesse, é provável que eu
não tivesse agora a pena na mão, confesso que lastimo aquelas pobres vítimas.
Antes uma revolução. Venezuela tem vertido sangue nas revoluções, mas sai-se
com glória para um ou outro lado, e alguém vence, que é o principal; mas este
morrer certo fugindo-1hes o chão debaixo dos pés, ou engolindo-os a todos ah!...
Antes uma, antes dez revoluções, com trezentos mil diabos! As revoluções servem
sempre aos vencedores, mas um terremoto não serve a ninguém. Ninguém vai ser
presidente e de ruínas. É só trapalhada, confusão e morte inglória. Não, meus
amigos. Nem terremotos nem bancos quebrados. Vivem os sineiros de oitenta anos,
e um só, perpétuo e único badalo!
[210]
[11 novembro]
Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz. aí
entra o meu com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto. Daí vem
que, enquanto o telégrafo nos dava notícia tão graves como a taxa francesa sobre a
falta de filhos e o suicídio do chefe de polícia paraguaio, cousas que entram pelos
208
olhos, eu apertei os meus para ver cousas miúdas, cousas que escapam ao maior
número, cousas de míopes. A vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes
vistas não pegam.
Não nego que o imposto sobre a falta de filhos e o celibato podia dar de si
uma página luminosa, sem aliás tocar na estatística. Só a parte cívica. Só a parte
moral. Dava para elogio e para descompostura. A grandeza da pátria, da indústria e
dos exércitos faria o elogio. Q regímen de opressão inspirava a descompostura, visto
que obriga casar para não pagar a taxa; casado, obriga a fazer filhos, para não
pagar a taxa; feitos os filhos, obriga a criá-los e educá-los. com o que afinal se paga
uma grande taxa. Tudo taxas. Quanto ao suicídio do chefe de polícia, são palavras
tão contrárias umas as outras que não há crer nelas. Um chefe de polícia exerce
funções essencialmente vitais e alheias a melancolia e ao desespero. Antes de se
demitir da vida, era natural demitir-se do cargo, e o segundo decreto bastaria acaso
para evitar o primeiro.
Deixei taxas e mortes e fui a casa de um leiloeiro, que ia vender objetos
empenhados e não resgatados. Permitam-me um trocadilho. Fui ver o martelo bater
no prego. Não é lá muito engraçado, mas é natural, exato e evangélico. Está
autorizado por Jesus Cristo : Tu es Petrus, etc. Mal comparando, o meu ainda é
melhor. O da Escritura está um pouco forçado, ao passo que o meu, – o martelo
batendo no prego, – é tão natural que nem se concebe dizer de outro modo.
Portanto, edificarei a crônica sobre aquele prego, no som daquele martelo.
Havia lá broches, relógios, pulseiras, anéis, botões, o repertório do costume.
Havia também um livro de missa, elegante e escrupulosamente dito para missa, a
fim de evitar confusão de sentido. Valha-me Deus! até nos leiloes persegue-nos a
gramática. Era de tartaruga, guarnecido de prata. Quer dizer que, além do valor
espiritual, tinha aquele que propriamente o levou ao prego. Foi uma mulher que
recorreu a esse modo de obter dinheiro. Abriu mão da salvação da alma, para salvar
o corpo, a menos que não tivesse decorado as orações antes de vender o manual
delas. Pobre desconhecida! Mas também (e é aqui que eu vejo o dedo de Deus),
mas também quem é que 1he mandou comprar um livro de tartaruga com
ornamentações de prata? Deus não pede tanto; bastava uma encadernação simples
e forte, que durasse, e feia para não tentar a ninguém. Deus veria a beleza dela.
Mas vamos ao que me põe a pena na mão; deixemos o livro e os artigos do
costume. Os leilões desta espécie são de uma monotonia desesperadora. Não saem
de cinco ou seis artigos. Raro virá um binóculo. Neste apareceu. um, e um
despertador também, que servia a acordar o dono para o trabalho. Houve mais uns
cinco ou seis chapéus-de-sol, sem indicação do cabo... Deus meu! Quanto teriam
recebido os donos por eles, além de algum magro tostão? Ríamos da miséria. É um
derivativo e uma compensação. Eu, se fosse ela, preferia fazer rir a fazer chorar.
O lote inesperado, o lote escondido, um dos últimos do catálogo, perto dos
chapéus-de-sol, que vieram no fim, foi uma espada. Uma espada, senhores, sem
outra indicação; não fala dos copos, nem se eram de ouro. É que era uma espada
pobre. Não obstante, quem diabo a teria ido pendurar do prego? Que se pendurem
chapéus-de-sol, um despertador, um binóculo, um livro de missa ou para missa, vá.
O sol mata os micróbios, a gente acorda sem máquina, não é urgente chamar a vista
as pessoas dos outros camarotes, e afinal o coração também é livro de missa. Mas
uma espada!
Há dous tempos na vida de uma espada, o presente e o passado. Em
nenhum deles se compreende que ela fosse parar ao prego. Como iria lá ter uma
espada que pode ser a cada instante intimada a comparecer ao serviço? Não é
209
mister que haja guerra; uma parada, uma revista, um passeio, um exercício, uma
comissão, a simples apresentação ao ministro da guerra basta para que a espada se
ponha a cinta e se desnude, se for caso disso. Eventualmente, pode ser útil em
defender a vida ao dono. Também pode servir para que este se mate, como Bruto.
Quanto ao passado, posto que em tal hipótese a espada não tenha já
préstimos, é certo que tem valor histórico. Pode ter sido empregada na destruição do
despotismo Rosas ou López, ou na repressão da revolta, ou na guerra de Canudos,
ou talvez na fundação da República, em que não houve sangue, é verdade, mas a
sua presença terá bastado para evitar conflitos.
As crônicas antigas contam de barões e cavaleiros já velhos, alguns cegos,
que mandavam vir a espada para mirá-la, ou só apalpá-la, quando queriam recordar
as ações de glória, e guardá-la outra vez. Não ignoro que tais heróis tinham castelo
e cozinha, e o triste reformado que levou esta outra espada ao prego pode não ter
cozinha nem teto. Perfeitamente. Mas ainda assim é impossível que a alma dele não
padecesse ao separar-se da espada.
Antes de a empenhar, devia ir ter a alguém que 1he desse um prato de sopa.
"Cidadão, estou sem comer há dous dias e tenho de pagar a conta da botica, que
não quisera desfazer-me desta espada, que batalhou pela glória e pela liberdade..."
8 impossível que acabasse o discurso. O boticário perdoaria a conta, e duas ou três
mãos se 1he meteriam pelas algibeiras dentro, com fins honestos. E o triste
reformado iria alegremente pendurar a espada de outro prego, o prego da memória
e da saudade.
Catei, catei, catei, sem dar por explicação que bastasse. Mas eu já disse que
é faculdade minha entrar por explicações miúdas. Vi casualmente uma estatística de
S. Paulo, os imigrantes do ano passado, e achei milhares de pessoas
desembarcadas em Santos ou idas daqui pela Estrada de Ferro Central. A gente
italiana era a mais numerosa. Vinha depois a espanhola, a inglesa, a francesa, a
portuguesa, a alemã, a própria turca, uns quarenta e cinco turcos. Enfim, um grego.
Bateu-me o coração, e eu disse comigo; o grego é que levou a espada ao prego.
E aqui vão as razões da suspeita ou descoberta Antes de mais nada, sendo o
grego não era nenhum brasileiro, – ou nacional, como dizem as notícias da polícia.
Já me ficava essa dor de menos. Depois, o grego era um, e eu corria menor risco do
que supondo algum das outras colônias, que podiam vir acima de mim, em desforço
do patrício. Em terceiro lugar, o grego é o mais pobre dos imigrantes. Lá mesmo na
terra é paupérrimo. Em quarto lugar, talvez fosse também poeta, e podia ficar-lhe
assim uma canção pronta, com estribilho:
Levei a minha espada ao prego.
Eu cá sou grego.
Finalmente, não 1he custaria empenhar a espada, que talvez fosse turca.
About refere de um general, Hadji-Petros, governador de Lamia, que se deixou levar
dos encantos de uma moça fácil de Atenas, e foi demitido do cargo. Logo requereu
a. rainha pedindo a reintegração: "Digo a Vossa Majestade pela minha honra de
soldado que, se eu sou amante dessa mulher, não é por paixão, é por interesse; ela
é rica, eu sou pobre, e tenho filhos, tenho uma posição na sociedade, etc." Vê-se
que empenhar a espada é costume grego e velho.
Agora que vou acabar a crônica, ocorre-me se a espada do leilão não será
acaso alguma espada de teatro, empenhada pelo contra-regra, a quem a empresa
não tivesse pago os ordenados. O pobre-diabo recorreu a esse meio para almoçar
um dia. Se tal foi, façam de conta que não escrevi nada, e vão almoçar também, que
é tempo.
210
FIM
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